Skip to main content

 

DIÁRIO DE APRENDIZAGENS

Vamos acompanhar semanalmente a jornada de Cris Takuá nas Escolas Vivas e Veronica Pinheiro na Casa da Criança, na Escola Professor Escragnolle Dória no Rio de Janeiro. Saiba mais na página do Grupo Aprendizagens.

27/06/2024

TAKUAPU, ECO DO SOM DO SABER – por Cris Takuá

 

Arte: Cris Takuá

 

“Nhanderu ma ombojera raka’e takua’i, ramo haema kyringue kunhã’i oiko ramo ojapo huka’i tuu pe Takuapu’i há’e yn vy ma Ajaka’i, Nhanderu oikuaa huka’i raka’e kunhangue’i pe guãrã, nhandevy oeja nhande rete oapresenta haguã, há’evy há’epy nda’evei avakue pó rupi rive ju jaxevavai haguã, nhandere reko porã’ in haguã py nhanembou. Any ramo takua’i ipiru pa’i harami havi nhanderete nhaendu jaiko axy vy.”

 “O Deus gerou a takuarinha, por isso, quando nasce a bebê menina, o pai faz um Takuapu’i (taquara sonora) ou Ajaka’i (cestinha). Nhanderu gerou takuarinha, para ser o símbolo das mulheres Guarani, por isso nós, mulheres, temos que ser bem cuidadas pelos homens. Não foi em vão que Nhanderu mandou nós pra Terra. Nosso corpo é sagrado, se não for bem cuidado, a takuarinha seca. É desse modo, que nos sentimos quando ficamos feridas por fora e na alma.”

                                                 Mariza de Oliveira, aldeia Itanhaém, Biguaçu/SC

 

Na concentração da noite enluarada se manifestam os cantos das mulheres que, em suas rezas, se conectam com os espíritos guardiões de tudo o que habita a floresta. No compasso desse entoar de vozes e pensamentos, ecoa no chão de terra batida o Takuapu, instrumento musical feito de takuara, que faz conexões entre o Céu e a Terra e entre o visível e o invisível. Em minhas sensíveis meditações alcancei o entendimento sobre o Eco do Som do Saber. Esse significado tão profundo desse instrumento me remete à força e à coragem de seguir em busca do equilíbrio, da serenidade e saúde do corpo, da mente e do espírito.

A Takuá tem muita utilidade na vida Guarani, além de ser um ser sagrado e de muita sabedoria. Com ela, as mulheres trançam a palha para fazer balaio, e também para fazer o telhado das casas. Também se faz o pari, para pegar peixe. São muito importantes todos os usos e a convivência com a takuara na vida Guarani. O Takuapu, esse bastão musical que as mulheres tocam durante sua reza, tarova e também mborai, é feito do tronco da takuara. As mulheres também têm conhecimento do uso da geleia da takuara para amaciar o cabelo e a pele. Das takuaras também nasce o takuaraxó, uma larva que brota no centro do tronco e serve como alimento. E do Takuaruçu, uma takuara específica, toda cheia de espinhos, nasce um takuaraxó que serve como medicina para orientar e dar visões tanto para o povo Guarani como para os Maxakali. As larvas da takuara só nascem a cada 30 anos e servem como um modo de contar a idade da pessoa. Se tem 30 anos, diz que tem uma takuara, se tem 60, duas takuaras. Tem gente que chega a viver três ou até quatro takuaras. 

Foto: Carlos Papá

O ciclo de vida da takuara está relacionado ao conhecimento da vida Guarani. Com 30 anos, a takuara morre, seca, depois floresce e dá essa larva. A takuara tem um sumo quando amadurece, e as larvas vão comendo esse sumo. Então a takuara seca e as sementes caem, voam por aí. Os ratinhos, os passarinhos comem as sementes, mas algumas brotam. E o broto vai se espalhando, criando touceira.

Estamos observando que está diminuindo muito as takuara na floresta, possivelmente pelo aquecimento do clima da Terra, mas também porque os mais jovens não estão mais sabendo respeitar o ciclo de vida dela ou não estão mais se importando com isso e dessa forma. Ela não está conseguindo amadurecer e se espalhar como antes. Tudo na vida tem seu ciclo e seu tempo de se transformar e renascer. Respeitar o tempo de cada coisa é saber caminhar lentamente sobre o território.

Foto: Carlos Papá

Carlos Papá conta: “desde que a takuara surgiu no mundo, já fizeram coisas que não se devia fazer com ela, por isso ela se transformou em palha. A takuara, que a gente chama Takuá, é uma das filhas de Nhanderu Papá, nosso pai celestial. Dizem que Anhã, irmão de Nhanderu, queria ter uma companheira e se interessou por uma das filhas de Nhanderu, a linda Takuá. Anhã pediu ao seu irmão que a sobrinha pudesse o acompanhar pelo mundo. Nhanderu aprovou, mas disse que ela jamais poderia entrar na água. Poderia até se molhar, mas nunca mergulhar. Anhã ficou muito feliz, e Takuá o acompanhava em todos os lugares. Teve um dia em que eles foram até uma cachoeira. Anhã mergulhou na água e ela ficou olhando. Então ele a convidou para entrar, mas ela não quis por causa da recomendação do pai. Porém, Anhã não acreditou que haveria problema e a puxou pelo braço. Ele disse que o irmão implicava com tudo que era gostoso, por isso havia proibido. Takuá pediu então que Anhã não a soltasse. Ela estava gostando muito! Mas ele acabou soltando seu braço para que ela experimentasse mergulhar no rio. Não vendo mais a moça, Anhã tentou puxá-la novamente pelo braço e tirou da água um cesto. Ele começou a gritar por ela, mas só havia o cesto, que começou a se desfazer. Depois Anhã foi até o irmão com o cesto desfeito na mão. Disse que Takuá tinha desaparecido e ficou apenas aquela palha. Nhanderu pediu a palha e trançou de novo o balaio. Fez balainho bem bonitinho de novo e encostou de lado. Disse então a Anhã que agora Takuá não iria mais com ele, pois ela não lhe servia de companheira. Anhã disse que não queria mais aquela mulher porque ela era de palha e era muito complicada. Então Nhanderu disse à Takuá que ela ensinaria as mulheres como ser bela e fazer coisas bonitas. Takuá até hoje vive num lugar de Nhanderu amba, a morada celestial. Chamam Takuá as mulheres que têm o Nhe’e, o espírito, desse lugar. Elas são muito cuidadosas e verdadeiras, Takuakypy’y, as irmãs mais novas de Takuá.”

Arte: Wera Mirim

25/06/2024

NA NATUREZA, NADA VIVE SOZINHO – por Veronica Pinheiro

 

Foto: Wagner Clayton

 

Começamos o último texto do semestre com as palavras da professora Miriam. Ela trabalha na Escola Escragnolle Dória em dois turnos, manhã e tarde, atendendo 62 crianças de 5 e seis anos de idade de segunda a sexta.

 

“Desde a chegada da equipe Selvagens em nossa escola, temos observado e experimentado um novo movimento dentro da escola. Tanto pelo acesso a materiais que não são tão comuns nas salas de aulas de escolas públicas, mas também por ter quem nos conduza a ter um olhar mais minucioso no que temos de mais rico ao nosso redor. Escolas em áreas conflagradas como as nossas, onde as crianças têm os ouvidos treinados para o tiro, fazê-las silenciar para ouvir os pássaros, o barulho do vento ou o que se passa dentro de si e transformar em arte, é quase mágico. Quase, a linha entre o mágico e o real é tão tênue que ora ou outra invadimos a sala de aula da colega para fotografar como uma urgência de querermos parar no tempo.

Vê-los pintar com a tinta que produziram a partir da terra encontrada no chão da escola, revelar fotos das folhas e galhos que caíram do quintal dali, observar a natureza que compõe o nosso território… Observar, criar, produzir. Uma sequência rica de significados que eu, enquanto professora, me dou o luxo e me permito também ser aluna naquele momento. Sento como meus alunos, espero meu pedaço de argila, me junto a eles com inúmeras perguntas, todos tentamos, fazemos o nosso melhor, sorrimos com o resultado, terminamos orgulhosos de nós mesmos pelo o que fomos capazes de criar. Voltamos para sala de aula certos de que todos somos talentosos, desmistificamos que todo professor sabe tudo. Voltamos para aula com um novo olhar sobre nós mesmos. Acho que todos que têm feito parte do projeto têm se sentido dessa forma. Somos levados a ter novas conclusões sobre nós mesmos, temos nos vistos como parte importante da natureza e temos percebido como ela nos impacta tanto quanto nossas ações a impactam.”

 

Anna Dantes, Madeleine Deschamps e eu tivemos longas conversas em dezembro de 2023 e janeiro de 2024 sobre caminhos de aprendizagens e sobre possibilidades de desdobramentos das oficinas e dos projetos realizados em 2023 com o Grupo Crianças. Falamos sobre criar vínculos com escolas e professores. Quando subitamente precisei retornar ao trabalho na Prefeitura do Rio, conversamos sobre como poderíamos ativar os estudos e pensamentos presentes nos ciclos Selvagem numa sala de aula. Em algum momento pensei em retornar ao trabalho como coordenadora pedagógica, mas aceitei o desafio de voltar como professora de sala de leitura numa escola de crianças. As crianças sempre estiveram presentes na minha vida, mas nunca estive como professora atendendo regularmente os pequenos em sala de aula.  

Lembro de ficar feliz em me tornar a “professora da sala de leitura”. Lembro de rir e lembrar de minha avó lendo a borra do café na xícara, as nuvens e os olhos das crianças. Dorvelina, mãe de minha mãe, não sabia ler ou escrever em português, mas lia a vida e interpretava sonhos. Ler e interpretar, lá em casa, era coisa do cotidiano, quase nunca relacionada aos livros. “A gente olhava e lia a terra.” Tudo era texto e tudo poderia virar texto. Os livros chegaram lá em casa recentemente. Achei engraçado isso de ser a mediadora das rodas de leituras de uma escola de crianças. Agradeci em silêncio a gentileza que a vida me fez: estávamos diante da possibilidade de iniciar um percurso de Aprendizagens em diálogo com a vida.

O que é compartilhado nos diários é apenas uma parte do trabalho, pois nosso percurso é trilhado por muitos pés. Oficinas, passeios, organização de propostas e materiais só acontecem porque o Grupo Aprendizagens é formado por uma rede invisível que se expande, interligando cuidados preciosos. Chegamos ao Complexo da Pedreira sonhando despertar memórias e fortalecer as conexões das crianças com o território. Para além das problemáticas que tornam os dias difíceis, fazemos menção ao território ancestral, natural e orgânico. Lembramos às crianças e aos professores que somos natureza, natureza viva e pulsante.

Madá se preocupou com a carga horária semanal que eu teria de cumprir e como isso poderia me sobrecarregar. Juntas acreditamos e sonhamos orçamentos, passeios, oficinas e uma “festa cósmica” para o final do ano com crianças vestidas de estrelas e planetas. Encerramos o semestre felizes. Praticamos o bem viver numa terra que só é conhecida por seus males. O poeta disse que “Fundamental é mesmo o amor/É impossível ser feliz sozinho”. Apesar de todo desafio, tudo foi mais feliz e potente do que imaginávamos. A escola nos respondeu muito mais rápido do que esperávamos. Está sendo fundamental seguir em amor e juntos. Ubuntu, sou porque somos. Tal qual as árvores da floresta que só existem porque estão intimamente ligadas, o percurso Aprendizagens está intimamente ligado a uma teia de seres regenerantes. 

Juntos aos relatos que recebemos de professores e grupos de pesquisas, neste semestre, fomos convidados pela Gerência de Relações Étnico-Raciais, da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, para a IV Jornada da GERER – Caminhos e perspectivas para futuros possíveis¹. Como resposta ao convite, preparamos um Guia de Aprendizagens Selvagem, GAS, para ser compartilhado com 1544 Escolas Públicas de Ensino Fundamental na cidade do Rio de Janeiro. “Cuidado não é troca, é compartilhamento”, já dizia Nego Bispo. Não criamos nada. Quando chegamos ao Complexo da Pedreira, já existiam muitos outros compartilhantes que nos receberam. Desde o algodoeiro na entrada da escola aos pássaros que nos visitam todas as tardes, agradecemos a toda vida e a todos os seres que estiveram conosco neste semestre.

Àwúré

 

¹Material Complementar da Jornada de Relações Étinico-raciais. https://sites.google.com/view/gerer-sme/jornadas-da-gerer/iv-jornada-da-gerer

20/06/2024

A FORÇA DAS MONTANHAS – por Cris Takuá

 

Foto: Carlos Papá

 

Avózinha montanha

A força das pedras 

Em meio à imersão da Espagiria 

Muito profundos os ensinamentos

trazidos de tempos muito antigos 

A cura é um delicado diálogo

Com os elementos 

Com todos seres 

Que nos possibilita a transformação 

E tece laços de animação 

Para o fortalecimento das crianças 

 dos Territórios 

E o acordamento das memórias 

Viva viva as Escolas Vivas 

Viva os laboratórios vivos 

Das Casas de Essências.

 

Foto: Ju Nabuco

Caminhando por entre montanhas e vales, chegamos em São Gonçalo do Rio das Pedras em Minas Gerais, terra sagrada de muitas pedras e histórias. Durante três dias acompanhei os coordenadores das Escolas Vivas Guarani e Tukano-Desana-Tuyuka, e três jovens que foram junto. Falamos de História, Filosofia, Alquimia e Espagiria (a arte de produzir remédios, separar e unir, extrair e purificar através da sensível arte de conhecer a matéria dos seres).

Dialogamos sobre conhecimentos profundos e, através da troca entre o grupo reunido, sentimos que o conhecimento, quando entra dentro da gente, ele fixa e não sai mais. A partir das disposição em escutar com atenção nos permitimos  sentir e perceber o que nos rodeia. Tudo o que desce do céu e sobe da Terra transmuta e nos orienta nessa caminhada de estudos e aprofundamentos na busca do Bem Viver.

Fotos: Ju Nabuco


O sonho das Escolas Vivas é ativar, animar e criar teias de afetos e cuidados, onde possamos caminhar cuidando de quem cuida e incentivar a semeadura dos saberes. Quando plantamos um jardim dentro nós a gente assume a responsabilidade de ser um agente multiplicador e capaz de ultrapassar a barreira do visível e a enxergar e dialogar com os seres invisíveis.

Um grande amante das plantas foi Paracelso, filósofo e médico do século XVI. Ele dizia que os humanos começam a adoecer quando se afastam de Deus, a natureza. Ele dizia que:

Quem nada conhece, nada ama.

Quem nada pode fazer, nada compreende. Quem nada compreende, nada vale. Mas quem compreende também ama, observa, vê…

Quanto mais conhecimento houver inerente numa coisa,

Tanto maior o amor…

Aquele que imagina que todos os frutos amadurecem ao mesmo tempo, como as cerejas, nada sabe a respeito das uvas.”

Assim passamos três dias dialogando, colhendo plantas e preparando remedinhos e, nesses momentos tão sensíveis, aprendemos que a força do céu que está na planta desperta a força que habita em nós. Mas nos processos criativos de transformação da matéria precisamos de atenção e concentração. Pois a dispersão pela fala demasiada e a desatenção provocam o desperdício do tempo.

Foto: Ju Nabuco

Dessa forma pude sentir e compreender a profunda relação com os elementos fogo, terra, água e ar e com os seres elementais: vegetais, animais, minerais e universais. Numa profunda conexão de tempos ancestrais onde filosofias Guarani, Tukano, Maxakali e lá do Egito se cruzaram e dialogaram numa profundeza encantadora.

Os jovens se inspiraram, cantaram, choraram e poetizaram suas percepções e inspirações de seguir caminhando, fortalecendo as Escolas Vivas e o sonho de alcançar a boa e bela forma de ser e estar em seus territórios.

Foto: Ju Nabuco

18/06/2024

ONDE ESTÁ A MATA? ESTÁ DENTRO DO PEITO – por Veronica Pinheiro

 

 

A sala de leitura da escola se assemelha a uma biblioteca em organização e funcionalidade. Livros em prateleiras, divididos por assunto; mesas grandes e cadeiras. Um espaço planejado e que leva em conta a área de armazenamento, a área de atividade, a área de circulação. Algumas regrinhas gerais são comuns em ambientes de leitura: entrar somente com o material necessário para o estudo; entrar de forma “disciplinada”; manter a voz e os gestos em tom discreto para não atrapalhar os demais leitores.

As primeiras histórias que conheci não estavam em livros guardados em prateleiras. As primeiras narrativas e lições que aprendi saiam da boca de Dona Cassiana, uma anciã, que ficava no final da tarde sentada num banco de madeira, sob o pé de aroeira, lá no morro onde nasci. Para saber o final de uma história, às vezes, tínhamos que esperar o dia seguinte ou ir atrás de Dona Cassiana enquanto ela cuidava das plantas. Ela rezava as crianças e dava colo enquanto rezava. Era uma reza-história, cantada e coreografada com folhas. Lembro de um dia ter procurado por ela e não a ter encontrado. Nunca mais a vi. Pouco depois do sumiço de Dona Cassiana, sumiu o banco e o pé de aroeira. Mas as palavras contadas, cantadas e rezadas me acompanham até hoje. 

Hoje, sou a velha que conta quadras para meninos. Essa semana, cheguei à sala de leitura e retirei todas as cadeiras. Retirei também as mesas e apaguei as luzes. E acendi minha fogueira no meio da sala. No chão, colchonetes, 15 exemplares de um mesmo livro e eu sentada tal como a velha Cassiana ficava esperando por mim. 

 

 

Aprendi com Carlos Papá que o escuro acolhe todos, não fazendo distinção de pessoas. E foi no escuro da sala que nos encontramos com as narrativas de avós e compartilhamos cuidados e gentilezas. “O que é isso?” “Um acampamento, você não está vendo” Eu acompanhei a entrada deles somente com olhos e ouvidos, nada falei. “É um acampamento sim. Olha a fogueira.” “Vamos sentar porque está de noite e frio.”  Era 8h da manhã e fazia 31ºC do lado de fora da sala, dentro da sala tempo e lugar deslocavam-se sem convenções. 

Eles sentaram em roda. A primeira turma que recebi neste dia tinha 28 crianças presentes, a maioria com 8 anos de idade, e estavam curiosas para saber o que iria acontecer. Na primeira ação, eles formariam duplas de leitores. Pedi para que um aluno que já soubesse ler se unisse a um colega que ainda não soubesse ler. Feitas as duplas, eles precisariam escolher um cantinho na sala de leitura para ler a história. Cada dupla se aninhou e se escondeu da forma que pode e desejou. Montaram cabaninhas e criaram tocas para ler. Disse a eles que a aprendizagem é um processo em que todos colaboram da forma que podem. Eles assumiram o cuidado com seus amigos de turma. Fiquei observando como lentamente quem ouvia ia escorregando pelo colchonete até deitar para ouvir atentamente as palavras lidas pelo amigo. E sem ter intencionado, naquele momento estabelecemos uma outra relação com aquele chão. Todas as vezes em que deitamos no chão da sala de leitura tinha sido para nos proteger do tiroteio. Pela primeira vez, não era o medo que nos levava ao chão. Era a terra nos ensinado a fortalecer vínculos. A professora da turma entra pensando que a sala estava vazia e se surpreende com a cena e os gestos. Sensivelmente, ela se retira sem ser percebida. 

