Seguindo o futuro das Escolas Vivas, sonhamos viver o tempo das memórias vivas e ativas, em um fluxo constante de trocas e sensíveis interações com todas as formas de vida.
Cristine Takuá
No dia 24 de janeiro de 2024, fizemos um grande encontro na exposição VIVA VIVA ESCOLA VIVA, celebrando os últimos dias na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro. A visitação segue aberta ao público até domingo, dia 28 de janeiro.
No entanto, em vez de um encerramento, o que criamos juntos foram novas aberturas, novas conversas, novos inícios. O que é vivo, afinal, não se encerra, ainda mais quando sabemos que nossos passos vêm de antes. Quando nos reunimos em roda para celebrar a memória, a diversidade e a potência viva de estarmos juntos, aprendermos e ensinarmos. Essa foi mais uma oportunidade de aprender a estar no mundo desde dentro das Escolas Vivas.
Em uma visita guiada por toda a exposição, seguida de uma roda de conversa e cantos, cerca de 100 pessoas acompanharam Cristine Takuá, Anna Dantes, Leda Maria Martins, Veronica Pinheiro e Viviane Fonseca-Kruel.
Para abrir a visita, Anna e Cris falaram um pouco sobre o trabalho do Selvagem, das Escolas Vivas e o pensamento criativo por trás da exposição. Veronica fez um lindo relato sobre o trabalho do grupo Crianças ao longo de todo o ano, comentando sobre a importância da comunidade, de ter um grupo que caminha unido e que constrói com amor e dedicação cada atividade, cada oficina e diálogo.
A visita guiada se iniciou com Anna falando sobre o povo Huni Kuï, um pouco de sua história recente e seus saberes ancestrais. Toda a exposição VIVA VIVA ESCOLA VIVA traz uma relação entre memória e inovação, passado e presente, e o espaço dedicado aos Huni Kuï apresenta isso com bastante relevância: ali estão os ensinamentos da jiboia, da aranha e das forças da natureza, que ensinaram os Huni Kuï em um passado ancestral a arte dos grafismos, da tecelagem e da cura. Logo ao lado, um espaço dedicado às Casas de Essências Huni Kuï e à importância dos cadernos, lápis e caneta nas aldeias, mostra outros tempos presentes, com suas próprias tecnologias e demandas.
Os cadernos e cartilhas, por exemplo, entraram nas aldeias trazendo direitos, possibilidades de expressão e outra relação dos Huni Kuï com a sociedade não indígena, depois de décadas de maus tratos no contexto da exploração da borracha no Acre. Anna Dantes também enfatizou como a exposição VIVA VIVA ESCOLA VIVA é um cultivo desse diálogo com as plantas mestras e outros seres não humanos, que os Huni Kuï celebram em suas obras, assim como muitas ações do Selvagem o fazem.
Seguindo o circuito da exposição, Cris Takuá falou sobre as grandes bandeiras Guarani e Maxakali e a importância dos elementos culturais e espirituais ali presentes. A bandeira Guarani, por exemplo, traz uma representação de um petyngua (cachimbo), que é usado para o tabaco e as rezas. Cris ressaltou esse elemento e como o povo Guarani acredita e sustenta que o tabaco – natural, usado segundo as práticas ancestrais e sagradas – traz muitas curas, diferente do uso que a sociedade não indígena fez dele.
Em seguida, Cris e Carlos Papá apresentaram ao público as obras do povo Guarani, representando a Nhë’ery – a floresta que conhecemos como Mata Atlântica –, a criação do mundo e dos astros. Papá também apresentou duas telas pintadas por ele, que retratam Nhandexy – nossa mãe, o escuro – e contam a história do Sol na Terra.
Na sala dos povos do Rio Negro, representados pelas escolas vivas Baniwa e Tukano, tivemos a grande oportunidade de ouvir Francisco Baniwa narrando as histórias ali retratadas nas aquarelas de seu filho, Frank, que foram também reunidas por sua filha, Francy, no livro Umbigo do Mundo. Francisco seguiu de obra em obra apontando detalhes tanto das artes quanto das histórias ali representadas – mostrando a “primeiridade da voz e da oralidade, mas sem conflito com os códigos visuais ou escritos”, como disse Leda Maria Martins mais adiante, agradecendo a Francisco por seu relato. Foi uma oportunidade muito especial de ouvir cada narrativa, perceber as relações entre elas e vislumbrar a imensidade dos saberes ali representados.
Já no final da visita guiada, Cris Takuá falou sobre o povo Maxakali e a importância da espiritualidade e da floresta nas obras ali presentes. Cris também contou um pouco sobre as ações da Escola Viva Maxakali, como as oficinas conduzidas por Sueli e Isael Maxakali em seu território, das quais resultaram algumas das obras presentes na exposição. Essas oficinas foram feitas em algumas sessões, com muitos jovens presentes, a partir da contação de histórias pelos anciões e anciãs da aldeia, e foram de grande importância para os Maxakali.
Tanto os Guarani quanto os Maxakali trazem um forte aspecto de resistência espiritual diante do desaparecimento das florestas em que vivem. Uma das obras Maxakali que falam desse tema, apontada por Cris, é um retrato de Mõgmõgka Tap, o gavião, que para os Maxakali é o ser que mais sente falta das grandes árvores.
