Skip to main content
Artes e Desenhos

BANDEJAS DA ORALIDADE: mosaicos com frases de Ailton Krenak, por Mariana Lloyd

Por 14 de dezembro de 20232 Comentários

Meu nome é Mariana Llyod, sou mosaicista e designer e vivo no Rio de Janeiro. Em 2021 eu estava produzindo uma coleção de mosaicos baseados em livros que li durante a pandemia. A partir da leitura dos livros de Ailton Krenak e de entrevistas, filmes e podcasts em que ele falou, selecionei algumas frases que são convites de entrada para o universo da cosmovisão indígena. Esses conhecimentos tão ricos e diversos me nutriram, animaram e afetaram em um momento tão difícil.

As frases tratam de conceitos chaves para começar a entender uma outra visão de mundo compartilhada por diferentes povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Uma visão colada ao corpo da terra,  que é de vivência, conversa, familiaridade e respeito, algo que em muito destoa da ideia cristã, eurocêntrica, monoteísta e capitalista de ver e explorar o mundo.

Um mundo onde um rio é chamado de avô, em que um ser humano é genro do sol, em que uma mulher é irmã de uma rocha, em que plantas são professoras, em que uma montanha tem humor, que a terra é mãe e não um recurso natural para ser explorado, bombardeado, poluído e escavado.

 

Pensei em uma coleção aberta, pois como Ailton é da oralidade, há sempre uma renovação na fala, mas a mensagem principal é muito focada na importância do território para o bem viver, na crítica ao antropoceno e ao capitalismo, e à defesa do respeito à vida.   

A ideia de bandejas veio enquanto escutava a conversa entre Ailton e Emicida em que eles falavam sobre servir, que esse era um conceito mais profundo do que ser um mero servil, mas falava de servir a um propósito. A bandeja me veio como a ideia de oferecer um bom alimento para a alma. E como sou um ser urbano, achei que um objeto de uso cotidiano poderia ser um bom veículo para pensarmos nessas questões tão importantes no dia-a-dia. A vida não é útil, mas uma bandeja é. O que podemos oferecer ao mundo? Como faremos nossas trocas de cuidado e afeto?    

O mosaico foi a forma que encontrei de expressar a unidade e o coletivo, em que pequenas peças se juntam para formar uma imagem. As frases escolhidas foram escritas em português utilizando duas tipografias: uma cursiva e uma em caixa alta, junto de uma moldura colorida relacionada à frase.  

Abaixo conto um pouco das reflexões que me levaram a cada trabalho e também trago as referências de onde vieram as frases que pousaram nas bandejas:

A VIDA É UMA DANÇA CÓSMICA

 

Conceito de Gaia, da Terra ser um ser vivo que se relaciona com o cosmos. Há uma grande dança entre os planetas, galáxias, estrelas, humanos, água, até as células de dentro de nossos corpos e do corpo de outros seres. O pensamento é cíclico e espiralar. 

“A vida como dádiva é uma experiência que pode ser habitada por pensamentos que querem viver a experiência livre. Só pensamentos que querem ter a experiência da liberdade é que suportam habitar a incerteza. Os outros todos querem ter certeza de alguma coisa, inclusive certeza de que amanhã vai continuar, que vai ter amanhã. Todas essas certezas ligadas com a linha do tempo, com a ideia de um tempo linear, um tempo contínuo, que tem amanhã, depois de amanhã, isso é gerador de angústia. Nós vivemos hoje o tempo da angústia de ter certeza de alguma coisa. Angústia de se vai ter o dia de amanhã, se vai ter trabalho, se vai ter escola, se vai ter comida, se vai ter abrigo… Porque a gente passou a se constituir numa humanidade do saque, uma humanidade que saqueia o planeta e só sente fome, fome de tudo. Mas principalmente parece que é uma humanidade que sente fome dela mesma. É uma angústia. Pode ter dinheiro, pode ter bens materiais, pode morar em Bruxelas ou Nova York, mas vai estar com fome do mesmo jeito”.  

Fonte: Entrevista com o líder indígena Ailton Krenak realizada para a publicação educativa da 34ª Bienal

Conflui com:

FLECHA 1 – A SERPENTE E A CANOA  

DANÇA CÓSMICA

PODCAST EDU VOICES #53

 

CUIDE DE UM LUGAR

 

Esta frase me impactou muito durante vários meses. Escutei em um podcast em que Ailton Krenak dizia algo como: “Você não precisa sair de onde você está para fazer caridade em algum país da África, você pode cuidar do seu jardim, da sua família, dos seus amigos, de você, de onde você está.” É preciso ter um lugar. Um lugar onde a memória é sonhada e construída. O que para os povos indígenas se configura como ‘Corpo-território’. O direito de ir e vir e poder usufruir do bem viver.