 

 

Nossa segunda ação era sentar ao redor da fogueira novamente. Agora a história seria lida por mim, e acompanhada por todos, cada um com um exemplar do livro nas mãos. Era uma solenidade, as chamas da fogueira de led aqueciam nossa roda. Comecei assim:

“Sônia Rosa, a autora do livro, dedica este livro aos seus dois sobrinhos-netos: Phelipe de Oliveira Nunes e Vitória Oliveira Silva. Eu, Veronica, dedico esta leitura aos meus alunos presentes sentados ao redor da fogueira comigo.” 

Os tesouros de Monifa é a história de uma menina que, no dia de seu aniversário, foi escolhida para ficar com o “tesouro” de sua família. Monifa era o nome da bisavó da avó da menina. Monifa chega ao Brasil num navio negreiro e escreve muitos diários cheios de sonhos, rezas e canções. Minha voz tentou acompanhar a solenidade do momento, mas meus olhos decidiram por si só regar a terra. Não só os meus, mas muitos olhos regaram a terra naquele dia. À medida que líamos, mais perto ficávamos um dos outros. A roda logo se tornou um ninho. Uma mão pequena e macia colhia as lágrimas que me saiam dos olhos para não molhar o livro. Outras mãos me amparam os ombros e as costas. Mais um par de mãos percorriam minhas tranças. 

Não me lembro de já ter chorado na frente de uma turma. No começo do ano eu era “a tia que dava colo” para as crianças que choravam na semana de adaptação. No meio do acampamento de leitura, eu era cuidada pelas crianças que entenderam que, no processo de aprendizagens, cada um coopera como pode. Passei então a receber cuidados. Eu li a história, e eles liam os bilhetes de Monifa. 

Ao redor da fogueira, sentados no chão nos abraçamos no fim da leitura. 

Alguém falou que no nosso acampamento só faltou uma coisa: “marshmallow”. Outro acrescentou que faltaram duas coisas: “marshmallow” e a mata. Antes que eu conseguisse formular resposta, Enzo, que parece nunca estar ouvindo o que falamos, disse: “Faltou só ‘marshmallow’ mesmo, a mata tá dentro da cabeça.”

Monifa significa “eu tenho sorte”. Cheia de mata dentro, ali eu era a pessoa mais sortuda do mundo.

 

Fotos: Wagner Clayton

13/06/2024

PALAVRAS SOPRADAS – por Cris Takuá

 

Arte de Juliana Russo

 

Boas e belas palavras 

Massageiam a alma atenta.

Pensamentos invadem de magia meu ser

Em busca de entendimento

Dos mistérios das ciências da floresta.

As palavras como um sopro

Saem ecoando nossos pensamentos,

Voam e bailam no ar

Em busca dos conhecimentos, 

Mas nem sempre se fazem 

Claras e entendíveis 

Aos seres que as recebem,

Podendo causar arrepio ou 

Profunda emoção.

Como é difícil a suave comunicação

Em um mundo mergulhado em informação!

As palavras curam,

Alegram 

E também machucam

Se mal colocadas!

Precisamos cuidar de nossas palavras 

Para que os sentimentos 

Não perturbem nossos sonhos

E nosso caminhar.

Prossigo minha pesquisa 

Ora sonhando 

Ora acordada

Mirando seres sagrados

E buscando sabedoria e tranquilidade

Para seguir poetizando meu silêncio

Múltiplo e profuso.

A certeza a cada novo amanhecer 

De mais harmonia 

De mais alegria 

Entre os seres 

Entre o visível e o invisível

Entre o indivisível que habita 

Na terra e no mar. 

É preciso calar, 

É preciso amar,

É preciso sentir mais,

É preciso ser a gente mesmo

A cada instante, 

A cada suspiro de nosso viver.

Vai caminhante antes do dia nascer,

Vai caminhante antes dos sonhos 

A noite tecer…

 

Arte de Fabiano Kuaray

 

Para os humanos, a palavra, esse código ancestral comunica pensamentos e constrói pontes entre os mundos. Há muitos e muitos séculos, cantamos, rezamos, pronunciamos e sopramos mensagens de transformação.

Saber se colocar, entrar e sair de todos os lugares é uma ética para se dispor a conviver com a diversidade de seres que pensam e anseiam alcançar a sensível sabedoria de sentir sua própria sombra.

Disputas ideológicas muitas vezes causam atritos e podem afastar a energia que construímos e nomeamos como amizade, respeito e troca de conhecimento.

Refazer ou reconstruir a teia das relações nos exige uma capacidade de compreender a imperfeição que habita em nossa humanidade, tão machucada pelas contradições do dia a dia.

Quando compreendermos que o amor é uma partícula invisível que une e nos faz enxergar a nós mesmos, entenderemos que nada, ninguém e nenhuma palavra mal soprada poderá acabar com uma amizade verdadeira.

11/06/2024

EU NÃO SABIA QUE ERA TÃO BONITO – por Veronica Pinheiro

 

 

“A GENTE PRECISA APRENDER A SE ENVOLVER COM A TERRA, COM OS NOSSOS RIOS, FLORESTAS E MONTANHAS.
Envolver não significa essa bobagem de interesse privado de ser dono daquele rio.”
Ailton Krenak¹

 

Choveu tanto na tarde e na noite do dia 04 de junho na cidade do Rio de Janeiro que perdi a conta das pessoas que mandaram mensagem perguntando se a visita ao Pão de Açúcar, dia 05 de junho, seria cancelada. Chegamos à segunda imersão do Percurso Aprendizagens: o encontro das crianças com as águas da Baía de Guanabara. Quando confirmado o encontro, não havia previsão de chuvas para o dia do passeio. A previsão mudou, mas optei por confiar nas águas e no Sol. O encontro não foi desmarcado. Saí de casa com muita chuva. Chegamos à escola para encontrar as crianças debaixo de chuva. No entanto, optei por confiar nas águas e no Sol. 

Tania e Ericka, companheiras de sonhos e Sol, foram direto para o local de visita. “Veronica, aqui não chove. Muitas nuvens.” “Diga ao Sol que contamos com ele. Diga a ele que as crianças já já sairão da escola”. Café da manhã servido na escola, era hora de embarcar no ônibus rosa e reencontrar nosso gentil motorista. 

Um acordo não palavrado ficou firmado na Favela da Pedreira: Se o ônibus rosa está presente, as crianças vão passear; logo é preciso que elas saiam e retornem à favela com tranquilidade. Os caminhos que levam à escola são desobstruídos para que nosso ônibus passe, somos observados do embarque até a saída do complexo. As crianças não percebem que a comunidade de alguma forma também muda sua rotina para que elas vivam dias de alegrias. Me comoveu ver que a comunidade e o poder paralelo se preocupa com o bem-estar das crianças e professores.

Saímos da escola. Não chovia mais. “Vamos subir e ver nuvens; com o tempo nublado não dará pra ver nada.” Ouvi, não respondi, pois confiava nas águas e no Sol. A caminho do Pão de Açúcar, passamos pelo Rio Acari. Nosso rio querido, que corta toda região da escola. Um rio largo que nos ouve. Um rio testemunha da vida e do terror imposto à região. Um rio que ainda guarda seus encantos, jacarés e capivaras. O Rio Acari é um dos maiores cursos de água do Rio de Janeiro, ele é o motivo do nosso passeio². Acari é tão forte que macrobiologicamente resistiu até pouco tempo. Nos despedimos do rio e seguimos viagem. Percorremos 40 km até o Pão de Açúcar. Subimos o Morro da Urca e o Morro do Pão de Açúcar para observar de cima as águas da Baía de Guanabara.

Durante a vivência, as águas e o Sol nos receberam como quem recebe parentes queridos. Não chovia, as nuvens se recolheram num outro lugar para que pudéssemos contemplar tudo quanto se era possível ver das alturas. O Sol nos guardou na subida e descida dos morros, seu brilho refletido nas águas encantou todo grupo. Foi a primeira vez que não vi medo nos olhos das crianças. As crianças se abraçavam e andavam de mão dadas. Sorriam sorrisos largos e duradouros. Tinha hora que eu jurava que via os sorrisos delas refletidos no mar. Algumas choraram. Duas choraram muito e não sabiam dizer exatamente o porquê. Ao contrário dos sorrisos, os choros eram curtos e breves. Tenho certeza de que era só o mar que mora dentro do peito e que não quis se conter. 

Éramos 10 adultos no passeio, e lá entendi que não haveria mediação. Cada adulto tinha 4 crianças para acompanhar. Andávamos bem próximos, era dia de festa. Eu pouco falei, a natureza não carece de mediador. As águas, o Sol, as Plantas, os Pássaros, os Micos, o Vento falavam tanto, tanto, que me assustei com tamanha receptividade. Tudo chamava muita atenção das crianças, os aviões que pousavam bem na nossa frente, os turistas falando inglês, as plaquinhas que um amigo lia para o outro que não sabia ler. “Tá escrito que a baleia vai passar aqui até setembro” “Jura! É hoje? Lê direito e veja se tem dia.” A baleia não passou no dia 05 de junho. 

Muita coisa foi curada em nós naquele dia. Há quem tenha horror em ouvir que a educação pode curar. Aprendi com os mais velhos quilombolas e indígenas que tudo pode ser cura: cantos, palavras, comidas, abraços, conselhos. Quando estávamos nos encaminhando para descer, um helicóptero pousou no heliponto do Pão de Açúcar. 

“Tia, o que o helicóptero quer?” 

“Ele não quer nada, meu filho.” 

“Tia é tiro?” 

“Não. São pessoas passeando, elas entram no helicóptero para passear e ver toda cidade de cima.”

O menino de 11 anos só conhecia o helicóptero no contexto da guerra urbana. A polícia no Rio de Janeiro tem uma frota de helicópteros. As aeronaves blindadas são utilizadas em operações policiais, e os meninos sabem que quando tem helicóptero é que a situação está pior que o habitual. O helicóptero da reportagem eles também conheciam. Mas helicóptero de passeio? De passeio, não. Isso porque a cidade separa. A cidade tem muros rígidos para excluir muitos e guardar alguns. O capitalismo determina os significados que os signos terão dentro de uma mesma cidade: para meu aluno, helicóptero significa perigo; para turistas, diversão. 

Mas a minha observação sobre as cidades é que elas funcionam como um verdadeiro sumidouro de energia.” Ailton Krenak

“Tia, então a gente tá na Europa?”

A pergunta me doeu o peito, não pelo desconhecimento geográfico. Mas por esse menino entender que não faz parte daquele Rio de Janeiro. Porém era dia de festas e encontros de vida. Mais uma vez a vida presente na natureza, a mesma vida natureza que sustenta o menino, nos abraçou novamente. Suspensos no ar, dentro do teleférico éramos só gente, ar, montanha, água, pássaros, Sol e água. O mesmo menino chorou abraçado à diretora da escola. Ele me disse que não vai esquecer de cuidar da natureza.“Tia, eu não sabia que era tão bonito.” “Você é natureza, igualzinho a essas montanhas e as águas da baía.” 

Esse passeio inaugurou um outro movimento de conversas sobre a vida das pessoas e  sobre a vida dos rios na escola.

Ahh, quando descemos do bondinho, as nuvens recobriram os céus naquele lugar. Pedi a chuva para esperar a gente voltar pra casa. Ela nos ouviu.

Quando foi transferido o sentido da vida para ter coisas, a gente já começou a se afastar da Mãe Terra. Essa mãe maravilhosa que chama a atenção da gente, inclusive para falar: “Ei, vocês estão vivos”. Quando uma mãe dá uma bronca dentro de casa, ela não está só dando uma bronca para a gente não estragar a casa, ela está dando uma bronca para dizer: “Vocês estão vivos”. Pra gente não se alienar do sentido de estar vivo. (Ailton Krenak) 

Fotos: Ericka Hoch

 

__________________

¹ “Trocamos nossa humanidade por coisas.” https://revistatrip.uol.com.br/trip-fm/ailton-krenak-trocamos-nossa-humanidade-por-coisas 

² “Cadê o rio que estava aqui?” https://selvagemciclo.com.br/diario-de-aprendizagens/#tab-1717677150043-1 




06/06/2024

ANDAR COM CONSCIÊNCIA – por Cris Takuá

 

Arte: Fabiano Kuaray    

     

     Ero Tori  (Façam surgir a consciência) 

     Ero Tori Tori 

     Ero Ta kua (Façam alcançar o som do conhecimento )

    Ero Ta kua ta kua….

 

Quando sentimos os ensinamentos transmitidos pelos mestres e mestras do saber, percebemos que somos direcionados a aprender a nos colocar no mundo, na relação com tudo e com todos que nos rodeiam. Todos os seres possuem uma profunda interação com a grande teia da vida, desde que desabrocham nesse mundo. Nós, humanos, somos seres imperfeitos, mas capazes de uma transformação possível para alcançar o Arandu, a sensível sabedoria de sentir a nossa própria sombra. Mas, para isso, temos que estar dispostos a andar com consciência, andar sentindo o som do conhecimento, que nos possibilita enxergar para além das aparências. 

As crianças são seres sensíveis, observam cada sentido das coisas. Tenho observado em muitos momentos as crianças questionando os adultos por suas atitudes contraditórias. Alcançar e andar com consciência compreende superar a contradição nas ações diárias. Sinto e vejo abelhas, formigas, cachorros, galinhas e tartarugas com sensibilidades e ações conscientes muito mais equilibradas do que a de muitos humanos.

O grande mistério da vida está em atravessar o portal do que os nossos olhos nos possibilitam ver e mergulhar no infinito mundo das redes de conexões dos saberes e fazeres que são os códigos de acesso ao entendimento. Durante os muitos anos em que dei aula numa escola, insistentemente eu sempre cutucava meus alunos para sentirem e estarem atentos à consciência ao caminhar, ao falar e ao se manifestar no mundo. Nem sempre eu era compreendida por eles ou por algumas lideranças, que sempre achavam que eu estava querendo falar de política. Uai? Política?

O que será a política do nosso próprio terreiro senão a de respeitar todas as formas de vida? As montanhas, os rios, as formigas e as cotias. Semear a micropolítica é algo muito encantado, porém desafiador. São séculos de deterioração do Teko Porã, a boa e bela maneira de Ser e Estar num território. Andar com consciência compreende se permitir a praticar essa delicada e sofisticada tecnologia ancestral, o Bem Viver.

Foto: Anna Dantes

Desde que saí/fui tirada da sala de aula formal, curiosamente, por todos os lugares em que tenho caminhado, me encontro com crianças, em oficinas, rodas de conversa e vivências. E escutando e percebendo o modo como elas concebem a relação das coisas, me surpreendo com a capacidade que as crianças têm de andar com consciência, de sentir o som de tudo que as rodeia. 

Criança deveria ser liderança nesse mundo de tantos humanos desmemorizados e sem consciência!

Séculos se passaram e a nossa humanidade escravizou plantas, peixes e montanhas em nome de uma razão delirante, que passou a julgar e comprar/descartar tudo que não corresponde ao padrão estabelecido.  Preocupados com o desenvolvimento, a ordem e o progresso, adultos humanos criam leis e fazem guerras. 

Enquanto isso, crianças em todo o mundo estão a observar esse descompasso e a se posicionar perante a ética que permeia nossos envolvimentos com a vida e não o desenvolvimento dos seres viventes.

Qual a ética que envolve suas relações no dia a dia?

Para andar com consciência e alcançar o som do entendimento das coisas devemos silenciar e escutar mais as crianças.

Foto: Vhera Poty

04/06/2024

ESSA SEMANA NÃO RECEBI BILHETES – por Veronica Pinheiro

 

A escola está fechada. Hoje não tem foto. Essa semana não vi as crianças. A escola está fechada. O acesso está mais difícil que o comum. “Usem crachá”. “Esperem antes de sair de casa”. Não saia de casa! 

Alternamos entre semanas de encantamentos, euforia, alegrias e medo. Perigo difuso. Perigo concreto. Esta semana não recebi bilhetinhos, nem abraços de braços curtos.

Essa semana me lembrou meus primeiros dias na escola. Na ocasião, a sala de leitura ainda não podia ser usada. Em uma caixa colorida, eu colocava os livros que leria com as turmas em sala de aula. Levava na caixa livros para todas as crianças. Onde eu estivesse com aquela caixa, lá estava a sala de leitura. Era um exercício, meu e das crianças, de transformar o lugar. A mágica sempre estará no encontro. Formada a roda de leitura, a gente podia estar e ser o que bem quisesse.

No primeiro mês de aula, lemos juntos Manu e Mila, de André Alves. Numa turma do 3º ano do Ensino Fundamental, distribuí os livros para crianças de 7 e 8 anos de idade. Alfabetizadas em português, ou não, todas recebem um exemplar do livro. Se tem uma coisa que criança que não lê faz com facilidade é imaginar. Enquanto não somos obrigados a enquadrar o que pensamos, sonhamos e sentimos sem regras gramaticais, confiamos no repertório interno com muita força. O repertório interno é todo um mundo que a criança traz de casa – as brincadeiras, as crenças, os saberes, os sabores. A escola regular, em muitos momentos, ignora  a vida vivida pelas crianças e trabalha para que elas façam o que a Base Comum Curricular espera delas.  

Quando entrego livros nas mãos das crianças, digo que, mesmo que elas não entendam as palavras, podem ler cores, desenhos, símbolos e traços. Elas podem também fingir que estão lendo. Podem inclusive fechar os olhos e dormir enquanto eu leio. Antes que alguém julgue absurda a permissão que dou às crianças, trago uma informação: alguns alunos moram em locais onde acontecem bailes e festas que começam às 21h de um dia e terminam às 8h da manhã do outro dia. 

Antes de iniciar a leitura digo tudo o que pode. Num ambiente que se especializou em dizer o que não pode, poder é subversão. Lemos em voz alta e com brilho nos olhos Mila e Manu, a história de dois amigos que procuravam a “ALEGRIA”. Foi uma leitura delicada que plantou pensamentos bonitos nas crianças e em mim. Durante a leitura, recebi dos gestores da unidade uma notificação de perigo e que as crianças não poderiam sair das salas. Corredores e banheiros são nossos lugares mais vulneráveis. Lembro de terminarmos a história deitados no chão da sala porque o tiroteio estava muito perto. Lembro de compartilhar um cuidado que eu não sabia que era capaz de compartilhar. Lembro de desejar de todo coração nunca mais ver as crianças deitadas no chão para se proteger de tiros. 

Lembro também de passar 2h em absoluto silêncio ao chegar em casa; era um silêncio da boca pra fora porque dentro existia uma barulheira de causar medo. Fazia tempo que eu não sentia medo. Medo por mim, que saí da zona de perigo. Medo pelas crianças que dormiriam lá. 

Quatro meses depois desse episódio, recebemos orientações para ficarmos em casa. Apenas um dia na semana a escola abriu, mas as crianças não apareceram. Eu estava lá com tintas, livros e uma fogueira artificial. Comprei uma fogueirinha de LED que simula chamas reais. Uma tentativa de aquecer os corações gelados de medo. Mas as crianças não estavam lá. Sentada à beira da fogueira de faz de conta, ouvi a voz de uma professora que pouco fala comigo. Ela entendeu o convite, conversamos a manhã inteira, ela me contou de suas turmas e trajetória em escolas. Descobrimos, por conta da fogueira, que temos muitos sonhos em comum. De alguma forma, nos aquecemos uma à outra… Saí da favela cantando um samba antigo de seu Nelson Cavaquinho. O mesmo samba que eu cantava quando eu era jovem e voltava tarde da universidade. Eu cantava para espantar o medo de subir sozinha o morro onde eu morava. Cantava para aquecer o coração e espantar o medo, assim meu avô ensinou. No último dia de escola aberta, cantei para sair da escola.

