• Abertura da Escola Viva Baniwa •
No dia 20 de março de 2023 começou a celebração de abertura da Escola Viva Baniwa, Wanheke Ipanana Wha Walimanai, a Casa de conhecimento da nova geração. Neste artigo, quem nos conta da festa é Francy Baniwa, coordenadora da Escola Viva, junto com seu pai Francisco Baniwa.
Foi um dia maravilhoso, um momento histórico para a comunidade.
Aqui é o lugar onde nasci e cresci. É o lugar onde estão minhas tias, avós, primos, amigas e amigos de infância. Aqui está a base de tudo, a base do ensinamento, o que me fez ser quem sou hoje.
Em nenhum momento da minha vida eu imaginei que pudesse estar acontecendo isso.
A celebração começou com a abertura da Escola Viva: os sábios ficaram em círculo, cada um pegou uma fita trançada de palha e duas crianças cortaram. As crianças eram o centro e o círculo era composto pelos conhecedores. Depois entrei com a dança, com o canto de japurutu1. Atrás vieram as crianças trazendo os livros e foram colocando em um cumatá, um grande balaio, com as folhas de bananeira.
Na celebração de abertura, muitas lideranças que estudaram comigo deram depoimentos. A roda tinha conhecedores, professores e também autoridades presentes, o ISA (Instituto Socioambiental), a FUNAI, a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro). Muitas lideranças lembraram dos desafios, voltaram às memórias de infância, contaram como aprenderam com os pais, com as avós e falaram como é importante continuar mantendo essa cultura que temos e que é viva. A cultura está viva.
Aí depois veio o dabucuri2, que é da comunidade. Deixaram uma enorme canoa no centro da celebração e encheram de frutas. Teve danças tradicionais dos jovens, dos conhecedores e das crianças. O segundo dia de celebração também foi muito emocionante porque a gente criou os professores. Cada um se tornou aluno: os jovens, os pais, as crianças puderam escolher para onde ir, o que queriam aprender, tecelagem, canto e benzimento, narrativas, roça, culinária.
A comunidade não teve dificuldade de entender o que é uma Escola Viva quando apresentei o projeto. Porque já somos uma Escola Viva.
A Escola Viva acontece no momento em que você acorda às quatro da manhã para tomar banho e também quando se deita às seis da tarde, depois de um longo dia de trabalho na roça. Tudo o que somos e o que fazemos na comunidade dentro das nossas casas é escola viva.
Todas as cestarias, a arte de cortar a palha, de pescar, de limpar o peixe, de cuidar da roça, tudo isso. O meu pai é uma escola viva. Os meus tios e professores são escolas vivas. Todas as roças são escolas vivas. A nossa comunidade e todos os moradores aqui também. Pelas tranças, pelos cantos, pela bebida fermentada e compartilhada nas manhãs de caribé3, que é uma partilha cotidiana, com os risos das mulheres conversando, brincando junto com as crianças e a juventude.
Foi muito bonito poder ouvir depoimentos sobre a importância da Escola Viva aqui na comunidade, pelo que trouxe de reconhecimento, de valorização da vivência que temos aqui. Poder ver a alegria de todos os conhecedores da comunidade me emocionou. Muitas pessoas choraram, relembrando seus pais que já não estão mais, as suas infâncias.
Como é lindo ser criança em um território indígena. Como é bonito você aprender a ser criança e pescar. Como é bonito poder mergulhar nesse rio grande, sem correr nenhum perigo. De ter a roça, de ter o rio, de ter essa vasta floresta linda, cheia de encantos e mistérios. Cheia de protetores, cheia de animais e pássaros. Como é bonito compartilhar a roça com as queixadas, cutias e antas. E como é bonito compartilhar as frutas com as árvores.
A minha fala, o livro, toda a narrativa descrita também é escola viva. E é um presente que dei a essa nova geração e às pessoas que estão podendo ler o livro e entender que o nosso mundo é muito complexo, que o nosso mundo foi criado, pensado e que o nosso território é vivo.
Sinto o privilégio de ser uma mulher indígena, mãe, neta, escritora, pesquisadora e antropóloga. Como é bonito ser inspiração para outros jovens também, que estão nessa comunidade. Que eles possam ser futuros escritores, futuros cantores, dançarinos de carriçú, japurutu e donos de roças.
Foi lindo ver as crianças com os livros Umbigo do mundo, entregar para cada conhecedor um livro publicado a partir da oralidade, a partir da conversa entre pai e filha. Foi muito lindo poder entrar no sonho de japurutu e receber cada fruta oferecida em uma forma de muito obrigado por ter trazido o livro e a Escola Viva.
E a festa foi linda, foi uma troca com culturas, com vestimentas, cada um com seu cesto, trançado com palhas. A festa foi linda, mas a gente ainda está em festa, nesta celebração de gratidão a todos os deuses do universo com essa oportunidade.
NOTAS
1. Instrumentos musicais. São flautas de sopro longas, com um metro e meio de comprimento.
2. Dabucuri (em baniwa, poodali) é uma festa de oferecimento de frutas, peixes, carnes de caça, artes, comum aos costumes de diversos povos por todo o rio Negro, em que também ocorrem vários tipos de dança.
3. Tem dois tipos de caribé: um é deixar o beiju ferver ou deixá-lo de molho e depois amassar com cuia, e o outro é feito de mandioca puba, que também é conhecida como maçoca.
Por Francy Baniwa
Preparação de texto por Alice Faria