“Aquele parente que se sente menor quando está em São Paulo do que quando está no Vale do Javari, na floresta onde vive seu povo, está refletindo o que milhares de pessoas sentem quando estão exilados de si mesmos, fora do seu lugar. O que nos põe diante de uma pergunta incômoda: qual é o meu lugar? Se toda vez que me sentir deslocado vou me sentir menos do que eu sou, onde é o meu lugar? Quero convidar vocês para fazermos uma viagem sobre o lugar. Que lugar é esse, onde a terra descansa? O lugar onde a terra descansa está em mim, ou está pelas paisagens onde me desloco, atribuo valores e significados? Se há um lugar onde a terra descansa, isto deve sugerir também que a terra pode ficar cansada, já que é pensada como um organismo vivo. O que não reflete a mesmice do pensamento racional e científico. E é daqui, deste lugar privilegiado onde a ciência deita e rola, que é preciso dizer que a ciência, desde alguns séculos atrás, decidiu que esse organismo vivo podia ser esquadrinhado, recortado, eventualmente triturado e enviado para diferentes cantos do mundo, como recurso. Assim como você pode ir a uma roça e colher o trigo ou colher o milho, você pode ir a uma paisagem e colher uma montanha. Você atrofia uma paisagem como se ela fosse alguma coisa que se pode repor a cada safra, a cada estação.”

Fonte: Pensando com a cabeça na Terra

 

O AMANHÃ NÃO ESTÁ À VENDA

 

Em 2017, por acaso, achei um livro do Elon Musk em uma prateleira de uma casa alugada por Aibnb. Eu nunca tinha ouvido falar nele, mas fiquei fascinada naquela loucura capitalista; no livro era muito enfatizada a ideia de eficiência, que se algo precisava ser feito e as pessoas não davam conta, o Elon ia lá e fazia. Ele estava desenvolvendo a tecnologia de foguetes do zero, usando combustível fóssil, o auge da inovação com o auge do obsoleto, ou só o auge do obsoleto vendido como inovação. 

Acabei o livro sabendo que ele ia ser o bilionário número 1. E aí me veio essa curiosidade de entender quem eram os bilionários, o que faziam, o que queriam, de onde vieram, onde querem chegar e descobri algumas coisas pesquisando 400 deles. Quase todos estudaram nos Estados Unidos em algum momento da vida; as mulheres da lista ou eram viúvas, casadas, ex-mulheres ou filhas de bilionários. Entre os primeiros 400 bilionários só havia uma mulher, branca, que tinha conseguido riqueza por conta própria trabalhando com construção. 

Ou seja, essa economia não foi pensada nas mulheres, não cogitou os homens negros, não cogitou as mulheres negras e nem em sonho cogitou povos nativos, que são os verdadeiros bilionários. Bilionário é quem vive com água limpa, floresta, música, dança, coletividade e saúde. 

“Não existe futuro – ele é uma construção totalmente mental. O que existe é esta manhã. Entre 8h40 e 10h da manhã, que nos possibilita respirar, olhar, sentir o que tem ao nosso redor. E isso constitui um presente. Não existe esse futuro no qual o Homo Sapiens quer fincar uma bandeira e dominar. É uma ilusão. Em algumas tradições, essa pessoa vai ser convidada a meditar, a esvaziar a mente para experimentar um sentido de estar presente, em vez de estar buscando outro lugar, fugindo para outro lugar.  Em vez de buscar um lugar para domínio, é necessário esvaziar esse espaço do domínio e ficar no presente… Ele vai nos permitir concluir que, estando aqui e agora, não importa o amanhã. O amanhã não está à venda. Porque, quando você cogita que você pode fazer alguma coisa amanhã, você já está vendendo o amanhã.” 