 

“Quando eu piso em folhas secas

Caídas de uma mangueira

Penso na minha escola

E nos poetas da minha estação primeira

Não sei quantas vezes

Subi o morro cantando

Sempre o Sol me queimando

E assim vou me acabando

Quando o tempo avisar

Que eu não posso mais cantar

Sei que vou sentir saudade

Ao lado do meu violão

E da minha mocidade”

 

Enquanto escrevo, recebi a mensagem que podemos retornar. Que sejam bons os dias que virão.

Awrê

30/05/2024

AVÓZINHA DO MUNDO: ARAUCÁRIA – por Cris Takuá

 

 

Hoje sonhei com a avózinha das florestas

A grandiosa mestra

Conhecedora dos sábios segredos 

Da ciência das ciências dos mistérios.

Em poucas palavras ela foi me tecendo

Pensamentos, me revelando caminhos 

Me orientando e mostrando a

Incrível delicadeza que habita

Na simplicidade das coisas.

Meu espírito voou e percorreu

Vales e montanhas 

Bailou, rodopiou e sentiu

A profunda liberdade que reside 

Na morada sagrada dos espíritos secretos. 

Não há saber maior que o Amor!

A cada dia nos surpreendemos 

Com as revelações que surgem 

No novo amanhecer 

Na noite fria mergulhei em busca de entendimento

E pra minha surpresa, 

A grande mestra lá estava 

Em seu trono sagrado sentada 

A me esperar

Nas longas caudas de uma Araucária 

Com sua flauta e seu Maracá 

Só me aguardando pra junto a ela

Prosseguir com a cantiga 

E soprar poesias para os quatro cantos

A fim de colorir e massagear

Os seres dessa Terra!

Cansados e sofridos 

Pela falta de entendimento.

Oh seres caminhantes, despertai-vos

Desse sono profundo 

E sentis a saborosa magia 

Que mora no silêncio cantante

Dos pensamentos seus!!!!

Foto: Carlos Papa Tekoa Yvyty Porã, RS

Há milhares e milhares de tempos surgiu esse ser sagrado Kuri, como chamam os Guarani a araucária. Essa árvore tão antiga é uma avózinha vegetal do mundo. Registros arqueológicos mostram sua existência e resistência há muitos séculos. Nesses tempos todos, as araucárias já presenciaram muita luta, resistência e também muita beleza; uma memória ativa que, lá do alto de suas verdes copas, presenciam.

Nas últimas semanas estamos presenciando no Rio Grande do Sul um profundo desequilíbrio atingindo a vida de seres humanos e não humanos. O transbordamento do Rio Guaíba, do Rio Taquari e de tantos rios que, machucados pelas duras ações humanas, não aguentaram a pressão da chuva grande e inundaram, destruíram e deixaram seu recado.

Os Ija kuery, guardiões de tudo que habita nessa Terra, estão cansados dos seres humanos, imperfeitos e desajustados. Há muito tempo estão a observar as pegadas tão pesadas do agronegócio, da mineração, do desamor e do desrespeito para com a diversidade das formas de vida.

Gravura a bico de pena por Percy Lau, Arequipa, 1903
Rio de Janeiro, 1972. Fonte: Tipos e Aspectos do Brasil IBGE 1966

O marco temporal, essa tese anticonstitucional, que permite a revisão e o abuso das terras indígenas já demarcadas, é o ápice da ignorância e do abuso humano, que não consegue enxergar que sem floresta viva não haverá vida possível. A luta e o rezo constantes para garantir e proteger os territórios ancestrais dos povos indígenas são justamente para que todas as formas de vida  possam viver: araucárias, cotias, pacas, abelhas, ametistas, montanhas, rios e peixes.

Há duas noites, concentrada na Opy’i, casa de reza, em diálogo e estudo com plantas professoras, o espírito da Kuri veio falar comigo. Ela era bem velha e grande. Me disse calmamente que está lá do alto assistindo a toda a confusão e sofrimento que está acontecendo. Viu muitos parentes vegetais, animais morrendo afogados, arrastados pela lama, pela água brava e nada pôde fazer. Ela somente assistiu, silenciosamente, com seus bracinhos como se estivessem em forma de saudação, que reverencia todos os dias o sol, a lua e a vida, pedindo força e proteção. Ela ficou um tempo me mostrando as grandes florestas que já existiram de araucárias e que hoje estão reduzidas a algumas. Me mostrou também a força do petyngua, cachimbo Guarani feito do nó do pinho dela, e o quanto cada um que o carrega consigo deve respeitá-lo. Me recordou imagens muito belas de mulheres, preparando farinha de pinhão com seus pilões, cenas antigas onde tudo era profundamente interligado. Aos poucos as imagens e a voz dela foram desaparecendo e fui aos poucos voltando e, ao olhar para o fogo, que estava intensamente vivo, senti de me levantar e compartilhar com os jovens que comigo estavam aquela experiência mágica e muito proveitosa que havia sentido, presenciado e aprendido mergulhada em profundas mirações. 

Pintura: Jose Vera, RS

Ao amanhecer do dia refletindo sobre toda a noite de estudos e aprendizados, me recordei de passagens do livro a “Queda do Céu” de Davi Kopenawa….

“No começo a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá eram tão poucos quanto nós agora na floresta. Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. Seus antepassados mais sábios, a quem Omama criou e a quem deu suas palavras, morreram. Depois disso, seus filhos e netos tiveram muitos filhos. Começaram a rejeitar os dizeres de seus antigos como se fossem mentiras e foram aos poucos se esquecendo deles. Derrubaram toda a floresta de sua terra para fazer roças cada vez maiores. Omama tinha ensinado a seus pais o uso de algumas ferramentas metálicas. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido embaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grande quantidade. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso os fez esquecer a beleza da floresta. Pensaram: “Nossas mãos são mesmo habilidosas para fazer coisas! Só nós somos tão engenhosos! Somos mesmo o povo da mercadoria! Podemos ficar cada vez mais numerosos sem nunca passar necessidade! Vamos criar também peles de papel para trocar!”. Então fizeram o papel do dinheiro proliferar por toda parte, assim como as panelas e as caixas de metal, os facões e os machados, facas e tesouras, motores e rádios, espingardas, roupas e telhas de metal. Eles também capturaram a luz dos raios que caem sobre a terra. Ficaram muito satisfeitos consigo mesmos. Visitando uns aos outros em suas cidades, todos os brancos acabaram por imitar o mesmo jeito. E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se espalharam por toda a terra dos seus ancestrais. É o meu pensamento. Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite.”

(Davi Kopenawa, “Paixão pela mercadoria”, em A Queda do Céu)

Pintura rupestre de Araucária, Pirai do Sul, PR

28/05/2024

LER A TERRA – por Veronica Pinheiro

 

Me lembro da conversa que tivemos com o barro no encontro Cosmovisões da floresta, no dia 13 de maio de 2023, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio). O encontro entrelaçou os projetos Ore ypy rã – Tempo de Origem e o Selvagem em um dia de exposição e atividades com cantos, danças, conversas. Diante de um vaso de cerâmica marajoara, Francy Baniwa começou a falar sobre como as mulheres Baniwa conversam com a argila, que é um ser muito antigo e sagrado. De onde eu venho, o barro também é sagrado. Lembro do barro vermelho que cobria toda a comunidade e de como tocávamos com a mão no chão e no coração antes de dançar ou jogar capoeira. Lá em casa, o barro era nossa avó; berço originário e colo derradeiro. O barro só era colhido mediante as necessidades. Levei isso para as oficinas com argila.

Andando pelo bairro de Costa Barros, onde a escola está localizada, entre barrancos e barracos, a quebrada do terreno ocasionada pela chuva, deslizamento ou pela ação do homem revela as cores guardadas na terra. Texturas e tonalidades de marrom e matizes avermelhadas colorem e revelam propriedades físicas, químicas e mineralógicas do solo. Durante o planejamento das oficinas de plantio das espécies frutíferas da Nhe’ëry com Gerrie Schrik, me foi feita a seguinte pergunta: Como é o solo da escola? Não tendo as respostas técnicas, pude falar com detalhes sobre o que vi. E via as cores da terra nas escavações e barrancos. Olhar pra terra é uma prática que tento passar para as crianças.

“Ninguém fazia análises de solo, conhecíamos o solo só pelo olhar. Só de olhar para a terra já sabíamos o que plantar. Conhecíamos a vegetação. Numa terra que dá muita leguminosa nativa, plantava-se feijão; numa terra que dá muita gramínea nativa, plantava-se milho e arroz. É a linguagem cósmica. É simples. Não é preciso fazer análises de solo porque a terra já diz o que está disposta a oferecer.” Nego Bispo

A terra diz. Passamos na escola uma semana olhando a terra. As crianças e eu. Faixas de terra ao redor da escola que não foram cobertas pelo cimento foram os textos da semana. Em sala, eu e as crianças lemos e conversamos sobre a “Carta da Terra”. Curioso, as crianças nem sabem mais o que é uma carta. Elas escrevem recadinhos em papéis pra mim, mas chamam o bilhete de mensagem. Expliquei o que era uma carta, para que servia e como era composta. “A Terra pode escrever uma carta?”, “Não! ela não tem braços nem mão. Ela deve ter ditado e alguém escreveu: tipo Deus com Moisés”. 

Depois de muita conversa, saímos quintal afora. Parecia uma expedição: cadernos, canetas, um galho para apoiar na subida. O livro estava fora da sala de leitura. Lemos o livro mais antigo de todos: lemos a terra. Por um tempo, só observamos as cores do solo; por outros, só os pequenos insetos e animaizinhos que viviam ali sem que ninguém notasse. “Tia, mora muita gente aqui!”, “Eu sei, você acha que a escola só tinha móveis e livros? A escola é habitada por seres vivos mesmo quando nós não estamos nela”. Formigas, lagartos, aranhas, plantas, muitos pássaros. As crianças do 1º ano se espantaram. Elas não sabiam que tantos pássaros diferentes visitavam aquele quintal no final da tarde. Ficamos sentados em silêncio no meio da quadra depois da história contada. Eu disse que eles receberiam visitas. Visitas aladas, coloridas e cantantes. Tive a sensação de serem as mesmas aves que me acordam em casa. Certamente, não são as mesmas aves, mas é bonito pensar que elas me acompanham até a Pedreira. 

Tentei conversar com o senhorzinho que está sempre plantando num pedaço de terra no alto do morro. Certamente ele é a pessoa mais adequada para falarmos sobre as oficinas de plantio e de pigmentos de terra. Ele se relaciona diariamente com a terra: eu vejo quando passo às 7h da manhã pelo seu quintal. Numa região com o segundo menor índice de desenvolvimento humano, existe um homem farto de verde. Solo-planta-homem suspensos e escondidos no verde à beira do asfalto. Enquanto a insegurança alimentar diariamente circula entre a população local, o senhor, que não se desconectou da terra, cuida e é cuidado. Marcamos de visitá-lo, pretendemos chegar com uma cesta de delicadezas, e de alguma forma ser gentil com quem gentilmente pisa sobre a terra.

Pretendemos também levar para ele um quadro pintado com tintas preparadas com as terras do território e da escola. E de alguma forma estabelecer ali um diálogo tendo como partida nosso berço comum: a relação com a terra. As oficinas são movimentos iniciais, são sementes. Germinando as sementes, algumas memórias de vida são despertadas. A vida despertada está no território, nas memórias guardadas na terra e adormecidas nos corpos. Ao estabelecermos uma parceria com uma escola de ensino regular, sonhamos com a ideia de escolas vivas em ambientes urbanos e periféricos. Trazemos como proposta o fortalecimento do território, dos saberes e das práticas de vida que lá existem. Nesse movimento, tentamos identificar quem são os guardiões do bem viver; quem são os seres, que em meio a tantas dificuldades impostas, guardam práticas que sustentam cosmologias ancestrais.

Não existe um modelo único de oficina aplicável para toda e qualquer escola e território. Já compartilhamos oficinas de tintas naturais em outros momentos. Para as crianças da escola Escragnolle, partimos da “Carta da Terra” e chegamos aos pigmentos e pinturas. Ao convidá-las a aprender mais sobre o lugar onde elas vivem, ouvi repetidamente as histórias de violência e medo. Perguntei se elas sabiam de onde eram aquelas tintas da oficina. Algumas crianças desconfiaram que a tinta era barro. “Parece tinta, mas tem cheiro de terra”. Perguntei se elas sabiam que a terra da região da escola era uma terra cheia de cores. Perguntei se elas conheciam o senhor gentil que conseguia ter uma forma diferente de ser e viver na favela. As crianças, assim como os pássaros, sabem de muita coisa. Os pequenos me trouxeram o nome e uma possível data de visita ao senhor. 

As crianças disseram que não sabiam que era importante conhecer de terra, de plantas e de quintal. Durante a semana as crianças me presentearam com terras, urucum e flores pigmentadas. Presentes de crianças da Pedreira. Talvez os mais bonitos que já recebi na vida.

Agora estamos mapeando os caminhos verdes da favela. As cores da terra do quintal da escola pintam de amarelo e tons de vermelho os mapas da vida da Pedreira.

Fotos: Wagner Clayton



23/05/2024

CORPO – CASA – TERRITÓRIO – por Cris Takuá

 

Arte de Cris Takuá

 

Nosso corpo é território

É casa, é morada ancestral

Nossa casa é a floresta

E através dela atravessamos

um cristalino portal

Nosso território é beira do rio,

É montanha e manguezal

Somos o emaranhado de uma teia

de colorido natural.

A floresta pulsa 

e os seres sagrados que nela habitam

estão a nos observar em meio ao vendaval

Respeitar os espíritos da floresta

Deveria ser o princípio inicial

das relações de transmissão de saberes 

e conhecimentos 

desse nosso mundo atual.

Arte de Kaue Karai Tataendy

 

Tecendo mundos vamos aprendendo a nos relacionar com os espaços que nos circundam. Desde a primeira morada que nos acolhe no útero de nossas mães começamos a perceber e a sentir a dimensão dos muitos territórios que habitamos. Nessa grande teia de relações somos concebidos com modos de pensar e existir conectados com uma memória ancestral, um acervo de saberes e fazeres que habita nossos corpos e existe em muitas camadas. O corpo, casa, território, esse mundo de conexões profundas está passando por modificações significativas devido ao processo de mecanização das relações. A inteligência artificial, cada vez mais presente na vida e nas convivências humanas, tem feito com que as ferramentas ancestrais de comunicação, como a telepatia, a intuição e os sonhos fiquem silenciados no dia a dia de muitos seres.

A nossa grande morada, a nossa casa sagrada, é a floresta. E ela não está presente somente dentro da nossa casa, mas nas cachoeiras, nas montanhas, em todos os espaços onde se constitui o tekoa, que é o território onde se vive, onde se planta, onde se cria, onde se brinca, onde se é possível conviver de uma forma coletiva, de uma forma verdadeira. Sinto que todo o nosso corpo, toda a forma como a gente se coloca no mundo, estão sendo chamados para uma transformação, um redirecionamento. Independente das nossas origens, das nossas posições políticas, filosóficas ou epistemológicas, precisamos ter um compromisso ético com a vida e, assim, conseguir equilibrar o sopro de amor que sai das nossas palavras com o compasso dos nossos passos ao caminhar. Esse é o grande desafio que temos que superar para conseguirmos avançar, com coerência e serenidade, sem sermos constantemente contraditórios nas nossas ações.

Arte de Jera Mirim

 

Ao longo da história, a humanidade se escorou em uma razão que não coloca os outros seres no diálogo. Os humanos criaram, inventaram, modificaram, destruíram o equilíbrio da natureza. E esqueceram de perceber que as formigas, as abelhas, o vento, as montanhas, os rios e todos os seres que habitam aqui neste planeta, seres visíveis e invisíveis, seres, animais, seres vegetais, seres minerais, eles também possuem uma coletividade, uma dinâmica de vida que pulsa dentro desse território que é o grande planeta Terra. Mas nós, humanos, insistimos em querer ser maiores, em querer ser mais pensantes e donos desse mundo todo. E, em nome disso, causamos todo desequilíbrio nessa humanidade que a gente julga e pensa ser.

Não tem como nos dissociarmos da natureza, porque nós somos a natureza e tudo está interligado. Nenhum humano consegue viver e sobreviver se não tiver água para beber, se não tiver um ar puro para respirar. Todo o processo capitalista e colonizador, em muitos lugares no mundo, impôs um modo de ver e pensar o tempo, e isso afetou os processos de transmissão de conhecimento. Há uma monocultura que rege os alimentos, que rege as epistemologias e os processos de cura e doença. Isso precisa ser compreendido de um modo que os indivíduos percebam que nós não somos nada além de um pequeno grão nessa grande teia que relaciona a vida. Quando penso em casa, corpo e território, percebo o quanto nós, humanos, somos dotados de um grande potencial que é a nossa própria mente. O nosso pensamento é capaz de muito desenvolvimento e criatividade, que podemos nós mesmos nos proporcionar ou nos direcionar a aprender.

As formigas, as abelhas e as plantas são seres muito inteligentes, assim como todos os seres minerais. Eles pulsam a cada dia, se transformam e se recompõem. E nós, humanos, estamos constantemente nos dividindo por classes, etnias, cor de pele, classe social. Mas somos todos humanos e fomos colocados todos neste mesmo barco, que é essa morada sagrada, que é essa casa-território onde habitamos e compartilhamos de lutas e sonhos, de expectativas e querências a cada dia.  Se habituar a isso e enxergar de uma forma clara e plena é a missão que cada um de nós carrega nessa morada territorial. Com as nossas sensibilidades, com nossas especificidades culturais, espirituais, somos capazes de alcançar essa grande coletividade que habita a casa planeta Terra, e assim reativar o cuidado e a atenção com o nosso próprio corpo, com a nossa mente e espírito.

Arte de Alexandre Wera Popygua

21/05/2024

SERÃO PERMITIDAS APROPRIAÇÕES E RELEITURAS – por Veronica Pinheiro

 

Não tenho nenhuma perspectiva com relação a um novo mundo. Eu não acredito num novo mundo. Eu acredito que nós vamos ter que resolver o que a gente vai fazer com este que a gente está estragando. A ideia de um novo mundo está dentro de uma lógica que sugere que o meu sapato acabou, eu compro um novo.
Ailton Krenak

 

 

O ano: 2024. As duas reflexões chegaram a mim no mesmo dia: a primeira, um vídeo, do qual transcrevi um trecho da entrevista de Ailton Krenak; a segunda, um edital da Mostra Municipal de Multilinguagens, de onde copiei a frase que intitula este texto. 

