Um mês depois de a exposição Viva Viva Escola Viva se fechar à visitação do público, nasce novamente no Jardim Botânico do Rio de Janeiro uma roda de bichos, plantas e artes dos povos Guarani e Baniwa.
No dia 08 de março de 2024 foi inaugurada, junto ao novo Museu do Jardim Botânico, a exposição Mba’é Ka’á (o que tem na mata) – Barbosa Rodrigues entre plantas e pajés.
Com curadoria de Anna Dantes e narrativas ligadas aos estudos do Selvagem, a exposição trouxe para o espaço cultural pinturas, cestarias, bichinhos de madeira e outras expressões artísticas dos povos Guarani e Baniwa para dialogar com o trabalho do botânico e pesquisador João Barbosa Rodrigues.
Barbosa Rodrigues (1842-1909) foi uma figura de grande importância para a botânica no Brasil e no mundo. A partir de viagens e pesquisas de campo, reuniu estudos, escritos e ilustrações sobre inúmeras espécies de plantas – como as palmeiras brasileiras, às quais dedicou anos de atenção, que resultaram na publicação de sua obra Sertum palmarum brasiliensium, uma referência na botânica no mundo.
Em suas viagens pelo Brasil, Barbosa Rodrigues percebeu o vasto conhecimento botânico dos povos indígenas, que também estava contido em sua nomenclatura botânica: nos nomes que davam às plantas, que traziam indicações sobre suas características e usos possíveis, entre outros elementos. Essa pesquisa foi, em 2018 resgatada e publicada pela Dantes Editora, como parte dos estudos do Selvagem, no livro Mba’é Ka’á: o que tem na mata – a botânica nomenclatura indígena.
Ilustrações originais de Barbosa Rodrigues na biblioteca do Jardim Botânico,
que leva o nome do pesquisador
Anos depois, neste mês de março, tomou lugar esse reencontro potente na forma da exposição Mba’é Ka’á, celebrando a integração de saberes, conhecimentos, expressões artísticas e formas de se relacionar com a floresta.
Neste evento de inauguração da exposição, Anna Dantes começou contando um pouco da história do Selvagem e da Dantes Editora, que passou por uma estreita relação de pesquisa e edição de botânicos e naturalistas – como Domenico Vandelli, Auguste Glaziou, Barbosa Rodrigues -, a partir de uma parceria com o próprio Jardim Botânico do Rio.
O termo “selvagem” significa ser filho da selva: a região da floresta em que a mata é mais densa, onde a vida pulsa em seus mistérios. Para o nosso ciclo de estudos sobre a vida, esse nome, que veio de inspiração de Barbosa Rodrigues, significa também um compromisso com o movimento, com a transformação e com os saberes originários, que Anna celebrou em sua fala.
Em seguida, Cristine Takuá falou sobre as Escolas Vivas e o trabalho de acordamento de memórias ao qual vem se dedicando. Cris apontou como as memórias não podem ser mortas ou apagadas, mas podem ficar suspensas, adormecidas. Nesse sentido vem o trabalho de acordar as memórias, de trabalhar junto aos parentes para que se reconheçam como fontes de saber e cultura.
Cris também falou sobre a importância de dar atenção às crianças e jovens nesse processo de reeducação, plantando sementes de novas formas de lidar com a terra, com a aprendizagem e com a vida.
Carlos Papá, coordenador da Escola Viva Guarani, apresentou um pouco dos saberes e da filosofia presentes na língua Guarani. A exposição Mba’é Ka’á conta com uma pintura inédita dos artistas do Ponto de Cultura Mbya Arandu Porã, que retrata a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro.
Guanabara é uma palavra que vem de uma expressão na língua Guarani, kua gua mba ará: “abraço todos os dias”. Segundo Papá, um dos intuitos desse trabalho foi retomar o sentido de acordar todos os dias sentindo o abraço da floresta, da Nhe’ery, onde os espíritos se banham e onde sentimos o nosso sopro de vida.
Entre as artes Guarani, a exposição também conta com a tela Teko Porã [Bem Viver], bichinhos de madeira e cestarias, que estiveram presentes na exposição Viva Viva Escola Viva; e com uma série de ilustrações de plantas, palmeiras e animais que dialogam com os trabalhos de Barbosa Rodrigues.
Os jovens artistas Guarani que criaram as obras junto a Papá também estiveram presentes na exposição. Fabiano Kuaray Papa, Alexandre Wera, Bruno Djeguaká, Leonardo Karai Rokadju e Alex Karai fizeram cantos e rezas para encerrar o encontro, saudando Nhanderu, o criador, e a floresta.
Fabiano também fez uma fala, ao final dos cantos, ressaltando como é importante para os jovens a conexão com a espiritualidade, a floresta e a memória através da arte, um caminho para sustentar e expressar os saberes ancestrais.
Por fim, Francy Baniwa e Francisco Fontes Baniwa falaram um pouco sobre suas artes e o trabalho com a cultura Baniwa. Francy é autora, junto a seu pai Francisco (narrador) e seu irmão Frank (ilustrador), do livro Umbigo do Mundo (Dantes, 2023), um percurso pelas cosmologias e paisagens do Alto Rio Negro e pela memória ancestral de seu povo.
Em 2024, o projeto Escolas Vivas acolheu a nova Escola Viva Baniwa: Wanheke Ipanana Wha Walimanai [Casa de conhecimento da nova geração]. Na exposição, as artes Baniwa estiveram presentes através do trabalho dos artistas Baniwa, orientados por seu Francisco, com o trançado de palhas das palmeiras do Jardim Botânico para a confecção de cestarias e tapetes.
A exposição Mba’é Ka’á celebra o encontro entre a botânica indígena e a tradição botânica ocidental. Em um espaço institucional reconhecido como o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, esse movimento pode ser uma semente para muitos outros encontros de mundos.
Entre palmeiras, animais, cantos, rezas, enciclopédias e escritos, a floresta se apresenta em sua diversidade. Saber escutar essa diversidade e aprender com as diferentes tradições, como também fez Barbosa Rodrigues, é estar atento ao pulsar da vida: ao selvagem que nos constitui e nos permeia.
Quais são os nomes do que tem na mata? Como escutar a sua diversidade?
João Barbosa Rodrigues em seu gabinete, em 1903, envolvido por desenhos feitos por jovens da Terra Indígena Jaraguá em 2018, para a edição do livro “Mba’é Ka’á: o que tem na mata – a botânica nomenclatura indígena”, pela Dantes Editora.
João Barbosa Rodrigues nasceu em 1842 durante o Império, no Rio de Janeiro. Foi professor de desenho no Colégio Pedro II, diretor do Museu Botânico do Amazonas, em Manaus, e diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde trabalhou até morrer em 1909. Realizou diversas expedições, entre elas uma no vale do Rio Amazonas, de 1872 a 1874, com o objetivo de complementar os estudos sobre palmeiras de von Martius. A pesquisa de campo era tão importante em sua carreira que criou no Jardim Botânico, o cargo de naturalista viajante. Publicou também Sertum Palmarum Brasiliensium, em 1903, uma obra impressionante em dois volumes contendo 389 espécies de palmeiras ilustradas e seus usos descritos.
Texto e imagens: Daniel Grimoni
Ansiosa para ir à exposicao (amanhã irei!), esse livro Mbae Kaá é marcante na minha trajetoria de aproximaçao Selvagem com saberes da floresta por escrito, desde El Rio e depois Serpente Cósmica – um livro a ser ainda plenanente visto ( lido) como revolucionario no sentido de dar um giro no processo de reconhecimento das váriadas origens do saber sobre a Vida.