Fonte: Ailton Krenak: A Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho

Conflui com: 

Ailton Krenak: a ignorância é um vírus

Trocamos humanidade por coisas 

PISAR SUAVEMENTE NA TERRA

 

Ter uma relação de afeto com um rio, a ponto de chamá-lo de avô, de conversar com ele, perguntar por onde ele andou, mandar mensagens para ele contar pelo caminho e ter esse parente invadido por lama tóxica, é uma violência e uma falta de respeito muito grande. Não sei se ter água encanada é o motivo que faz com que as pessoas das cidades acharem que é mágica ter água no vigésimo andar. Essa água vem de um lugar. Ela vem de um rio, ela voa por cima de nossas cabeças em forma de nuvens, ela habita em nós, formando 70% do nosso corpo. E essa mineração toda… Quantos carros a gente precisa fazer? Quantos fogões já existem no mundo? Quantos shoppings no mundo tem diversas geladeiras em estoque? Quantas bombas já existem e que nem deveriam existir? Neste momento há um soldadinho varrendo o chão em uma base nuclear secreta, para quê?

“Sempre olhei essas grandes cidades do mundo como um implante sobre o corpo da Terra. Como se pudéssemos fazer a Terra diferente do que ela é, não satisfeitos com a beleza dela. A gente deveria é diminuir a investida sobre o corpo da Terra e respeitar sua integridade. Quando os índios falam que a Terra é nossa mãe, dizem “Eles são tão poéticos, que imagem mais bonita”. Isso não é poesia, é a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra. Somos terminal nervoso dela. Quando alguém fura, machuca ou arranha a Terra, desorganiza o nosso mundo.”

Fonte: O tradutor do pensamento mágico

 

TUDO É NATUREZA

 

Até um parafuso seriado industrial é único. Lembro de escutar em um podcast o Ailton Krenak criticando o pensamento filosófico “Penso, logo existo” e aí ele fala algo como: tudo pensa. Nós estamos em um universo vivo, inteligente e com humor. Agora, tem um monte de gente por aí que existe, mas pensa o quê?

“Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem – , fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: A Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.”


Fonte: Livro Ideias para adiar o fim do mundo, pgs 16-17.


UM OUTRO MUNDO POSSÍVEL

 

Inserida nesse mundo em que territórios quilombolas são invadidos para enviar foguetes para um outro lugar (vide Alcântara) nesta febre colonizadora, foi muito bom ser confrontada com a ideia de um outro mundo possível aqui, mais perto. Que cada ser humano é um mundo em si, que riqueza. E que o ser humano não é dono deste mundo, ele convive com milhões de outros mundos, com pássaros, insetos, árvores, montanhas… Já estamos viajando no cosmos, não precisamos de foguete. Nós somos células desse organismo maravilhoso que alguém já disse que é uma nave azul viajando no espaço. As ideias para adiar o fim do mundo são, na verdade, uma janela para outros mundos possíveis.

“A gente não fala de qualquer lugar. No livrinho Ideias para adiar o fim do mundo, eu estava experimentando a ideia de compartilhar com outras pessoas – que vivem nessa realidade de um mundo prático – que existem outros mundos. Se conseguirmos fazer essa comunicação, já distendemos um pouco o lugar que habitamos. Esse mundo pragmático em que a gente coexiste é um lugar de passagem de outros povos, outras mentalidades e culturas. E não existe só este mundo de concreto, ruas e cidades; que imprime no corpo da Terra a marca dos homens como se eles fossem a única existência inteligente e sensível. Se você conversar com os sábios dos Krenak, dos Guarani, dos Xavante e perguntar “O que quer dizer o nome do seu povo?”, eles vão dizer “ente humano”, “nós”, desmantelando a ideia de indivíduo e dando oportunidade de conversarmos com o rio, com a montanha, com outros seres que não são os eletivos humanos. Porque alguém elegeu este lugar como se fosse um clube. E, se você quiser fazer parte desse clube, vai reforçar a predação do planeta andando pelo mundo como se fosse a única inteligência viva da Terra. É uma racionalização absurda do pensamento. É isso que tem sido denunciado como uma espécie de humanidade-zumbi, uma humanidade petrificada que nem sabe o que está fazendo, mas continua fazendo. E isso incide sobre o mundo de maneira tão brutal que chegamos ao ponto de estarmos agora com esses mundos em colisão, como se não pudesse existir mais nenhum lugar da Terra que essa humanidade não possa invadir. É uma mentalidade que também é alimentada por uma cosmovisão. E não são só os povos originários que têm cosmovisão. Os norte-americanos brancos que foram colonizar o norte da América e vieram implantar a semente do capitalismo, que assumiram esse lugar de agentes colonizadores do planeta, também têm uma cosmovisão.”

Fonte: O tradutor do pensamento mágico

 

Texto: Mariana Lloyd

Fotos: Guilherme Silva

Edição: Mariana Rotili

 

2 Comentários

Deixe seu comentário