Esta semana o diário seria sobre a oficina “Cores e terra – pigmentos e pintura”. Porém, no último dia da semana, ainda em expediente, recebi o edital da 4ª Mostra Municipal de Multilinguagens. Minha tarefa era entender como poderíamos inscrever a escola e os trabalhos que estamos desenvolvendo na mostra. Não sei vocês, mas eu leio editais e me atento às miudezas e aos detalhes. Eram tantas orientações pedagógicas somadas a um punhado de siglas e objetivos gerais e específicos. Assumo aqui que sou cismada com leis, diretrizes e pedagogias. As práticas, o não dito, o estabelecido, as escolhas e o fôlego das propostas me interessam mais. A princípio, li para entender em qual linguagem artístico-pedagógica poderíamos inscrever a escola (dança, teatro, música e/ou artes visuais). Depois não consegui parar de pensar sobre o que li.

O tema da mostra –  Brasil e seus brasis, a influência dos povos originários na formação da nossa identidade cultural brasileira, à luz da Lei 11.645¹ – tem uma série de agendas a cumprir. Era tanta demanda bonita (competências para o século XXI²; conjugar os 4Cs³; trabalhar temas transversais⁴; incluir a questão sócio ambiental e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS⁵; ampliar visão de sociedade e de mundo; focar na Agenda 2030 com a Coordenadoria de Diversidade⁶; não esquecer da Base Comum Curricular – BNCC⁷; implementar a Lei 11.645) que até fiquei tonta. 

Este texto poderia ter parado no título. Entretanto, convido a todos a pensar em como a gente vai resolver este mundo que estamos estragando. “Serão permitidas ‘apropriações’ e ou releituras’”. Esta frase me saltou aos olhos, automaticamente disse: “não entendi”. Ou entendi tudo. A sentença (frase ou oração; intencionalmente escolho a palavra SENTENÇA) escrita na página 15 do edital diz tanto sobre as relações étnico-raciais propostas pelas instituições e suas escolhas pedagógicas. Porém as instituições são compostas e representadas por pessoas. E como pessoas podemos juntos pensar em possibilidades para reescrever perspectivas e realidades.

Não há neutralidade num texto. Aprendi estudando linguística que em cada signo “dorme um monstro”. Se me atento ao não dito, como ignorar o dito? O escrito? 

“O corpo de um negro ou de um índigena está impregnado de cultura e memória, traz as marcas de dor e sofrimento que a colonização impingiu. Essas peles não são fantasias. Portanto, apropriação cultural não é homenagem, é violência simbólica exercida de forma sutil ou explícita. Ninguém tem o direito de usar um cocar e pintar a cara enquanto apoia o genocídio indígena. Um branco não pode cantar samba e continuar destilando racismo.”⁸

Certamente alguém vai tentar explicar e apresentar contextos para justificar a sentença que tanto me doeu os olhos. Pode até explicar, mas quem valoriza documentos e papéis não sou eu. Meu povo guarda memórias e saberes em cantos, em práticas e em rezos. Não sou eu quem exige que tratados e acordos sejam validados por escrito e protocolados. São as instituições. São as instituições que dizem “vale o que está escrito”. E estava escrito:

“Serão permitidas ‘apropriações’”

E se está escrito pode ser reescrito. Que possamos, a partir de 2024, ressecrever coletivamente os caminhos e as possibilidades de coexistência. Toda cultura é resultado de anos de interações sociais e naturais; por isso, a afirmação da identidade é um movimento orgânico.  É importante ouvir mais; por exemplo, ouvir como pessoas indígenas gostariam de ser apresentadas e representadas. Muita gente não sabe que um grafismos não é apensas uma pintura; tantas outras, desconhecem que um canto pode trazer memórias antigas e palavras de cura. Que em 2024, possamos entender que a melhor forma de honrar uma tradição é fortalecendo os territórios e respeitando todas as manifestações de vida presentes neles.

 

 

¹http://portal.mec.gov.br/index.php?id=12990&option=com_content&view=article#:~:text=A%20Lei%20n%C2%BA%2011.645%2F08,Afro%2DBrasileira%20e%20Ind%C3%ADgena%E2%80%9D.

²https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000234311

³O conceito dos 4C’s foi apresentado pela associação National Education Association (NEA), em complemento às atividades do “21st Century Skills”, movimento educacional do século 21 que visa capacitar os educadores para avançarem em sua própria prática. Os 4Cs são: pensamento crítico; colaboração; comunicação; criatividade.

⁴ Os temas transversais definidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais são: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Temas Locais. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/implementacao/contextualizacao_temas_contemporaneos.pdf

⁵ São 17 os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pelas Nações Unidas. http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel

https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2023/setembro/instituida-comissao-nacional-para-os-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel

http://basenacionalcomum.mec.gov.br/

⁸Apropriação cultural / Rodney William. — São Paulo : Pólen, 2019.

16/05/2024

ENTRE RIOS, MONTANHAS E CRIANÇAS – por Cris Takuá

 

Arte coletiva.
Foto: Cris Takuá

 

Vida Rios

“ Os Rios são veias visíveis 

Existem os Rios subterrâneos

e os Rios voadores.

Rios como flechas da memória

Neurotransmissores 

Rios Micélios Neurônios

Os Rios não são Rios, somos nós

São tudo.

São evidências do corpo da Terra

Vidências trazem a visão.

A pele da Terra é o céu.”

*** Anna Dantes, Puerto Berrio, 

 Colômbia- maio/2024 ***

 

Residência “Actuar por lo vivo” sobre a bacia do rio Magddalena. Puerto Berio, 3 de maio de 2024.
Foto: Digo Fiães

 

Os rios são as veias da Terra, são espíritos que caminham serpenteando, deslizando entre pedras e águas cristalinas. Brotam de montanhas antigas e acariciam nossas peles com a possibilidade da vida. Pelos quatro cantos do mundo e ao longo da história, humanos não souberam respeitar a existência dos rios. Mudaram seus percursos, contaminaram seus corpos com dejetos de mineração, agrotóxicos e lixo – muito lixo.

Hoje, crianças estão a refletir e, mais do que isso, estão sentindo as duras consequências dos hematomas nas camadas profundas da Terra. Através de sua sensibilidade estão mediando os conflitos entre os mundos e entre os tempos, com o objetivo de regenerar os vínculos com os seus territórios ancestrais.

Um caminho que vem se desenhando possível é sentir e pensar o rio, diante de todas as suas feridas e complexidades. E assim cantar para o Rio, conversar com ele e escutar suas profundas mensagens. Esses são desafios que seres sensíveis estão conseguindo alcançar.

 

Fotos: Lina Cuartas e Cris Takuá

 

Caminhando nas margens do Rio Madalena em Puerto Berrio, na Colômbia, no início de maio, recordei memórias antigas de crianças brincando e plantinhas brotando nas margens dos rios do mundo. Me conectei com o sagrado Guaíba lá no Rio Grande do Sul, cansado, machucado com toda a confusão humana, e algo ressoou em mim em forma de canção….

 

                    Yxyry Porã Mbaraete 

                    Yxyry Porã Mbaraete 

                     Yxyry reo Para Guaxu aguã.

                     Yxyry reo Para Guaxu aguã.

                        💦💧🩵💦💧

 

Um canto para o belo Rio Madalena, Guaíba, Taquari, Rio Doce e Paraopeba.

As montanhas são como avózinhas – nos abraçam e nos protegem. Muitas águas brotam do alto das montanhas, por isso elas têm profundas conexões com os rios que deságuam no mar.

São caminhos!

Rios, Montanhas e Crianças 

Seres que nos ensinam.

Precisamos escutar mais 

E respeitar a vida desses seres tão sagrados!

 

Foto: Maria Inês

14/05/2024

SUMAUMANOS – por Veronica Pinheiro

Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”, 

“Todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”.

 

 

Às 7h30 do dia 07 de maio de 2024, a diretora, como todos os dias, abriu o portão da escola. No lugar de “bom dia”, ouvimos: “Não dormi de tanta alegria! Eu queria que amanhecesse logo pra vir pra escola.”

Pronunciadas as sentenças, ouvimos vozes sequenciadas como num jogral: “Eu também”. “Eu também”. “Eu também”.

Não reforcei o coro, mas eu também.

Era o dia da primeira imersão do Grupo Aprendizagens. Nosso destino: Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Nesse movimento de despertamento de memórias, provocamos encontros. Alguns são entre espécies, outros não. Para nossa imersão pensamos no encontro das crianças com as árvores. Tínhamos um roteiro alinhavado: receber as crianças na escola; café da manhã; embarque no ônibus; chegada no Jardim Botânico; visita ao museu e à exposição Mbaé Kaá; passeio no jardim; piquenique; meditação e jogos teatrais; retorno à escola; e almoço. Uma linha longa e sensível prespontava de verde nossas expectativas. 

Se “só existe o experimentar e o resto não nos diz respeito”¹, o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza, que também somos? Muito provavelmente, chegaremos ao último diário do ano, em dezembro, sem a resposta, mas essa pergunta nos move. Repetidas vezes falamos em semeadura; em palavras germinantes. No cenário ideal, quem planta uma roça sabe o que vai colher e sabe o tempo de colheita do que foi plantado. E quem planta sonhos? Encontros? Quem planta água, árvores e florestas? 

Levar as crianças ao Jardim Botânico para que elas encontrassem as árvores não compõe uma estratégia pedagógica. É muito mais simples: toda criança tem o direito de saber que é natureza e de ter acesso às manifestações do mundo natural. 

“Tia, isso não é tiro. É fogos. Fica tranquila.” “Tia, esse barulho é do helicóptero da reportagem,  o helicóptero da polícia tem outro barulho.” Na favela da Pedreira, muitas crianças de menos de 10 anos sabem reconhecer os sons do horror e da guerra. Porém, não conhecem os sons resultantes do encontro do vento com a copa das árvores. No dia 07 de maio de 2024, dia do passeio, a favela amanheceu tranquila e o Sol apareceu cedinho e bem quente, apesar de estarmos no outono. A última terça tinha gosto de docinho de festa.

Da escola, éramos um total de 42 pessoas². Do Grupo Aprendizagens, 6³. 1 ônibus rosa-choque e 1 motorista super gentil. A cor do ônibus é estratégica, precisamos entrar e sair da favela em segurança. O tal ônibus rosa se tornou uma personagem querida entre crianças e adultos, ele já ganhou nome e sua visita está sendo aguardada por outras turmas da escola.

 

 

A visita ao jardim começou e terminou diante da Sumaúma (Ceiba pentandra). No começo, “Sumaúma: Copa, Casa, Cosmos”, obra de Estevão Ciavatta com narração de Regina Casé, nos imergiu virtualmente na Sumaúma. Fomos recebidos pela equipe do educativo do Museu; Daiani Araújo e Thalyta Sousa receberam as crianças com muita delicadeza e conduziram todo o grupo até a obra Sumaúma. Na sala de projeção, todos, sem exceção, ouviram com o coração as palavras da árvore. Pela primeira vez, muitos dos presentes se deram conta que uma árvore tem muito a dizer sobre si e sobre a vida. Alguns quase não piscavam, outros ouviam de olhos fechados. Todos sorriam com lábios e olhos. 

 

 

“Tia, faz o mapa pra chegar da escola até aqui. Quero trazer minha família pra ouvir a árvore.”

“Farei um mapa do metrô da Pavuna até aqui. Será muito fácil chegar.”

Subimos as escadas de madeira em pequenos grupos de 7 pessoas e no segundo andar, dentro da  exposição Mbaé Kaá aprofundamos algumas conversas sobre plantas e a relação dos povos indígenas com elas, ao redor da instalação Jardim Viva Viva. Arte Guarani, natureza, ciência, Barbosa Rodrigues e as janelas do prédio. Após a conversa sobre a exposição, as crianças correram para janela. Ali me toquei que as janelas das salas de aula da escola não têm vista. O gesto coletivo de olhar para fora trouxe uma inquietação ao grupo. Muitos encontros estavam por acontecer. Abraços entre crianças e educadores do museu encerraram a primeira parte do passeio.

 

 

Dentro do Jardim, as crianças olhavam pra todas as direções possíveis. Enxergavam  com olhos, ouvidos, pés, pele e coração. Pausa para admirar a água fresca descendo das pedras. Pausa para sentir o frescor das águas. Por um minuto ou mais não ouvi vozes; corações e bocas se calaram para o olho ver direito. Findo o silêncio que saudava as águas, aos poucos a euforia tomou novamente o grupo. “Não vou mais lavar essa mão aqui. Toquei na água da cachoeira.” Não falei nada. O menino acreditava que tinha tocado as águas, mal sabia que as águas tinham tocado nele. Ele agora carrega água fresca dentro, lavar ou não a mão é detalhe.

“Tia, o bambu falou!” Antes que eu tecesse algum comentário…

“Por que não tem panda lá em cima?”

Antes que eu falasse qualquer coisa… um peixe gigante, o tambaqui que vive no Lago Frei Leandro, se tornou mais interessante que a resposta. Caminhamos por alguns minutos, atravessamos a pequena ponte e o pequeno portal para o parquinho das crianças. Lá, tivemos uma pausa pro lanche e para meditação. Cantamos pra Terra. De olhos fechados fomos árvore. Raízes. Tronco. Galhos. Folhas. Nosso passeio se aproximava do fim, era hora de retornar ao ônibus. Pegamos um caminho diferente dentro do jardim, não poderíamos ir embora sem encontrar a Sumaúma plantada no Jardim. 

Com raízes muito profundas que trazem água para a superfície mesmo na época seca, a Sumaúma é considerada a mãe da floresta e pode chegar a 70 metros, o que equivale a um edifício de 24 andares. De onde eu venho, na sumaúma vive Iroko, (do iorubá Íròkò) que é guardião da ancestralidade e dos antepassados, seio da natureza e morada de todos os Orixás; primeira árvore que se fez plantar na Terra. Muitos povos indígenas afirmam que as grandes sapopemas da sumaúma representam um portal para outro mundo. Uma árvore  sagrada para diversos povos da floresta, uma grande mãe, que protege todos. Os Huni Kuï dizem Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”, “todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”. Num espaço pluriversal de diálogos, a sumaúma é tudo isso e mais um pouco. 

Li um documento da EMBRAPA sobre a Sumaúma e pensei que a equipe que escreveu o texto para o  Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento deveria ter visitado o Jardim Botânico do Rio junto com as crianças, pois os técnicos do governo só conseguiram apresentar ao público os múltiplos usos e alternativas econômicas sobre a sumaúma. As crianças não. Assim como os babás e pajés, as crianças se conectaram com a árvore. Sonhos e seiva se misturaram. À medida que nossa roda se formava ao redor das sapopemas da sumaúma, memórias verdes eram despertadas. Em tempo de sonho, meus pequenos companheiros sonharam ser árvore e viver num jardim. Sonho é seiva, líquido que circula mantendo o tempo circular. Num tempo de seiva, Angélica de 10 anos chegou à seguinte conclusão: “Encontramos a árvore, entramos dentro dela agora somos SUMAUMANOS”.

 

 

 

Voltando à pergunta que nos movimenta: o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza que também somos? Segundo a menina Angélica, podemos virar um pouco árvore.

 

¹in Mbaé Kaá o que tem na mata: A Botânica Nomenclatura Indígena, de João Barbosa Rodrigues. Dantes Editora, 2018.

² 37 alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, 3 professores, coordenadora pedagógica e diretora adjunta

³ Luany da mediação de visita ao Jardim; Paula Novaes da mediação de atividade de respiração e jogos teatrais; Tania Grillo da mediação durante a exposição Mbaé Kaá, e 3 integrantes da equipe de voluntários, Bia Jabor, Eliane Brígida, Evellyn.

Fotografia: Éricka Hoch; 

Coordenação e medicação nas atividades de Veronica Pinheiro .



09/05/2024

TABACO, MESTRE DO SABER – por Cris Takuá

 

Foto: Carlos Papá

 

Curandeiro ancestral

O sopro do cachimbo

O sopro do rapé

O sopro do amor

Das palavras

Das canções que 

Explodem do universo 

Interior das inquietações íntimas

De nosso Ser…

O sopro limpa

Alivia e dissipa

As mágoas e as ansiedades.

A maldade existe!

Mas não é nada comparada 

À força que habita na fumaça 

Das medicinas sagradas

Que através de seu sopro 

A tudo purifica e transforma 

O sopro que como um impulso

Sai em forma de palavras em movimento 

Ecoa pelos quatro cantos desse universo

Em profundos momentos .

É necessário cantar mais

Proferir mais palavras de amor

É necessário soprar cura a tudo e a todos 

A ilusão persiste em perseguir 

A matéria humana  

Mas o verdadeiro Amor habita 

Na sensível sabedoria 

Das pequenas coisas

Dos pequenos atos 

Das profundas ensenhanças

Dos sonhos e das crianças

Que revelam a cada novo amanhecer 

A extraordinária beleza 

De ser e existir plenamente.

O sopro me inundou a alma

Nessa noite silenciosa e fria

E através do sopro 

Vi sua bela forma serena e tranquila 

Me mostrando os caminhos 

Me revelando os mistérios

Me apurando os sentidos 

O sopro me aliviou

Me curou

E alegrou

E me fez poetizar ao amanhecer 

As cantigas do bem viver!!!!!

(Sopro de palavras recebidas num amanhecer após um ritual de cura com tabaco)

 

Foto: Cris Takuá

 

Há milhares e milhares de tempos em meio ao escuro surgiu a vida e todos os seres que habitam ao nosso redor. Cada ser vegetal, animal, mineral são espíritos que convivem num profundo emaranhado de saberes, como uma grande teia onde tudo está conectado. Tudo que habita na Terra tem seu guardião e dono. Os Guarani chamam de Ija, os Maxakali de Yamiyxop, os Huni Kuin de Yuxibu, os Yanomami de Xapiri. Cada povo nomeia esse ser e mantem relação de profunda comunicação no mundo espiritual.

Não respeitar esses seres pode nos levar ao adoecimento. Por isso, as crianças precisam ser ensinadas desde pequenas a pedir licença por onde caminham, saber entrar e saber sair da floresta, da cachoeira, da montanha. Respeitar esses seres espíritos significa ter boa vida em equilíbrio e saúde.

Existem algumas plantas de poder, que também são chamadas de mestras, que nos mostram os caminhos, nos colocam em diálogo com os seres espíritos e também nos curam quando afetados por algum mal espiritual.

Muitas culturas indígenas em todas as partes do mundo historicamente fazem uso do tabaco para as suas práticas de cura. Essa planta sagrada está presente em culturas ancestrais em praticamente todos os continentes. Uns a utilizam em cachimbos que, através da fumaça baforada, proporcionam uma comunicação espiritual. Outros sopram o rapé. Ela pode também ser mascada ou tomada como água de tabaco para purga, proporcionando limpezas profundas. Também tem o uso externo como cataplasma. São muitos os usos desse ser.

Ailton Krenak, no Caderno Selvagem Entrar no mundo – Conversas sobre “Plantas Mestras”, em que dialoga com Carlos Papá, diz: “Aprendi então a fazer uma coisa que ainda não ouvi ninguém falando, que é de ler o tabaco. Sei que tem gente que lê borra de café, que lê outros movimentos na água. Mas só experimentei essa coisa de ler a mensagem do tabaco dichavado, sem nenhum uso, só ali olhando para ele me mostrando coisas. Foi muito bom. É provável que outras pessoas já tenham também vivido essa experiência em outros contextos, do tabaco ser essa voz de saúde, essa imagem ativa. Não é uma coisa inerte, mas é algo vivo. É claro que quem faz o uso ritual dele, o uso cotidiano dele, tem outras experiências.”

