No dia 10 de outubro de 2023, o Grupo Comunicações da Comunidade Selvagem recebeu a artista e pesquisadora Cássia Oliveira para uma conversa sobre sua tese Ciclo de Estudos Selvagem e a Comunicação Decolonial, defendida em agosto do mesmo ano, no Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Cássia começou sua fala com uma apresentação em primeira pessoa em que contou que é goiana, nascida na roça. Disse que há pouco tempo vem reconhecendo sua ascendência indígena, e que essa tomada de consciência veio muito a partir das conexões com as histórias que suas avós, Dona Geralda e Dona Mariana, contavam. Apesar de ter convivido bastante com elas, Cássia cresceu sem ir mais a fundo nessas buscas. Hoje ela percebe que as avós guardavam sabedorias e modos de cuidar que agora ela entende por indígenas. Para ela, a falta de identificação que ocorria àquela época “certamente está relacionada, entre outras coisas, com o tipo de conhecimento transmitido nos espaços formais de ensino que colaboram com a construção de um imaginário estereotipado e preconceituoso sobre a população indígena”.
Aos 7 anos de idade ela esteve com a família em viagem pelas margens do rio Araguaia e lá fez amizade com um grupo de crianças indígenas do povo Karajá. Foi entre as brincadeiras com os novos amigos que seu fenótipo indígena foi notado; na hora em que as crianças falaram seus nomes, um tio que estava por perto brincou que o nome de Cássia era, na verdade, Jurupiá. O nome enraizou e hoje é assim que ela assina seus trabalhos artísticos.
Já adulta, em uma viagem de pesquisa sobre narrativas e saberes no interior da Bahia, perguntaram a Cássia se ela era irmã de uma das pesquisadoras indígenas daquela comunidade: “Aquilo me fez olhar no espelho para o que estava por trás do fenótipo e que podia trazer alguma ligação com um passado que me foi negado. Uma memória que não tenho, mas que me constitui hoje e provoca esses vazios. São ausências resultantes de apagamentos, silenciamentos das memórias de parte da minha família”. Esses acontecimentos impulsionaram a busca sobre suas origens e a valorização da sabedoria das mulheres de sua linhagem.
“Minhas avós, minha origem, conhecimento e cultura foram apagadas de modo permanente. Pouco sei e muito gostaria de saber. Parto do não lugar em busca de um lugar.”
A PESQUISA
Apesar da solitude e autoralidade estimuladas pela academia – principalmente em processos longos como o de doutoramento, que dura em média 4 anos -, Cássia sorri ao dizer que sua pesquisa é tecida com os fios de muitas vozes. Ao longo dos 4 capítulos ela propõe diálogos que constituem um sujeito plural, sujeito que ela conjuga como ‘nós’.
Muitos foram os desafios para discutir, dentro de um programa de pós-graduação em comunicação, algo que foge do formato ‘científico’. Ao considerar o Selvagem como uma experiência de comunicação decolonial feita por uma comunidade de estudos, Cássia mapeou ressonâncias com o pensamento de Muniz Sodré e Paulo Freire, que falam do pensar junto como uma ação comum, feita por um coletivo de pessoas que se move em torno de temas que as atraem por diferentes pontos de contato, abrindo múltiplos caminhos para transformações cognitivas.
Na INTRODUÇÃO, Cássia apresenta o Selvagem e traz uma provocação sobre a origem do mundo. Faz referência à Yebá Buró, a ‘Avó do Mundo’, ou também ‘Avó da Terra’, evocando a narrativa de criação do povo Desana, do Alto Rio Negro, no noroeste amazônico, num contraponto à explicação científica de como tudo começou por aqui.
Na GINGA DE IDEIAS, NOSSO PONTO DE PARTIDA, busca-se pensar o que é a pluralidade a partir da ideia de ‘bios midiático’, introduzida por Muniz Sodré no campo de estudos da Teoria da Comunicação. Cássia dá mais um giro de apresentação do Selvagem, num exercício de introduzir o ciclo de estudos para quem não o conhece.
O capítulo COMUNICA, INFORMA, DECOLONIZA se ocupa de pensar o que é comunicação decolonial e coloca uma reflexão norteadora: “De que forma o Selvagem repensa modos tradicionais do exercício comunicacional e se relaciona com uma comunicação decolonial?”. Ao longo do texto, Cássia pontua que o Selvagem tem muito a ensinar, tanto na produção, quanto na forma de pensar o conceito e transformar a forma tradicional de se comunicar”. Ela olha para o ciclo de estudos um lugar de coexistência de saberes e afirma que isso se dá “pela prática, pelo exercício de coletividade e pela oralidade”.
“As Escolas Vivas aparecem para mim como uma resposta, pista, flecha que indica um caminho de uma comunicação e produção de conhecimento mais conectada com a pluralidade, com as diferentes realidades humanas.”
Em NAVEGAÇÃO, capítulo final da tese, ela volta a falar da dificuldade de categorizar o Selvagem e conta que, na construção da narrativa, optou por abrir mão de definições e focar em compartilhar experiências de cada uma das ações do Ciclo.
Como ferramenta metodológica, Cássia fez uma análise das ‘Experiência de Informação’ baseadas na categoria de Harlan (2012):
- Informação como participação: a comunidade compartilha a noção de que “não há um único pensamento sobre a vida”;
- Informação como inspiração: construção cotidiana de encontros, conversas e trocas informais que muitas vezes abrem diálogos, articulações e inspiram ações;
- Informação como colaboração: movimentos perceptíveis nos grupos da Comunidade Selvagem, onde cada pessoa pode direcionar sua habilidade para a construção de determinada ação;
- Informação como artefato: criação de bens simbólicos ancorados na memória ancestral: percursos, conteúdos, cadernos, livros, filmes…
Após a apresentação dos capítulos da tese, houve um momento de trocas e reflexões entre os participantes da reunião. Diante da pergunta de Clarissa Cruz sobre buscas espirituais do seu passado familiar, Cássia respondeu que construiu um altar para seus ancestrais, agradecendo “às pessoas em quem eu tinha fé”. Para ela, conhecer suas raízes é um ato de amor político pelas avós.
Além de objeto de pesquisa, o Selvagem também esteve presente nas referências bibliográficas. O livro Metamorfoses, de Emanuele Coccia (Dantes, 2020), inspirou não apenas o processo acadêmico, mas também ativou um mergulho subjetivo que levou Cássia a reconhecer-se como uma mulher indígena.
Para nós, que vivenciamos a construção diária da Comunidade Selvagem, foi um presente ouvir as reverberações de nosso ciclo de estudos na trajetória de Cássia. Ela nos brindou com uma pesquisa de doutoramento, a primeira de que temos notícia. Num entrelaçamento generoso, ela nos convidou a um emocionante passeio pelos territórios e tesouros das memórias ancestrais. Sua fala também ofereceu outras lentes para a leitura do trabalho que realizamos, posicionando nossas práticas intuitivas de comunicação em debates contemporâneos sobre decolonialidade.
*A versão final da tese encontra-se em fase de revisão. Assim que for publicada, atualizaremos o artigo com o link para leitura e download.
Texto: Claudia Lima, Bruna Coletti e Mariana Rotili
Edição: Mariana Rotili
Imagens: Cássia Oliveira, Anna Dantes, Livia Serri e Programa Selvagem 2021