“Muitas vezes, os jovens das aldeias sequer conhecem alguns seres, como animais e plantas, que estão presentes nos cantos e na memória tradicional, mas já foram extintos. Aqui, portanto, a importância de manter a memória viva, e junto a ela a profundidade de cada cultura e seus conjuntos de saberes.”
No último momento do encontro, fizemos uma roda de conversa com o público, as convidadas e convidados. A primeira pessoa a falar foi Viviane Fonseca-Kruel, curadora da coleção de Plantas Medicinais do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, uma de nossas parceiras na exposição, que apoiou com mudas o nosso jardim.
Viviane começou ressaltando a importância da ponte entre os saberes indígenas e não indígenas para o fazer científico. Como etnobotânica, que estuda a relação entre pessoas e plantas, Vivi teve muitas oportunidades de contato com povos originários e comunidades tradicionais, observando sua relação com as plantas e a floresta.
A partir desse contato, um dos pontos que ela ressaltou em sua fala foi a diversidade de línguas e modos de nomear as plantas. Vivi também citou algumas plantas específicas, como a mandioca, o crajiru e o tabaco, que envolvem saberes muito particulares, passados pela tradição dos povos indígenas, em relação a seu manejo, processamento e preparo. A importância de proteger esses saberes, além das plantas em si, é também uma forma de preservação da memória e de manutenção da vida e da cultura dos povos indígenas que conhecem cada planta e seus muitos usos possíveis.
Por fim, a fala passou para a filósofa e pensadora Leda Maria Martins, que iniciou pedindo ao público que chegasse mais perto, ficasse mais juntinho, em roda – para não repetirmos ali, enfileirados e silenciosos, os modos coloniais.
Leda fez uma longa fala, costurando muitos pontos da visita guiada: as falas de Anna e Cris, as narrativas compartilhadas por seu Francisco, e ainda as relações entre os saberes indígenas e os saberes negros, afrodiaspóricos, a partir da oralidade, do canto, do corpo, da memória.
“Onde tem negro tem canto; onde tem Maxakali tem canto também”, disse Leda, e logo ela percebeu que estávamos falando muito de cantos, mas ninguém cantava; então pediu a Cris que cantasse, e depois a seu Francisco e Veronica. Ela própria também cantou.
Aos poucos, nossa roda de conversa se transformou em uma roda de ciranda, com todo o público em pé, atento e presente. Entre cantos e giras, Leda trouxe a importância da voz, da memória e da troca de saberes, ressaltando que os conhecimentos são incompletos e imperfeitos, e se beneficiam uns dos outros em vez de se excluírem mutuamente.
Um elemento importante de toda comunicação é o tempo. Na oralidade, vivemos o tempo presente: as palavras vivem em um corpo, estão aqui com a gente. Leda também falou sobre o tempo: a duração de cada coisa, e como para ouvir, assim como para conhecer as Escolas Vivas, precisamos abrir espaço para a duração. Não é possível somente “visitar” uma exposição, ela disse; achamos que visitamos uma exposição, mas é a exposição que nos chama para estar ali. E precisamos estar no tempo que for necessário. Isso também diz respeito não apenas ao que fazemos ou deixamos de fazer, mas à forma como fazemos, à forma como escutamos, à forma como vivemos em coletivo.
O espaço da exposição VIVA VIVA ESCOLA VIVA, acolhido pelo salão da Casa França-Brasil – antiga alfândega do Rio de Janeiro –, é dedicado à memória de muitas formas. Inúmeras camadas de passado e presente se atravessam ali. Falando desse lugar, segurando nas mãos do público, Leda reuniu todos esses tempos e espaços nos corpos de cada pessoa ali presente.
Nesse momento, eu já tinha deixado de anotar o que acontecia na visita guiada, sendo levado para a presença e para outros códigos. Compartilho, então, com minhas palavras um rastro das memórias que as palavras de Leda cirandaram por aqui:
Nós falamos das plantas
como se elas estivessem ali,
distantes e diferentes de nós,
mas também somos planta.
Também temos folhas e galhos.
A memória é uma memória
De tudo que nós somos.
Nós somos terra, somos água,
somos céu, gente, jiboia.
Tudo se atravessa.
Nós esquecemos disso.
Mas não tem problema
esquecermos disso
se a gente se lembrar:
trazer para o corpo
a memória da água,
a memória da terra,
a memória do animal, da planta.
A memória não é somente
um laço afetivo. É uma forma
de salvar do esquecimento e,
portanto, da morte.
As crianças Maxakali pintam
dezenas de espécies de abelhas
que não existem mais.
A memória dos cantos
e das histórias faz com que elas
continuem vivas.
Enquanto existir memória,
as vidas estarão presentes
e será possível ficar de pé
para quem é de ficar de pé.
Texto: Daniel Grimoni*
Imagens: JPrado @pradojota
*Daniel é artista e educador, licenciado em Letras pela UNIRIO e estudante de música. É autor do livro de poesia Todo (o) corpo agora (2019), além de contos, poemas e ensaios publicados por aí. Pesquisa os diálogos entre arte, ecologia e educação, e trabalha, desde o início de 2023, como assistente de produção no Selvagem.
Maravilhoso… obrigado pelo narração!!!