Percebemos, no entanto, que esse ser sagrado vem sendo tratado de forma desrespeitosa pelas sociedades humanas. As crianças crescem com medo do tabaco, pois são ensinadas que ele mata, causa câncer ou problemas pulmonares. Essa afirmação é carregada de um desconhecimento do uso dessa planta, pois, para muitas culturas que fazem uso ritualístico do tabaco, ele cura.

Tomio Kikuchi, em seu livro Essência do Oriente, diz: “Segundo o princípio Único da ordem do Universo Infinito, isto é, a dialética prática Ying-Yang, fumar tabaco é classificado na categoria Yang… Deve-se ter compreendido que fumar é yanguinizar-se. O câncer sendo Yinguinização explosiva, dilatação contínua (dominado que é pela força centrífuga Ying, dilatadora) será contrariado em seu desenvolvimento pela absorção da fumaça Yang constritora. Esta pode levar a sua regressão e finalmente à reabsorção… nós podemos declarar, com toda certeza, que fumar o tabaco é sobretudo recomendado para cancerosos como para todos aqueles que desejam que fortificar sua imunidade contra o câncer.” 

Refletir sobre a profundeza dos seres plantas nessa relação íntima com nossas vidas significa mergulhar na ciência da floresta, que, ao longo de séculos, vem sendo ocultada e ignorada pela ciência capitalista e ocidental. Há um saber que rege comunicações muito sensíveis feitas através de tecnologias ancestrais, como a telepatia, a intuição e os sonhos. Os grandes rezadores e rezadoras, curandeiros e curandeiras passam tempos de suas vidas em processo de preparação para alcançar o entendimento para dialogar com as plantas professoras e possibilitar a cura aos humanos.

Ainda no diálogo Entrar no mundo, junto a Ailton Krenak, profundos pensamentos foram trazidos por Carlos Papá para que possamos sentir a delicada relação do tabaco para o povo Guarani.

O petyngua leva as mensagens diretamente do Nhanderu. E Nhanderu vai te guiar. E essa fumaça que você solta, de dentro para fora leva o pensamento, o sentimento. E a fumaça vai pairar por todo o universo. Vai se misturar com o vento. Vai se misturar com o aroma do ambiente. Com isso você vai se fortalecer cada vez mais. Mas isso você vai entender melhor quando tiver seus filhos. Através do tabaco e da fumaça vinham mais mensagens. Pela embriaguez do tabaco, eu comecei a perceber e entender os códigos da fumaça na medida que você bafora. A fumaça começou a abrir os códigos. Acabei entendendo esses códigos… E vinham as falas antigas, falas como se os grandes pajés se manifestassem. Senti uma força muito grande, me senti gigante. Não sentia mais meus pés no chão. Eu me senti… Parecia que eu tinha capacidade de voar. Assim, comecei a perceber que o petyngua é um instrumento que cura, que faz com que você entenda todos os códigos do tempo. Foi aí que também compreendi o que nós chamamos de teko axy. Teko axy quer dizer corpo imperfeito. O vento traz e leva as mensagens. A fumaça do pety, que é o tabaco, essa fumaça quando pensamos, leva o pensamento e paira para que o vento traga respostas.”

Através desses pensamentos trazidos convido a todos a se despir das camadas de formatação mental que recebemos desde criança. Que comecemos a repensar nossas relações com o escuro, com o Sol, com a chuva, o vento, o tabaco, a coca e tantos seres que desaprendemos a respeitar e com os quais podemos sim conviver de forma harmoniosa. A industrialização capturou algumas plantas mestras, cabe a cada um de nós reaprender a nos relacionar com cada uma delas.

 

Fotos: Cris Takuá

07/05/2024

DE SOL EM SOL – por Veronica Pinheiro

 

Foto: Wagner Clayton                      

 

Todo MUNTU (ser humano) é o Sol vivo, percebido como um “poder”, “um fenômeno da veneração perpétua, da concepção à morte” e além. Uma vez trazido ao mundo físico se inicia uma tarefa sagrada (a mais importante para civilizações africanas): cuidar desse MUNTU para que ele brilhe como o Sol do meio dia.¹

Observe: a cosmologia africana dos Bantu-Kongo, ideia compartilhada pelo dr. Fu-Kiau, apresenta o cuidado com as crianças como uma arte que precisa ser honrada.

Pensando no universo escolar, ser professor de crianças é uma atividade considerada de menor prestígio na sociedade brasileira; uma atividade realizada geralmente por mulheres e por pessoas de baixo poder aquisitivo. Existe uma hierarquia estabelecida entre os profissionais de educação e quem leciona na Educação Infantil e Ensino Fundamental são desrespeitados dentro da própria categoria. É comum um professor universitário se ofender ao ser perguntado em que escola ele trabalha. “Escola? Não trabalho em escola. Sou professor da Universidade fulana de tal.”

Curiosamente, muitos professores que se apresentam publicamente como decoloniais (ou contra-coloniais) são apegados ao pensamento hierárquico europeu, que vê a educação infantil e o Ensino Fundamental como um lugar de menos prestígio intelectual. 

A professora Jacqueline Siano esteve presente na minha banca de qualificação do mestrado, ela fez a seguinte observação: “Você pesquisa confluências afropindorâmicas e práticas contracoloniais no ensino. Você precisa voltar para escola!” 

Voltei. 

Volto prenhe de caminhos e possibilidades. Trago no coração algumas ideias para adiar o fim do mundo. Há quem diga que volto pluriversalizada. Eu digo que volto povoada. Povoada por seres, narrativas, tempos e espaços. Tenho andado cada vez mais acompanhada. Nesta volta, muitas memórias foram despertadas no corpo de carne e no corpo memória. Nessas memórias, conheci e despertei memórias solares.

Quem é o Sol? Quantas narrativas conhecemos sobre sua origem, a origem do mundo e sua participação como fonte vital de energia?

Eu trazia duas memórias solares: a de casa, repetida em versos e nas práticas diárias, que me dizia que nós éramos como o Sol; a da escola dizia que o Sol é uma estrela localizada na Via Láctea, a estrela mais próxima do planeta Terra e a maior de todo o Sistema Solar. A escola dizia que era impossível que eu fosse Sol. Como a escola é autorizada a dizer o que é certo e errado, esqueci que era Sol e fiquei com a versão da escola. Essa visão reducionista de existência apaga sóis em dia pleno. 

Kuaray (Guarani); Abe (Desana); Mãyõn (Maxakali); Kamoi (Baniwa); Sol (Português); Bari (Huni Kuin); Pawa (Ashaninka); Wei (Macuxi) são mais que palavras utilizadas para designar o Sol; são epistemologias solares. Palavras geradoras, acompanhadas de vida e mundos. Tenho um gosto especial por narrativas que começam com “Antes o mundo não existia”. Esse tempo antes do tempo existir traz ensinamentos profundos de cuidado e manutenção da existência. Os mitos de origem não existem para alimentar os ouvidos do mundo, mas para vibrar vida. 

Despertando memórias solares, alguns vazios foram preenchidos com escutas e pesquisas; em breve o Ciclo Sol apresentará uma série de falas sobre o Sol². O pensamento lá de casa reapareceu em livros e teses. “Deixa meu Sol aceso”, fala de meu pai, apresenta vestígios de uma filosofia antiga, trazida ao Brasil por pessoas negras durante a travessia do Atlântico entre os séculos XVI ao XIX (tráfico de pessoas promovido por Portugal é a expressão mais precisa). No pensamento Bantu-Kongo, quatro grandes “sóis” regem  os processos de formação e mudança. O primeiro (Sol Musoni) é o Sol do “ir para”, todos os começos; o segundo (Sol Kala) é o Sol de todos os nascimentos; o terceiro (Sol Tukula) é o Sol da maturidade, liderança e criatividade; o quarto (Sol Luvèmba) é o Sol da última e maior mudança de todas, a morte¹. 

Nunca empreguei tanto a palavra Sol no plural quanto nesses últimos dias. Plural em significados e existências. Coexistências continuamente formando, mudando, expandindo. De sol em sol, se pensarmos no processo de solar de formação Bantu-Kongo, o Grupo Aprendizagens encontra-se no segundo sol. Estamos nascendo. Nascendo e propondo nascimentos. Para isso, temos semanalmente reuniões de planejamento e estudo (com pessoas da equipe Selvagem); mensalmente nos reunimos com os professores da escola parceira e com os voluntários do grupo. 

 

Foto: Wagner Clayton

 

Nosso último rompimento, foi receber na escola a visita da ceramista Angélica Arechavala (voluntária que acompanhou o Grupo Crianças e agora apoia o Grupo Aprendizagens). Pode parecer simples, mas a escola está localizada numa região desfavorável para receber visitas. Nossa ideia é estreitar parcerias e criar uma rede orgânica entre territórios, isso inclui trazer pessoas de fora para conhecer a comunidade escolar e levar a comunidade escolar para conhecer outros lugares. 

Para que mais um Sol vivo fosse incluído na mediação das oficinas de cerâmicas, contamos com a articulação da escola, que disponibilizou pessoas para buscar Angélica e trazê-la pelo caminho mais seguro. Ao compartilhar com um cientista a potência daquele encontro que durou 10 horas, recebi o seguinte comentário:

“Os objetos dobram o espaço-tempo, sentem essa curvatura e se movem de acordo. Você é um sol. A chegada da ceramista adiciona um novo sol além de você. Isso desloca a posição do primeiro sol, e principalmente dos demais planetinhas que são seus aluninhos kkkkkk que estavam acostumados à configuração anterior. Por isso, eles estavam mais próximos girando e orbitando em torno de você”.

O que teve de tão potente nesse encontro? Eu pude sentar e tocar em crianças que geralmente não me permitem muita aproximação. Crianças que conhecem o horror bem de perto confiaram em nós no último encontro. Era um ambiente de muita confiança e cuidado: direção, coordenação e professores nos acompanharam em todo tempo, em cada espaço.  A presença de Angélica dobrou o espaço-tempo, gerando deslocamentos solares.  Estamos caminhando para gerar Tukula, o Sol da maturidade. Que ele chegue em boa hora.

“O Sol caminha devagar, mas atravessa o mundo” – Provérbio Africano

 

 

¹Fu-Kiau, Kia Bunseki e Lukondo-Wamba, A.M. KINDEZI: A Arte Kongo de Cuidar de Crianças.  Com introdução de Marimba Ani. Tradução para o brasileiro por Mo Maiê. Rede Africanidades

²O Ciclo é composto por 19 falas pluriversais de Catarina Delfina Tupi-Guarani, Fabio Scarano, Moisés Piyãko (Ashaninka), Catarina Aydar, Carlos Papá (Guarani), Aliny Pires, Dua Busë (Huni Kuin), José Miguel Wisnik, Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Júlia de Carvalho Hansen, Francisco Baniwa, Aza Njeri, Anacleto Tukano, Carla Wisu (Dessano), Camila Mota, Marcelo Gleiser, Eduardo Góes Neves e Ailton Krenak.



02/05/2024

TRAMA QUE TECE A VIDA – por Cris Takuá

                          Arte: Rita Huni Kuï

 

Teia da vida

Somos um emaranhado de fios

de sentimentos entrelaçados energicamente

A cada dia aprendendo

a tecer a grande teia da vida

Fia Fia Fia o Fio

Tece tece tece a mão

A base da trama 

Que colore essa canção.

Entre teias de aranhas

E profunda miração

As artes vão brotando

Fiando, tingindo e tecendo o algodão.

A floresta inspira o artista

Que medita e se inspira

Refletindo em sua bela criação

Mensagens ao mundo de respeito e união.

A arte traz a potência da cura

O eco da política em sua ampla concepção 

Criativa e transformadora.

O artista é um semeador,

Diálogo com morcegos, jiboias e aranhas 

E com seus saberes e fazeres ancestrais 

Toca a alma e descoloniza a mente 

Há séculos moldada por uma 

Monocultura do pensamento

A arte tem a possibilidade 

de metamorfosear as relações

Entre o céu e a terra

Entre o visível e o invisível

Nos mostrando outros caminhos 

Outras realidades possíveis

Num manancial intelectual e criativo 

Que habita na complexa e bela existência 

dos povos todos que resistem

com seus cantos, rezas, artes e filosofias.

A estética da floresta é múltipla

E dialoga com conhecimentos

Que não estão nos livros e nem nos museus

Vivemos uma criminalização epistêmica.

Uma violência contra as ideias 

Contra o pensar 

E isso reverbera no útero da terra 

Machucado de tanto nos abrigar 

Que saibamos despertar as lembranças 

E voltar a tecer boas e belas palavras 

E tecidos coloridos para reencantar a vida.       

 ********

Fotos: Kawa Huni Kuï

 

A tecelagem manual é uma arte que acompanha o desenvolvimento do ser humano há muitas gerações. Os diversos povos, de acordo com sua cultura, seu clima e sua região, desenvolveram o processo de tecer, fiar e tingir para produzir tecidos. Uma forma de linguagem ancestral que transmite narrativas repletas de sentidos e encantos. Para alguns povos, a aranha foi quem ensinou a tecer; para outros, a jiboia; para outros, pássaros que vão fazendo seus ninhos tecendo fibras e galhos. São ensinamentos muitas vezes passados do mundo espiritual para os humanos.

Para as mulheres Huni Kuï, o canto é parte do processo de tecelagem: durante a colheita, descaroçamento, bater e fiar das fibras de algodão, as artesãs cantam pedindo à força das aranhas para tecer rapidamente, já que, segundo sua cosmologia, o fio colhido pela aranha já saía pronto, sem a necessidade de bater ou fiar.

 

Arte: Rita Huni Kuï

 

Para que as artes indígenas continuem existindo, há a necessidade de que existam as florestas. O modo como a sociedade se desenvolveu nos faz esquecermos de quem realmente somos, não deixando de olhar para o fundo de nossa essência, para conseguir atravessar as barreiras do desconhecido. Junto a isso, a imensa fonte de informações na qual estamos mergulhados, os maus hábitos alimentares, o egoísmo, o desamor e a falta de bom senso estão desencantando a humanidade que sonhamos ser.

Um dos principais saberes que as sociedades indígenas têm e que torna seu pensamento valioso é justamente uma outra maneira de conceber a relação entre a sociedade e a natureza, entre os humanos e os não humanos, uma outra forma de conceber a relação entre a humanidade e o restante do cosmos. A existência de um equilíbrio, em que todos os seres interagem e se respeitam, não só os mais velhos, os anciãos e pajés, mas todos; jovens, crianças, formigas, abelhas, árvores, todas as formas de vida.

 

Foto: Cris Takuá

 

Para os povos indígenas, a natureza é quem dá sentido à vida. Tudo em seu equilíbrio. Como uma imensa teia, na qual tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está pra acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que com sua delicadeza e sabedoria vão nos guiando e nos ensinando como bem viver.

A arte brota de uma memória muito antiga e as tramas que se desenrolam de um processo criativo de imaginação mostram o potencial que habita no interior de cada tecelão. Entre sonhos e mirações vão se revelando formas e sinais, que refletem da natureza sua origem de criação, pulsando para a vida o sentido dessas relações.  

 

Foto: Carlos Papá

30/04/2024

O SOL SONHAVA AMANHECER – por Veronica Pinheiro

 

“Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou o Sol
Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou a água, o vento, a vida no planeta
Por isso você não pode ter medo do escuro.
O escuro é a mãe de todo o universo, inclusive de Deus.
O escuro não escolhe ninguém.”
Poética Guarani narrada por Carlos Papá¹

 

Foto: Veronica Pinheiro

 

O diálogo a seguir abre caminhos para a segunda Oficina Aprendizagens, que o Selvagem pensou para a Casa das Crianças:

  • Preciso de uma sala escura.
  • Não temos uma sala escura. Você não pode usar a Sala de Leitura com a luz apagada? 
  • Posso. Mas ela não é escura o suficiente. E se alguém, sem querer, acender as luzes da sala, perdemos esta etapa do trabalho.
  • Crianças têm medo do escuro.
  • Crianças têm medo da relação que criaram para elas com o escuro. Vai dar certo, elas estarão carregando o Sol dentro do peito. Vamos construir uma boa relação com a escuridão.
  • Tem a antiga salinha do médico. Não sei se é escura o suficiente, mas eu te levo lá.

A salinha do médico ganhou camadas de tecido preto, gentilmente colocadas pelo professor Wagner, tornando-se o nosso laboratório de imagens e sons. A oficina era sobre o Sol e a relação de vida que ele estabelece com a Terra. A palavra “relação” aparecerá escrita ou subentendida em todos os textos do diário, e não será por descuido. A oficina, mais especificamente, era de cianotipia, processo fotográfico artesanal, criado no século XIX, que utiliza sais de ferro para a produção da cópia fotográfica em tons de azul. A sala cedida, inicialmente, era para a preparação dos químicos, para sensibilizar e secar os papéis na primeira etapa. E, para a impressão das imagens, a luz do Sol. A sala está se tornando um lugar para pensar sobre as coisas que sentimos quando estamos longe da luz. Para as crianças, luz significa bem, coisa boa; e escuridão significa mal, coisa ruim. Entre a luz e a escuridão, o pensamento euro-cristão-monoteísta criou distâncias fixas preenchidas por medos.

A escolha das oficinas é um grande apanhado de inquietações. Buscamos atividades em que a natureza seja protagonista. E nos concentramos para que o protagonismo não se confunda com utilidade ou recurso. Cuidamos para que ninguém pense que usamos a luz do sol para revelar fotografias. Não usamos a natureza, somos seres compartilhantes. Diante do sol os corpos dançam – o corpo da água, dos humanos, das plantas, dos sais. De que nos adiantam atividades onde há uma ebulição sinestésica, que, no final, só gera prazer aos humanos e ofende às árvores, às águas, à terra? 

Foto: Wagner Clayton

 

Antes da oficina de fotografia artesanal, conversamos sobre os textos que a luz do Sol escreve na terra. Falamos sobre escuridão (de onde saímos todos), sobre fotossíntese,  foto e  sínteses. Três textos foram compartilhados com os alunos da escola: A vida do sol na Terra¹, Iori descobre o Sol e Taynôh, Ho Shamêh Tahe. Um vídeo sobre o Sol foi exibido. Pintamos o Sol em tecidos de algodão; tecemos raios solares para pulseiras; fizemos registros fotográficos; sensibilizamos papéis no laboratório escuro. Com qual objetivo? Despertar memórias solares.

A escola constrói esquecimentos. Por anos, acordei antes do Sol, chegava na escola bem cedinho e voltava para casa quando o Sol já estava se pondo. Trabalhava na escola e ensinava sobre as coisas da vida. Naquela época, estive tão distante do Sol que meu corpo se esqueceu de muita coisa. Desaprendi a suar e a produzir vitamina D. Meu corpo tinha falta de Sol.

Se a escola constrói esquecimentos, contamos histórias para acordar sentidos e memórias. 

“Se tiver dificuldade para achar o caminho, pergunte a meu filho Kuaray, o pequeno Sol, que ele saberá guiar vocês.”¹

Em diálogo com o mito Guarani, conhecemos um pouco sobre Kuaray, filho de Nhanderu’i. Conversamos sobre caminhada e escuta. 

A mãe do Sol em algum momento parou de ouvir o Sol porque ficou furiosa quando foi picada no dedo por uma enorme abelha mamangava.

 

Foto: Wagner Clayton

 

Os pequenos sóis que estavam diante de mim quiseram falar. Eu parei para ouvi-los. Eram narrativas silenciadas. Compreendi ali um pouco da relação deles comigo e com a escola. Algumas crianças sem mãe, muitas sem pai, tendo que ser um Sol que brilha sozinho na Terra. Crianças de 5 a 7 anos que conversam sobre conselho tutelar, abandonos e desejos de ser Sol.

Na leitura de Iori descobre o sol, de Oswaldo Faustino, na verdade é o Sol que descobre Iori. Em Iorubá, Iori quer dizer “cabeça que voa alto”. Exercitamos imaginar quem era o Sol e o que ele fazia na Terra. No final dessa atividade, recebi vários sóis pintados e nomeados com nomes femininos. Sorri e falei alto: “Vocês aprenderam isso com os Macuxi?”. “Wei” significa “Sol”. Sony Ferseck me disse que, para a cultura do povo Macuxi, o Sol é uma entidade feminina². As crianças entenderam o exercício de pensar em outras formas de ser e estar no mundo. Pensaram no Sol como quem alimenta as plantas todas as manhãs e disseram: “O Sol é mãe”. Eu sorri. Nunca tinha pensado nessa possibilidade. Confluímos. Meus pequenos companheiros de jornada iluminaram mais uma vez meu caminho na Pedreira³. 

Deste livro, surge a frase mais doce que li na semana: “O sol sonhava amanhecer”. 

Sonhei com o Sol e partimos para a última leitura e oficina.

Taynôh, Ho Shamên Tahe, o menino que tinha cem anos, é um livro polilíngue (Puri, Guarani Mbya, português e espanhol) de Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri). A leitura foi rápida e generosa. Fomos guiados por uma água doce e profunda, conversamos sobre não plantar esquecimentos. 

Durante esse encontro, sistematizamos todas as etapas da cianotipia. Depois de ter explicado tudo o que iria acontecer e os resultados que teríamos, pulei etapas e descumpri os combinados. A turma acompanhou a oficina seguindo a professora na sala escura, no Sol. Mas as impressões não saíram no papel. Letícia, de 10 anos, fez a seguinte observação: “Para que as coisas aconteçam na terra, todos os elementos precisam estar presentes. Você sensibilizou os papéis com água. Não usou os sais. ‘Tudo acontece em presença’, não é?”. “É. Tudo precisa estar presente, Letícia.”

Vitor, de 10 anos, conclui: “Então bora voltar pro escuro e começar tudo de novo”;

Começamos de novo. E quando colocamos no Sol os papéis, sem pular etapas e sem ausências, o Sol escreveu em azul nos papéis. Ali estavam nossas fotografias azuladas, retratando as folhas que colhemos no quintal.

Fotos: Wagner Clayton

 

 

¹https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2023/11/CADERNO79_PAPA_KANGUA.pdf

²Ferseck, Sony. Weiyamî: mulheres que fazem Sol. Boa Vista, RR: Wei Editora, 2022.

³Pedreira é o nome do complexo de favelas onde a escola está localizada.



25/04/2024

NO TEMPO DAS CHUVAS – por Cris Takuá

 

Foto: Cris Takuá

 

O cheiro dos pingos na terra batida 

Anunciam a chegada das chuvas

Trazendo suaves brisas

Lembranças da infância 

De histórias vividas

O tempo, marcador das horas 

Dos momentos gravados

Sentidos na memória 

Me trazem sensações 

De infinita alegria 

Oh Terra!

Mãe dos seres animais e vegetais 

Oh vento!

Suspiro infinito do ventre do universo

Oh água !

Circula nas veias que percorrem 

os caminhos na imensidão do espaço

Oh fogo!

Sagrado mestre que a tudo consome, 

tudo transforma e aquece 

Salve as direções que nos guiam 

Aos olhos que nos orientam

E aos pés que nos sustentam

Nessa caminhada rumo ao infinito.

 

Foto: Cris Takuá

 

Cada dia que passa me animo mais a convidar os humanos a se tornarem selvagens, sentirem a delicada beleza de ser e estar em seu território em boa e bela forma. Amanhecer ouvindo o canto dos pássaros e anoitecer à beira do foguinho, contando histórias do dia que passou. A simplicidade que rodeia a vida de quem se permite ser parte da natureza é de uma grandeza muito encantadora.

O mundo acelerado do capitalismo, que transforma tudo em mercadoria, afastou a maioria dos humanos de sua essência e de sua alegria. Enquanto muitos se entorpecem de remédios para conseguir dormir, nas Tekoá, os Guarani, os Maxakali, os Ashaninka, os Huni Kuï e muitos outros parentes cantam para celebrar a noite. 

Desde criança me encanto com o cantarolar das chuvas que caem, limpando a terra e acalmando os pensamentos. No tempo das chuvas, tudo se torna alegria: o cházinho de erva cidreira, o bolinho assado de milho, as brincadeiras sem fim….

Como é bom ser selvagem!

Mas a sociedade capitalista insiste em querer nos colocar etiquetas, regrar nossas mentes para esquecermos que não tem dinheiro que paga a simplicidade. Por isso, sigo na minha rebeldia de acreditar que fazer comida no fogo da lenha, usar meu cachimbo para rezar e preparar remedinhos do mato para as crianças é acreditar num futuro mais feliz! 

Há tempos aprendi a desvirar o bucho de criança e isso é tão mágico! As faculdades de medicina não ensinam isso aos seus alunos, que buscam praticar a cura como profissão. Curar susto, lombriga desconfiada e tantos males que afetam as criancinhas é de uma beleza selvagem!

Assim, sigo dialogando com as chuvas, aprendendo a escutar os trovões e me direcionar nesse mundo de tantas belezas.

 

Foto: Cris Takuá

23/04/2024

CADÊ O RIO QUE ESTAVA AQUI? – por Veronica Pinheiro

 

Turma do 1º ano Roda de Leituras: A natureza que vive aqui
Foto: Professor Wagner Clayton

Os livros didáticos de história do Brasil sempre apresentaram a vida dos povos indígenas e quilombolas de forma preconceituosa. As lacunas estabelecidas, intencionalmente, nos ensino básico e superior formou, deformou e conformou gerações. Ao apagamento sistemático de produção de saberes produzido por grupos contra-hegemônicos¹, chamamos de EPISTEMICÍDIO. Quando o conhecimento científico se torna a única maneira de ler e entender a vida, fica estabelecido uma estrutura monocultural que tenta desqualificar outras formas de conhecimento. 

Ouvi, mês passado, num evento de uma universidade federal, que ”somos vira-latas”. A fala veio de uma doutoranda bem intencionada que tentava explicar que a mestiçagem estrutura toda a forma de ser e existir do brasileiro. Vira-latas são SRD, cães sem raça definida, sem origem delimitada com misturas de duas ou mais raças. Com todo amor que tenho aos vira-latas, o pensamento que compara o povo brasileiro a cães sem origem delimitada é perverso do começo ao fim.  

Começo a contar histórias indígenas e afro-pindorâmicas da seguinte forma: 

Há quinhentos anos, não existia um povo chamado de brasileiro. Quem morava aqui (Rio de Janeiro) eram outros povos. Eram nações que falavam línguas diferentes, tinham seu próprio jeito de ser e seu próprio nome. E sempre perguntam: Quem vivia aqui? 

A armadilha colonial é tão bem feita que levamos às crianças apenas as informações contidas nos livros. Fazemos isso, mesmo sabendo que os colonizadores, que tentaram identificar o nome de cada povo, criaram muitas confusões por desconhecer a língua falada ou por simplesmente preferir genericamente designar nações.

A escola onde estamos tecendo memórias está localizada próxima aos rios Acari (peixes), Irajá (cuia de mel) e Pavuna (lugar atoladiço). Os rios dão nome aos bairros. E às suas margens, além de mata ciliar, encontramos fios de memória para nossas tessituras. 

No ciclo presencial AYVU PARÁ, que aconteceu no dia 31 de maio de 2023 no Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, Carlos Papá mediou aulas com saberes profundos sobre a Nhe’ërÿ (o lugar onde os espíritos se banham, assim os Guarani chamam a Mata Atlântica). Durante os dias de encontro, a caminho do restaurante onde almoçamos, Papá me fez a seguinte pergunta: “O que você está ouvindo?” 

Era hora de almoço, um dia de semana na Barra Funda, São Paulo capital. Eu ouvia crianças indo ou voltando da escola, carros e ônibus na avenida Matarazzo, gente passando. Papá vendo que eu não entendi a pergunta, parou, olhou para a tampa de um bueiro e disse: “Você não ouve o rio? Tem um rio preso aqui dentro.”

Depois da escuta ser gentilmente conduzida, ouvi o rio. Sua voz era diferente dos rios que eu tinha acabado de ouvir em viagam no Recôncavo Baiano. Uma voz densa. Era tanta força e vida que eu fiquei ali por alguns minutos. 

Os rios sabem de muitas coisas. Certamente eles sabem da origem de muitas coisas. Nada nesse território tem origem desconhecida. A questão é: quem estamos ouvindo? Os livros didáticos trazem informações sobre pessoas indígenas e quilombolas, porém raramente indígenas e quilombolas participam da organização dos conteúdos. Mais raro ainda é encontrar parcerias que não tratem pessoas indígenas e quilombolas como objetos informantes ou interlocutores-informantes.

Sonho com o dia que poderei, como professora, colocar nas referências dos meus textos e planejamento de aula: “palavras do Rio Acari” ou “canto do beija-flor que pousou na janela da sala”.

A lei 11.645 torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio. Na prática, os livros são a referência, e as aulas são encontros para repasses de números, dados, datas e informações sobre algo desconhecido. A história e a cultura idígena e afro-diaspórica se estabelecem em presença, não em referência. O mito ou o itã são memórias vivas de povos vivos. A corporeidade é o lugar de articulações e agências de vida. O território vibra a força da vida; sendo ao mesmo tempo corpo, chão, rio, ar e todos os seres que existem naquele lugar. Por isso, insistimos em falar de escolas vivas. Escolas de presença, com memórias vivas.

Para isso, precisamos refazer percursos. Como professora, devo estar disponível aos processos de desaprendizagens. De deseducação. Preciso criar outra relação com o tempo/bimestre/cronograma/agenda. O que fala o rio Acari me importa mais que o que contam os livros. Quando as crianças me perguntam: “Qual povo vivia aqui?”

Eu respondo: “Cadê o rio que estava aqui? Algum rio passa por aqui? Porque os rios certamente sabem mais sobre esse lugar do que os livros que li.”

A pergunta rendeu: Agora temos um projeto junto a coordenadora pedagógica da unidade para a escola e comunidade escolar. Cadê o rio que estava aqui? O que os rios dizem sobre nós?

Se você ouve rios e sabe de coisas líquidas, mais ou menos torrenciais, precisamos de você para construir percursos. Para caminhar pelas águas, temos uma canoa chamada Encantada. E nela sempre cabe mais um. Aceita o convite?

 

Apresentação da sala de Leitura e o 4º ano para escola: A culpa não é da chuva
Fotos: Professor Wagner Clayton 

 

¹ Entende-se por movimentos contra-hegemônicos as práticas de resistência aos discurso de gestão dominantes que buscam contestar e escapar à disciplina da ordem do sistema capitalista. SULLIVAN, S; SPICER, A; BÖHM, S. Becoming global (un)civil society: Counter-Hegemonic Struggle and the Indymedia Network. Globalizations, 8(5), 703–717. https://doi.org/10.1080/14747731.2011.617571

18/04/2024

HISTÓRIAS QUE OS LIVROS NÃO CONTAM – por Cris Takuá

 

Foto: Roberto Romero

Sueli Maxakali, artista, cineasta, liderança, avó e coordenadora da Escola Viva Maxakali, passou anos de sua vida sonhando reencontrar o seu pai Luis Angujá, como é conhecido, do povo Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Eles se separaram há mais de 40 anos, durante a Ditadura Militar. Para esse reencontro, Sueli idealizou, junto com sua irmã Maiza, o filme Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá. Esse longa-metragem documental está em processo de finalização e contou com apoio do antropólogo e amigo Roberto Romero e de Tatiane Klein, antropóloga que estuda há anos junto aos Guarani e aos Kaiowá. Foi ela quem, em 2019, nas suas caminhadas pelo estado, encontrou Luis vivendo na Tekoha Laranjeira Nhanderu e comunicou Robertinho. A partir daí organizaram a primeira ligação telefônica entre eles. Na época lembro que Tatiane Klein me contou e me enviou um vídeo de Luis muito emocionado.

A Ditadura Militar causou profundas feridas nas memórias e violentou os corpos e os territórios, provocando prisões, trabalho forçado, torturas, envenenamentos e doenças. Houve ainda a proibição da língua materna entre os povos indígenas. No relatório da Comissão Nacional da Verdade consta que mais de 8 mil indígenas foram mortos nesse período, vítimas de torturas e tentativas de apagamentos de suas memórias. Os livros de história e de literatura estudados nas escolas brasileiras contam muito superficialmente o que realmente aconteceu durante os anos de ditadura. A maioria dos livros mostram, com muitas fotos, os exílios de artistas famosos, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas não falam absolutamente nada sobre o exílio, o genocídio e o etnocídio dos povos indígenas.

Em meados de 1960, no auge da ditadura militar brasileira, Luis Kaiowá e seu primo José Lino foram levados para vários lugares diferentes por agentes do estado brasileiro, finalmente chegando ao Posto Indígena Mariano de Oliveira, na aldeia Maxakali de Água Boa, em Minas Gerais. Lá viveram mais de 15 anos. Luís casou-se com Noêmia Maxakali e teve duas filhas, Maiza e Sueli, enquanto José Lino casou-se com Maria Diva Maxakali e teve quatro filhas. Porém, pouco mais de dois meses após o nascimento de Sueli, Luis e José Lino foram reconduzidos para o Mato Grosso do Sul e nunca mais voltaram. Luis tornou-se um renomado rezador do povo Kaiowá, enquanto José Lino faleceu poucos anos após seu retorno.

 

Foto: Tatiane Klein

Sueli e Maiza cresceram sem ter notícias do pai, mas sempre buscaram perguntar o paradeiro dele quando encontravam parentes Kaiowá. Com a chegada da notícia de Tatiane Klein sobre a localização certa onde estava vivendo Luis, Sueli, com ajuda de parceiros, organizou a viagem de encontro e a gravação de um documentário contando toda sua história. Isso estava previsto para 2019, mas com a chegada da Covid tiveram que desmarcar e aguardar.

Nesse meio tempo, em setembro de 2021, Sueli, Isael e várias famílias Maxakali resolveram retomar uma área, a Aldeia Escola Floresta, onde hoje estão. Lá cultivam o sonho de curar a terra e fortalecer a vida das crianças e jovens através de práticas educativas. Em 2022, com a diminuição nos casos de Covid, Sueli e Maiza conseguiram retomar o projeto e planejar o tão sonhado encontro. Se prepararam espiritualmente para a partida na Aldeia Escola Floresta com um grande ritual do gavião-espírito, Mõgmôka, e seguiram para o Mato Grosso Sul. Entre os dois povos, muita expectativa, emoção, histórias e memórias em meio a um processo secular de expropriação, assassinatos e devastação de seus territórios ancestrais. E mesmo com tanta violência e dor, os dois povos resistem e exibem um ritual de vida vibrante e intenso, povoado por cantos, sonhos e espíritos. 

Fotos: Roberto Romero

Profundas histórias de vida e luta não figuram nos livros de história das escolas, mas estão presentes em muitos territórios indígenas. Quem quiser saber mais sobre o encontro de Sueli e Maiza com pai, em breve o filme estará em circulação e vai contribuir muito para o entendimento do que representou a Ditadura Militar para os povos indígenas.

Agradeço a Roberto Romero e Tatiane Klein, que contribuíram com fotos e narrativas desse momento tão importante para história do povo Maxakali e Kaiowá, mas também para história do Brasil.

Compartilho o link de um outro documentário feito por Isael e Sueli que conta também as violências durante a Ditadura Militar para o povo Maxakali: GRIN-Guarda Rural Indigena (Roney Freitas e Isael Maxakali 2016) – Documentário.

 

Foto: Alexandre Maxakali

16/04/2024

DESENHOS DA FALA – por Veronica Pinheiro

 

 

“Tem gente me ouvindo?
Quem tá me ouvindo bate uma palma.
Quem tá me ouvindo bate duas palmas.
Quem tá me ouvindo bate três palmas!”

Professores espalhados pelo Brasil lançam mão dessa quadrinha para obter a atenção das crianças para uma atividade. Como professora, muitas vezes me bastava que os alunos me disponibilizassem seus ouvidos, olhos e mãos. Existe uma tal régua que mede a eficiência de um professor e nas escolas a conhecemos pela alcunha de “domínio ou controle de classe”. Quanto mais quieta uma turma, mais eficiente é o regente. O professor em atividade é chamado de professor regente. O comportamento da turma e o desempenho nas avaliações são os critérios máximos para avaliar um professor. Por quê? Porque são pontos observados quantitativamente; são índices facilmente observáveis. Nunca vi secretarias ou programas educacionais medindo o quanto uma turma ou um professor está feliz no bimestre. 

A felicidade e o bem-estar não compõem os objetivos gerais ou específicos de um planejamento escolar. Quanto está feliz o professor da turma A? Qual a turma mais feliz da escola? Felicidade é subversão em espaços de formação. A escola é uma estrutura social que representa esquemas de poder e, para isso, as pessoas que ocupam esse espaço assumem papéis sociais. Para garantir sua adaptação e permanência na função, um professor adota a máscara social do regente, se apresentando publicamente muitas vezes como um indivíduo austero. Dá um trabalho danado ser gentil na escola, sabe? Alunos não reconhecem a gentileza como características de um regente. Para eles, adultos são máquinas de dizer “não”; adultos determinam onde, quando e como. 

Na prática, “uma turma boa permanece sentada em silêncio ouvindo e escrevendo”. Delicado, né? Porque um professor que tem 40 alunos em turma não consegue trabalhar se a turma não estiver sentada, né? Tudo é feito para ninguém questionar o modelo estabelecido.

Diante de toda potência dos corpos, docentes e discentes, o sistema educacional regular quer dos professores apenas voz e mãos. Dos alunos, os professores querem ouvidos, olhos e mãos. 

Atendo semanalmente 14 turmas, passo 1h40 com cada uma delas. Confesso que tenho minhas máscaras sociais. Quando percebo que tenho a atenção de uma turma retiro a máscara da regente, algumas turmas entendem o código e seguimos de boa ao som de músicas, lendo, escrevendo e observando como a natureza está presente na escola. Porém, uma turma já percebeu que componho uma personagem para dar aula. Esses meninos, mais espertos que eu, não me deixam falar, eles não me emprestam seus ouvidos. Diante do desafio, busquei os recursos que tenho para termos qualidade em nossos encontros. 

Levei argila para aula e pensei: “Quem sabe o contato com a terra crie um tempo de escuta de qualidade?” O processo de criar com argila está também associado a práticas meditativas de concentração plena. O tato, o contato, a interação com a terra podem promover um senso de comunidade e conexão entre as pessoas do grupo. Mas não deu certo com eles.

Tentei várias coisas. Algumas funcionaram parcialmente. 

Lembrei da experiência que vivi com jovens artistas Guarani na preparação do Ciclo Nhe’ërÿ em maio de 2023. Vi quando eles cantaram e dançaram diante de uma tela em branco. Antes de pintar, eles cantaram as memórias da Nhe’ërÿ e honraram a Nhanderu com danças e palavras sagradas. Quando sentiram em seus espíritos que estavam autorizados para representar a Nhe’ërÿ com desenhos, desenharam as palavras cantadas e faladas. 

Foi quando resolvi parar de ler histórias para o terceiro ano e começar a desenhar no quadro as histórias do livro. De Elias Yaguakãg, As aventuras do Menino Kawã foram desenhadas no quadro branco e, enquanto a turma ficava empenhada em reproduzir as imagens no caderno meia-pauta, eu aproveitava para contar (às vezes, ler) as histórias. Capítulo por capítulo, as palavras ganharam imagens que eram apagadas do quadro no final da aula. Percebi que as mesmas imagens ganharam lugar nos olhos, cadernos e na memória criada em aula. Um dia, esqueci o quadro desenhado e a professora de inglês da turma não entendeu os desenhos. Então eles contaram para ela sobre Kawã, o menino indígena que era protegido pela Ka’apora’ãga. A professora me procurou na hora do almoço dizendo com sorriso nos olhos: “Eles ouviram e sabem cada detalhe da história. Eles não só te ouvem, eles estão te escutando”.

Já que chamamos nossos compartilhamentos de semeadura, precisamos saber o que a terra pode dar antes de lançar a semente. Eu queria os ouvidos, mas eles são visuais. Não ia dar certo, né?

Eles escutam com os olhos!

 

Desenhos: construção coletiva da Turma 1401 com a professora Veronica

11/04/2024

PENSAMENTOS DE CRIANÇA – por Cris Takuá

 

Fotos: Alba Rodríguez Núñez

Numa manhã de céu azul e montanha iluminada, fiquei a refletir sobre a profundeza dos pensamentos que desabrocham das criancinhas. Tudo está a pensar, observar e imaginar nesse mundo de encantos e belezas.

Kauê Karai Tataendy Mindua, meu filho de 10 anos, é um pensador desde os primeiros passos de sua vida, um grande professor das sutilezas das coisas que nos rodeiam. Cuidador de galinhas e cachorros, tem um galo chamado Pirata, que ele cuida desde que nasceu e que é cego de um olho. Kauê, com muito afeto, fez curativos e hoje Pirata é um galo que comanda o terreiro com seus cantos fortes logo ao amanhecer.

Nessa caminhada junto a esse meu pequeno professor, muitos conhecimentos vou aprendendo com ele. Uma reflexão que ele me trouxe esses dias foi sobre a relação dos humanos grandes com os seres da floresta. Ele me perguntou por que as pessoas crescem e deixam de ser “delicadosos” com os outros bichinhos e plantas. Ele pensa que muitos humanos grandes perderam essa sensibilidade de escutar e conversar com os outros seres e até com os espíritos.

Foto: Alba Rodríguez Núñez

Mergulhado em suas profundas inquietações, desde criança nas caminhadas na mata, traz falas sobre tempos outros onde ele se recorda de situações e momentos da vida que a sua memória ainda alcança. 

Curioso perceber a transparência lúcida da dimensão dos pensamentos das crianças, que tecem narrativas imaginárias e se encantam com as mais pequeninas coisas.

Meus dois filhos sempre me acompanharam nas caminhadas da vida, em lutas, trabalhos e articulações. Um dia fui convidada para comentar um filme sobre rezadores, xamãs de vários lugares do mundo, que seguem com seus cantos e rezos segurando os céus e equilibrando a vida no planeta. Kauê, atencioso que sempre foi, ao chegar em casa ficou comentando sobre o que viu e ouviu naquela noite e no dia seguinte pediu pra assistir o filme de novo comigo. Foi um momento forte para nós dois, pois ficamos encantados e ao mesmo tempo profundamente tocados por aquelas realidades tão distantes, mas tão parecidas com as nossas.

Passou um tempo e o vi concentrado com suas canetinhas coloridas desenhando tudo que estava pensando das nossas conversas e daquelas realidades tão profundas.

Desenhos: Kauê

Rezar para chover, rezar para continuar nevando, rezar para seguir os rios e mares com água limpas e peixes para comer, rezar para manter a floresta viva frente a tantas violências, como mineradoras, petrolíferas e um agronegócio avassalador.

Assim seguimos dialogando e sentindo a força que emana nos quatro cantos do mundo desses rezadores e rezadoras, que seguem, cada um da sua forma, resistindo para cuidar da nossa Terra tão machucada.

Que sigamos rezando e aprendendo com a delicadeza das crianças.

🐜🐜🐜🐜🐜🐜🐜🌱🌿💚

Foto: Alba Rodríguez Núñez

09/04/2024

PISANDO SUAVEMENTE NA TERRA OU PRIMEIRO BIMESTRE ESCOLAR – por Veronica Pinheiro

 

Colagem: Lívia, 7 anos | Aula: Eu sou natureza
Foto: Veronica Pinheiro

 

Chegamos ao Complexo da Pedreira, por uma escola. Temos muitas críticas ao sistema educacional que homogeiniza pensamentos e modos. A crítica é ampla, não está direcionada a professores ou a uma secretaria de educação específica. A escola de ensino regular cumpre bem o seu papel no projeto da imposição civilizatória europeia. Essa imposição traz como consequência, para os povos afro-pindorâmicos, uma distorção de identidade, uma vez que a escola nos ensina a ver por meio dos olhos do colonizador. Já disse Leonardo Boff:

“Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.” 

Ao ignorar saberes e ciências que não estão contidos, intencionalmente, em seus manuais, a escola provoca um processo de desterritorialização de crianças dentro de favelas, quilombos e aldeias; e assim deslegitima os conhecimentos trazidos pelas crianças e famílias, obrigando alunos a adotar a língua e a linguagem do dominador. 

Já testemunhei (como aluna, professora, coordenadora pedagógica e diretora escolar) muitas violências físicas e simbólicas cometidas dentro da escola. A violência simbólica é a violência “invisível”, que subjuga e aprisiona os sujeitos. Temos muitas críticas, no entanto não podemos ignorar que, no Brasil, crianças e adolescentes urbanizados, principalmente nas periferias, estão tão vulnerabilizados que a escola pode se tornar um espaço de construções interessantes. Então… se a escola é um lugar de homogeneização e docilização de populações, ela também pode vir a ser um lugar de ruptura. 

Qual seria então o elemento disruptivo?

Cris Takuá, minha mestra, me ensina a não apostar em respostas prontas, mas na semeadura de possibilidades de transformação que sustentam mundos. Acreditamos no fortalecimento dos territórios através do acordamento de memórias recentes e memórias muito antigas. Sendo o tempo circular, o que será e o que já foi estão sensivelmente conectados. Contar histórias para acordar não é apenas para o despertamento de uma consciência sócio-histórica, mas para firmar pilares que possibilitem uma leitura de si por meio dos seus próprios olhos. 

Por esses e outros motivos, não poderíamos, porém, chegar à escola simplesmente dizendo a professores e a alunos que eles precisam pensar de outra forma. Estamos construindo diálogos, vínculos e não aplicando uma proposta esvaziada de contextos. Chegamos pisando na terra suavemente. Muitos pais de alunos estudaram quando crianças na E.M.P. Escragnolle Dória e foram alunos das professoras que dão aula a seus filhos. Algumas professoras trabalham há mais de 15 anos aqui. É fundamental ouvir essas histórias. 

Encerramos o primeiro bimestre animados. A professora do primeiro ano nos convidou para planejarmos juntos as atividades dos próximos bimestres, incluindo em seu planejamento a ideia de uma escola viva. Alguns professores estão acompanhando voluntariamente as oficinas das crianças na escola e as rodas de leituras. Outros me acharam no Instagram e chegaram ao Selvagem.

Diretoras e coordenadora pedagógica também começaram a sonhar conosco. Até o Sol, tema do ciclo de estudos Selvagem em 2024, passará a fazer oficialmente parte do Projeto Pedagógico Anual da escola – PPA. Não fizemos palestras ou reuniões para falar dos ciclos para a equipe pedagógica, o proselitismo não faz parte do pensamento Selvagem. Como se deu então as parcerias? Pela magia do encontro. O encontro é capaz de criar vínculos de vida de maneira orgânica, natural e confluente.

 

“Que possamos então nos animar
e nos animar uma vez mais,
Nhamandu pai verdadeiro primeiro!”¹


Foto: Veronica Pinheiro

 

¹A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani I. Pierre Clastres; tradução Níeia Adan Bonatti. – Campinas, SP.

04/04/2024

KA’A, ERVA-MATE – por Cris Takuá

 

Desenho: Cris Takuá


Kunhã Tatá, Doralice, foi como uma avózinha pra mim, uma professora. Ela me apresentou e me ensinou sobre a sagrada mestra da Nhe’ërÿ: a Ka’a.

Ela contava que Ka’a e Takuá eram as filhas de Nhanderu. Um dia, andando pela Terra, ele pegou um galhinho de cedro e assoprou, criando assim uma criança, que brincava e urinava por todo canto. Então nasceu um brotinho de erva mate, a Ka’á. Era uma menina e ela já cantava com takuapu. Por isso que até hoje as mulheres cantam batendo o bastão de taquara no chão.

Takuá e Ka’a foram embora com Nhanderu quando o mundo pegou fogo, a água grande veio e acabou tudo. Mas, até hoje, os Guarani têm erva mate para fazer chimarrão e taquara para o takuapu, e para trançar a palha para peneira e balaio.

Os nhe’e kuery, os espíritos que moram com Nhanderu, estão falando para os rezadores que a terra vai acabar outra vez. Antigamente já houve um período de escuridão. Não amanhecia mais, assim mesmo veio a água. 

Nessa terra onde nós estamos agora, mais cedo ou mais tarde isso também vai acontecer. Se isso não acontecer, a gente não vai aguentar mais o calor aumentando, e vai vir a chuva, e vai vir yapó há’puá tatareve’gua, barro com fogo do céu.

Nhanderu acha que o mundo já está muito velho e quer limpar a terra. 

Assim Kunhã Tatá nos contava, dando orientações de como caminhar pela Terra, saber respeitar o tempo, entendendo as direções do vento, das nuvens e dos trovões.

Para o povo Guarani, o tempo se divide em dois: Ara Ymã, o tempo velho, e o Ara Pyau, o tempo novo. Sempre que há mudanças dos tempos, costuma-se fazer a cerimônia da Ka’a para proteção e fortalecimento.

Agora estamos iniciando mais um Ara Ymã, tempo de concentração e resguardo. Não há uma data exata do dia em que mudam os tempos. Mas Tupã kuery, os trovões, passam avisando e os rezadores entendem o sinal e logo já orientam os tembiguai, guardiões da casa de casa, para irem colher a Ka’a.

Durante a cerimônia de consagração da Ka’a aprendemos muito, vemos muitas coisas que ela nos mostra e nos coloca no nosso lugar, nos direcionando para seguir o tempo que se inicia com sabedoria e tranquilidade.

 

Foto: Carlos Papá


**********************************


No meio da madrugada

Em meios aos cantos dos tarova

Concentrada no pilão 

Me senti esverdejar

Era a força da mestra curandeira,

Ka’a, professora dos tempos

Filha de Nhanderu 

Que lindamente eu a vi saudar

O sagrado Nhamandu Mirim, Sol,

 que lentamente estava a se levantar 

Com sua cauda irradiante 

Amarelando todo nosso lar 

opy’i, casa de rezo 

Nossa escola viva a bailar

Ensinando e aprendendo 

Assim seguimos a caminhar.

🌿🌿🌿🌱

Fotos: Cris Takuá

02/04/2024

TEMPO E AMOR – por Veronica Pinheiro

 

Imaginemos partículas no espaço.
Cada partícula é um ponto de energia. 

No entanto, nada existe em si só,
tudo existe porque há uma dança. 

Neste cosmos flexível,
cada corpo que irrompe
é um novo desenho e
transforma tudo ao redor.¹

Anna Dantes

 

Em minha casa, aprendi que para se educar uma criança é preciso uma comunidade.

“nada existe em si só”

Poder voltar à escola como comunidade, pertencendo e trazendo comigo a comunidade Selvagem, me coloca noutro lugar, um lugar expandido. Trabalhei como professora em escolas, durante muitos anos fui repreendida por trazer afetos e sorrisos na mesma mochila em que trazia os livros. Nasci e fui educada em comunidade. Aprendi em casa a amar com as mãos; trabalhávamos cantando e cuidando uns dos outros. Meu avô Antônio ensinou a meu pai que o canto espanta os medos e protege a casa. O cuidado com as crianças era compartilhado. Compartilhada também era a água, a comida, as dores e as alegrias.

Uma vez ouvi que eu era feliz demais pra quem trabalhava como professora em escola pública. A observação veio de uma outra professora. Na ocasião, ela estava responsável por organizar o quadro de horário e os tempos de aula de todos os professores. Naquele ano, eu conseguia cumprir toda minha carga horária em três dias por semana. No entanto, após o observado, fui colocada para trabalhar cinco dias por semana de 7h às 17h. A punição era passar mais tempo na escola. Repleta de tempos vagos, aproveitei para conhecer melhor meu local de trabalho. Foi assim que eu aprendi a observar alunos, funcionários e todas as vidas que compunham uma unidade escolar. Ali nasceu uma companhia de teatro com os alunos do 6° ano, fruto de tempos vagos preenchidos com poemas e canções.

Na tentativa de punir afetos, recorreram ao tempo. Porém, na seara de Iroko, o tempo não é castigo. Tempo é força. Iroko é a própria representação da dimensão do tempo, pouco conhecido dos seres vivos e mortos, nascidos ou por nascer. Guardião da ancestralidade, Iroko rege os tempos e fortalece os vínculos entre o passado e o presente. Iroko é a primeira árvore que se fez plantar na Terra. Para os que descendem dos bantos, equivale ao Inquice Kitembu: o vento transformador e a árvore o corpo do tempo.

Volto à sala de aula em outros tempos, volto com uma comunidade aquilombada, prenha de seres e sonhos. São tempos de dança. Tempos de afetos largos. Afetos acolhidos. Vejo na Escola Municipal Professor Escragnólle Dória que, aos poucos, crianças, funcionários, professores e equipe diretiva se permitem entrar nessa nossa dança Selvagem.  Ousamos despertar memórias guardadas pelo tempo. Estamos escrevendo bilhetes ao vento transformador; a pedreira onde se localiza a escola já foi conhecida como o “Morro da Ventania”. Através da arte, criamos diálogos sensíveis na tentativa de acordar nos seres urbanizados que somos a natureza que também somos.

Nesse universo que se chama escola, minha comunidade Selvagem dança expandindo vida. Afetando e sendo afetada. Minha comunidade me respalda.

“Enquanto o universo se expande, o amor aglutina.”²

Foto: Veronica Pinheiro

 

 

NOTAS:
1 e 2 Caderno Selvagem – Flecha 6, Tempo e amor
https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2023/10/CADERNO49_FLECHA_6.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=PeMBCABxXCQ&t=620s&ab_channel=SELVAGEMciclodeestudossobreavida

28/03/2024

CONSTELAÇÃO DE SABERES – por Cris Takuá

 

Foto: Vhera Poty

 

Nos processos educativos, e não só neles, mas também nas relações humanas, sinto a falta do afeto e da concentração, do cuidado e da atenção!

Com isso percebo que a instituição escolar não está fazendo sentido! Esse modelo de escola que prioriza a escrita, a leitura, os números, uma enxurrada de informações efêmeras, vazias de sentidos poéticos e práticos na vida das crianças e dos jovens.

Tenho pensado e sonhado com as Escolas Vivas, que valorizam o potencial de cada um em sua delicada essência. Que dialogam sobre valores de ser e estar nos territórios de forma bela e equilibrada. Que falam das artes, falam de cura, dos cantos e encantos dessa vida que pulsa a cada novo amanhecer.

Durante doze anos, eu fui professora na escola estadual indígena em minha comunidade. Foram anos de lutas e desafios, uma constante busca de equilibrar a dureza e a beleza nessa longa caminhada. Professora de filosofia que fui, mas também de história, sociologia e geografia, sempre gostei de desenhar, sair e caminhar com os alunos, ver a floresta, escutar e aprender para além dos livros.

E nesse percurso fiz parte de um processo muito forte de busca por direitos para garantir a formação dos professores indígenas numa licenciatura intercultural indígena.

Para isso, formamos um grupo de trabalho e, durante dois anos, ficamos dialogando, debatendo e construindo o PPP, o Projeto Político Pedagógico, para o curso. Nesse processo do GT que deu origem ao PPP da licenciatura que sonhamos, desenvolvemos o conceito da “constelação curricular”, para fugir da ideia de grade, onde todos os saberes ficam divididos, fragmentados e presos.

Pensar um céu que produz conhecimento e, a partir daí, fazer a articulação  entre saberes e fazeres será o grande diferencial dessa formação que vai trazer muito fortalecimento para os territórios indígenas de São Paulo. O curso será organizado no tempo de alternância, o tempo-universidade e o tempo-comunidade.

Após muita luta, em março deste ano foi dado início ao curso de formação pela Unifesp de Santos, momento histórico para os povos indígenas em São Paulo.

Fui convidada a dar a aula inaugural junto a Carlos Papá no primeiro dia da licenciatura. Foi um momento muito especial, pois, estando fora de sala de aula há dois anos, pude trazer uma reflexão sobre as minhas inquietações sobre a escola, a monocultura mental e os desafios que vivi nos tempos em que dei aula e, ao mesmo tempo, lutei intensamente para garantir um processo formativo que respeitasse o tempo de cada cultura. 

Durante o tempo-comunidade, cada aluno da licenciatura tem que fazer estágio com orientação de um professor, que pode também ser um líder espiritual, um conhecedor da cultura ou algum membro da escola local. Para a minha surpresa, um jovem aluno me fez a proposta de ser a orientadora dele junto a Escola Viva Guarani e o coordenador Carlos Papá. Esse momento é transformador para a educação e o fortalecimento das memórias ancestrais.

As Escolas Vivas desabrocharam como um sopro de inspiração, uma semeadura multicolorida para ativar as energias de mestres, que estão muitas vezes cansados dos desafios constantes. Esperamos que, a partir do caminhar coletivo, se animem a tecer juntos tramas de narrativas, saberes e possibilidades de sonhar mais.

Desenho: Fabiano Kuaray

26/03/2024

“NA FLORESTA, EU CONSIGO FECHAR OS OLHOS” – por Veronica Pinheiro

 

Desenho colorido por Manuella 10 anos

 

Oficina 1 – O sol e floresta

Quando conectamos os seres urbanos que somos com a natureza que também somos, pegamos o caminho de volta pra casa. Voltar é um movimento tão importante quanto ir. É comum na educação falarmos de “progresso”, “avanço” e “desenvolvimento”. Parece que a vida é um movimento só de ida.


“Investir no seu desenvolvimento, com um olhar atento para o processo de aprendizagem de todo e de cada aluno é fundamental para construir trajetórias de avanço”¹. Desenvolver para avançar, Secretaria de Educação Carioca.


Numa proposta contracolonial de ensino, dizemos que desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Afirmamos que nosso caminho é de envolvimentos

Na busca de práticas de envolvimento, nossas oficinas de Aprendizagens Vivas evocam saberes e fazeres presentes no cotidiano e na memória. Entendemos que a corporeidade é o lugar de registros e agência, onde se articulam e se transmitem mundos. Pensamos em oficinas sinestésicas (sons, aromas, texturas, sabores e saberes), que, a partir da expressão artística, buscam possibilitar um espaço de envolvimento, criatividade e despertamento de memórias. 

De onde venho, dizem que arte é a conversa das almas; por isso, cantamos enquanto trabalhamos e dançamos enquanto lutamos. A arte e sua potência de convocação de um corpo coletivo pode, pela liberação dos sentidos, romper espaço e tempo. Romper espaço e tempo na tentativa de conectar seres urbanizados que somos com a natureza que também somos. 

Nossa primeira oficina na escola aconteceu em dia de operação policial na comunidade. Fazenda Botafogo é uma região conhecida pelos altos índices de roubos de cargas e tráfico  de drogas e animais silvestres. Romper com tempo e espaço era tudo o que eu queria naquele dia 14 de março. Começamos falando do sol e da selva. No dia anterior, nós tínhamos andado pela parte de trás do quintal da escola para ficar embaixo das árvores e ver de onde vinha a argila. Muitos não sabiam o que era argila, vários não sabiam do que era feita a argila. Ryan explica pra turma: 

– Argila é a massinha de terra.

Distribuídas argilas de muitas cores aos alunos, pedi que eles ouvissem a história com a argila nas mãos e que tentassem modelar com os olhos fechados. As mãos precisariam seguir o que a música falava. A oficina foi realizada com turmas do 2° ano do ensino fundamental (crianças com 7 anos de idade), as mesmas turmas que apresentam dificuldades em sentar para ouvir minhas aulas. 

Duas semanas antes, eu havia tentado uma atividade que pedia para que fechassem os olhos e quase nenhuma criança da turma conseguira; o incômodo entre elas foi tamanho que pesquisei sobre o tal medo do olho fechado. “Nictofobia, medo irracional do escuro”. No caso das crianças da escola, o medo do escuro não é irracional; desde pequenos são ensinados a estar atentos e vigilantes. Os perigos são reais.

No dia da oficina, no entanto, sentados e com a argila nas mãos, caminhávamos em pensamento pela floresta. Enquanto as almas conversavam, ouvi a seguinte frase: 

– Na floresta, eu consigo fechar os olhos. 

Depois disso, não lembro de muita coisa.

Foto: Professor Wagner Clayton

 

¹Coordenadoria de Ensino Fundamental Habilidades Curriculares 1º Bimestre 2024 Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura do Rio de Janeiro

21/03/2024

NHE’ËRŸ FLORESTA VIVA – por Cris Takuá

 

Foto: Edu Simões

 

Nhe’ërÿ floresta viva 

Nela habita um portal de conhecimento 

E memórias ancestrais machucadas pela monocultura mental 

Da colonização capitalista 

Que tenta transformar tudo em mercadoria 

Nhe’ërÿ morada de saberes e encantos 

Onde os espíritos se banham 

Onde a vida de muitos povos teceu formas de resistência

Com cantos e rezos sagrados 

Todos os seres que habitam na Nhe’ërÿ 

A árvore, a água, o coração em nosso corpo, 

tudo pulsa. 

Através do pulsar a gente se emociona, sente que está vivo. 

O pulsar de cada artista da floresta gera um ser, gera um pensamento. 

A floresta Nhe’ërÿ nos convida para acordar o pulsar. 

Nós estamos sempre aprendendo, 

a cada dia estamos aprendendo uns com os outros.

Juntos, mesmo à distância, estamos pulsando numa mesma energia 

De espalhar sementes, diante desse desequilíbrio, do sofrimento da terra. 

É esta cosmovisão e poética da vida que nos guia

E nos fortalece a cada novo dia.

Rezadores seguem entoando as boas e belas palavras para acordar 

Despertar 

Animar 

E acalmar os espíritos que nos rodeiam.

A cada novo amanhecer o Sol, Nhamandu Tenonde

Segue a nos iluminar e aquecer 

Honrando as criancinhas

Que, com sua pureza e delicadeza, seguem insistindo em nos reensinar a praticar o Bem Viver.

 

Fotos: Carlos Papá

19/03/2024

APAGA QUE TÁ FEIO! – por Veronica Pinheiro


Sala de leitura, livro 3

Leia os trechos a seguir em voz alta:

“E não era muito inteligente também. Ele tinha construído a casa de palha. Dá para acreditar? Quero dizer, quem tem a cabeça no lugar não constrói uma casa de palha.”

“Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

“Esse era um pouco mais esperto, mas não muito. Tinha construído a casa com lenha.”

“Então fui até a casa do próximo vizinho. Esse sujeito era irmão do Primeiro e do Segundo Porquinho. Devia ser o crânio da família. A casa dele era de tijolos.”¹


Será que a história dos três porquinhos ocorreu daquele jeito mesmo? E se o lobo resolvesse contar a coisa toda do seu ponto de vista? 

O lobo contou e ficou pior. Publicado pela Companhia das Letrinhas, o livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, é um livro infantil que compõe o acervo das salas de leitura das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. Só na escola em que trabalho são 32 exemplares. Uma turma de Ensino Fundamental 1 tem em média 32 crianças, portanto se trata de uma obra recomendada para ser lida em classe. Além disso, em 2013 e 2014, o texto foi colocado nos cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação carioca, suprimindo alguns trechos que classificam como ignorantes os sujeitos que constroem casas de palha ou lenha. Porém, nas duas edições do material pedagógico destinadas às crianças do 4º ano do EF aparece o trecho “Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

O livro A verdadeira história dos três porquinhos deveria ser um texto para inocentar o Lobo Mau. A intenção descrita no livro é trazer ao conhecimento do leitor que o lobo foi vítima de armação. No formato de um diário, o lobo fala sua versão da estória; e fico triste que ninguém tenha sinalizado: apaga esse trecho, tá feio. Pelo contrário, o desabafo do lobo foi escrito, revisado, publicado e distribuído para crianças do ensino fundamental.

Gostaria de trazer novamente uma informação que aparece no diário da primeira semana: a Pedreira, favela onde está localizada a escola em que dou aula, possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Ao caminhar pela estrada principal do bairro vemos muitas casas de lenha. 

Foto da Estrada de Botafogo. Acervo Pessoal Lenon Suhett, Pesquisa Geografia e Comunidade Escolar
(Lenon e Veronica foram diretores de escola juntos de 2019 a 2021)

A verdadeira história dos três porquinhos fere diretamente as crianças, a comunidade e as populações tradicionais que, manifestando abundância, conhecimentos ancestrais e relação com a terra, constroem suas casas com palha, lenha e terra. 

Carter G. Woodson fala que o sistema educacional eurocentrado está a serviço da deseducação do negro estadunidense e convoca a população negra a desenvolver e executar um programa próprio. Ler o diário de um lobo me fez lembrar do professor Woodson e pensar que precisamos de práticas educacionais decoloniais efetivas e não instagramáveis. 

Foto de casa na Aldeia Guarani Rio Silveira. Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

Ao longo do trimestre, vamos construir nossa casinha com bambu, palha e argila. As crianças precisam saber que o que o lobo chama de “pouco inteligente” chamamos de conhecimento tradicional, bioconstrução, e que é preciso saber muita coisa para se levantar uma casa sem comprar nada. Povos indígenas e quilombolas conhecem muito sobre solo, plantas, sabem onde o sol nasce e onde fica a lua em relação à casa construída; e tudo isso é sobre relacionamento. Recontaremos histórias, ativaremos fazeres, saberes e memórias.

Que o sol nos ajude nessa caminhada. 

O lobo já deixou escrito o que ele pensa. Não esperemos nada dele.

Casa no quilombo São José. O quilombo São José existe há cerca de 150 anos e está localizado na cidade de Valença (RJ).
É uma comunidade de descendentes de pessoas escravizadas que vieram da Angola e do Congo, atualmente cerca de 200 quilombolas
moram no local e suas casas são feitas de adobe, pau-a-pique e telhado de palha.
Foto: Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

 

¹SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.

14/03/2024

O QUE SEGURA OS CÉUS? – por Cris Takuá

As palmeiras nativas da Nhe’ërÿ sustentam os céus desde a origem de criação do mundo e dos seres que nele habitam. O céu azul que hoje existe reflete as folhagens das palmeiras azuis que, no início do mundo, fizeram essa transição entre os mundos que habitamos.

Existem muitas palmeiras que, com sua beleza, suas palhas, frutinhos e sombras, vêm encantando e sustentando a vida aqui em meio à floresta. 

Em fevereiro, organizamos na Escola Viva Guarani uma oficina para produzir junto dos jovens os desenhos de algumas espécies de palmeiras para compor a exposição Mba’é Ka’á, o que tem na mata: Barbosa Rodrigues entre plantas e pajés, que acontece entre 08 de março e 08 de setembro, no museu do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. 

Coordenada por Carlos Papá, a oficina proporcionou uma leitura e observação atenta do livro Sertum Palmarum Brasiliensis, de J. Barbosa Rodrigues, e também caminhadas na floresta da Aldeia Rio Silveira, para ver e reconhecer as palmeiras que estão ao nosso redor.

Foram dias de muita animação e escutas, através das histórias contadas por Papá sobre a importância das palmeiras para o equilíbrio da mata e para a sustentação dos céus que habitamos desde o início do escuro originário.

Algumas crianças, acompanhando seus pais, criaram também desenhos que refletiam suas percepções das palmeiras que observaram e, juntos, criamos uma linda apresentação de 10 espécies.

 

As palmeiras azuis 

São seres espirituais 

De um mundo cosmológico 

Que nos mostram os portais

Entre os mundos.

Na floresta existem seres nativos 

Jataí, Jussara, Jerivá 

Guaricanga, Brejaúba, Butiá 

Jejy ró- amargo, Tuku, Indaiá

Espécies de palmitos 

Palmeiras

Que alimentam e encantam 

Sombreiam nosso caminhar 

Cobrem casas 

E revestem a floresta

De um esverdear profundo.

Nhe’ërÿ terra das palmeiras 

Que seguem sustentando nosso caminhar 

Nessa terra

……..Cristine Takuá……..


Desenhos produzidos na oficina Guarani, 2024

12/03/2024

AQUELA TIA ALI VAI CONVERSAR COM VOCÊ – por Veronica Pinheiro

 

Massinha: Pérola, 06 anos


Na primeira semana de aula, minha função era acolher os que choravam. Achei graça. Depois entendi o tamanho da responsabilidade. Meus pequenos companheiros falavam de uma tal dor na barriga e, além das lágrimas, traziam nos olhos o desamparo. 

Ao recebê-los, eu dizia que ficaria ali o tempo que fosse necessário. Perguntava onde o medo estava. E as mãozinhas iam direto para a barriga. É fome? Para alívio do meu coração, as respostas foram todas negativas. Surgia então a última pergunta: eu acho que vi medo nos seus olhos; você tem medo de quê?

De maneira geral, o processo de escolarização desterritorializa dentro do território. Deixa a identidade da criança em segundo plano, determina o que é importante ou não para se saber, determina o que comer, como se vestir, distância o sagrado e impõe novos modos de vida. O tal do conhecimento universal, os conhecimentos básicos e o ensino fundamental norteiam os currículos. Aos poucos, um indivíduo vira uma classe; aos poucos, os corpos são docilizados. E quando menos esperamos… todos os desenhos são pintados dentro da linha.

São tantos os complicadores sociais que a escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana, invadindo aldeias, quilombos e periferias como braço do Estado. A escola apresenta o mundo às crianças. E para muitos, em muitos lugares, é a única instituição habilitada para transmitir conhecimento. No entanto, se existe um pensamento que norteia, se o mesmo está a serviço do colonialismo para sujeição dos sujeitos e adormecimento das memórias… deve haver um pensamento que suleia.

Sugiro que busquemos sulear os modos de se estar na escola. Criemos ambientes seguros para professores e crianças pintarem fora das linhas que contornam os desenhos. Aceitemos o bagunceiro e seu corpo insubmisso. Penso que, durante o processo de suleamento, as memórias de vida e princípios de sustentação dos territórios serão despertados. Sulear é pluriversalizar os modos de existir e se relacionar com a vida. 

De certa forma, aquelas crianças, que choraram na primeira semana de aula, sabiam que precisariam deixar, além da casa, um tanto de si pra fora dos muros da escola. Sei que alguém vai dizer: Mas algumas crianças vão sorrindo! É, eu sei, e essas me preocupam mais.

07/03/2024

RESISTIR PARA SOBREVIVER – por Cristine Takuá

Os jovens estão buscando encontrar a essência de sua missão, deixada por Nhanderu no momento do parto, quando chegam a esse mundo de imperfeição. Ao longo dos tempos, muitos estão se esquecendo deste compromisso que foi destinado a cada um e, ao crescer e se desenvolver, vão trilhando uma maneira triste de viver, o caminho do Teko vai (a má e feia forma de ser e estar no território), diferente do Teko Porã, que é o Bem Viver, a boa e bela forma de caminhar, de estar em equilíbrio na vida. 

Com isso a depressão, a preguiça, o suicídio e formas descompassadas de se colocar no mundo têm aumentado muito entre jovens indígenas. Reflexo de uma histórica trama de violências inconstitucionais e de feridas nas relações humanas. Se desfazer desses emaranhados de desequilíbrios depende muito de uma teia de afeto e cuidado.

Foto: Vherá Poty

As casas de reza são espaços coletivos de cura e convivência, são escolas ancestrais em que, através das práticas e da presença dos rezadores e das rezadoras, vamos reaprendendo a nos colocar no mundo, a lidar com as dores e desafios. As plantinhas, mestras do caminho profundo, nos ensinam a nos equilibrar entre a beleza e a dureza da vida, e assim desacelerar as duras e pesadas pegadas que muitos vêm deixando na Terra.

Nhamandu Mirim, o Sol sagrado, todas as manhãs se levanta para nos iluminar e para que tenhamos força e coragem. 

Assim seguimos….

 

Depois da tormenta vem a calmaria 

Depois da tempestade o arco íris brota 

No entardecer

Sinais de mudanças e transformações

Sinalizam o renascimento da matéria

Espíritos cantantes voam na lua cheia

Espalhando mensagens de amor

A pequenos seres pensantes

A vida é feita de escolhas 

Sendo cada caminho modelado 

Por nossos anseios 

Cada destino direcionado 

Pelos seres sagrados

Momentos de tormentas nos revelam

Que há a necessidade de metamorfosear

Nossa relações, nossos passos 

Nessa jornada da Vida

Não basta engrandecer a matéria 

Temos que remodelar a alma

Cuidar com zelo e carinho 

Para ultrapassar as barreiras 

Do desconhecido 

E mergulhar no universo multicolorido

Da sábia ensenhança 

Que habita para além das aparências

Do sorriso de criança.

Busco o silêncio 

Das profundas cantigas 

Um suspiro pra alma

Um descanso pra mente 

Pra seguir os caminhos dos sonhos meus…

……..Cristine Takuá……..

Foto: Alexandre Maxakali

05/03/2024

A CAMINHO DA PEDREIRA – por Veronica Pinheiro

 

Chegamos à Pedreira. Um complexo com o menor IDH da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Chegamos ao antigo Morro da Ventania, onde o vento corria solto e falava alto. Dizem que quando o vento assobiava na Pedreira, nada mais se ouvia. O Morro da Pedreira está localizado no Bairro de Fazenda Botafogo, entre Pavuna, Costa Barros e Acari. Curiosamente, o vento não fala mais naquele lugar. Os escombros de uma antiga senzala, um cemitério de escravos, alguns troncos de tortura e uma pedreira desativada são as camadas mais recentes sob o solo desse caminho que começamos a trilhar. 

Uma antiga linha de trem cortava a mata densa da fazenda Botafogo. O trem expresso transportava, na década de 1970, pessoas à procura de trabalho e de um novo lar. Estas histórias ainda são ouvidas no território: “Cheguei na Pedreira em 04 de setembro de 1970. Até aqui, eu morei em outros lugares. Vim do Espírito Santo, mas sou de Minas Gerais. Vim com marido e seis filhos”, diz dona Geralda, uma das primeiras moradoras do complexo da Pedreira.

Mapa da Pedreira – João, 6 anos

O trem transformou o lugar onde o vento cantava numa intersecção de corpos-territórios. Corpos em trânsito confluíram, se fortaleceram e construíram uma comunidade. “Quando a gente confluencia, não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende”, diz Nego Bispo em seu livro A terra dá, a terra quer (Ubu Editora, 2023). A confluência é uma força que amplia. Esta força trouxe o Selvagem até aqui. Uma confluência solar: Sol, vento, pedreira, memórias guardadas na terra e trazida nos corpos. A corporeidade é um lugar de registros e agência, nela se articulam e se transmitem mundos.  

Nosso caminho na Pedreira é junto à Escola Municipal Professor Escragnolle Dória, para nós, Casa das Crianças. Acreditamos na confluência dos corpos –  discentes, docentes, plantas, cores, vento, Sol. Em 2024, iniciamos um percurso sobre aprendizagens vivas dentro de uma escola. A sala de leituras da escola será nosso núcleo de irradiação Selvagem. Lá receberemos 439 crianças por semana e 19 professores por mês. Serão 200 dias letivos; 8 oficinas de artes (para crianças e professores) e um grande encontro festivo no final do ano. Na mediação desse movimento, estarei como professora das rodas de leituras e como coordenadora das atividades de artes. Em 10 dias de aula, já passamos por tantas coisas: de medo de bate-bola no bailinho de carnaval a medo de bala perdida durante o turno escolar. Já lemos 2 livros, choramos, sorrimos e brincamos também.

Nesse percurso Selvagem, compartilharemos com crianças e professores reflexões para a construção de uma escola viva. Compartilhamos uma outra forma de ser e estar no mundo, lembrando que a vida e o bem viver devem fazer parte do cotidiano escolar. Não estamos a serviço da educação. Para além de cumprir uma diretriz nacional¹, subimos a pedreira  ativando memórias, saberes e fazeres. Um percurso solar para sentir, ouvir, criar e brincar. Seguiremos por aqui semeando palavras, mudas e mundos. Guiados pelos ventos, estamos sob a luz do Sol, a serviço da vida.

 

¹ A Lei nº 11.645, de 10 março de 2008 torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores, as licenciaturas.

25/06/2024

NA NATUREZA, NADA VIVE SOZINHO – por Veronica Pinheiro

 

Foto: Wagner Clayton

 

Começamos o último texto do semestre com as palavras da professora Miriam. Ela trabalha na Escola Escragnolle Dória em dois turnos, manhã e tarde, atendendo 62 crianças de 5 e seis anos de idade de segunda a sexta.

 

“Desde a chegada da equipe Selvagens em nossa escola, temos observado e experimentado um novo movimento dentro da escola. Tanto pelo acesso a materiais que não são tão comuns nas salas de aulas de escolas públicas, mas também por ter quem nos conduza a ter um olhar mais minucioso no que temos de mais rico ao nosso redor. Escolas em áreas conflagradas como as nossas, onde as crianças têm os ouvidos treinados para o tiro, fazê-las silenciar para ouvir os pássaros, o barulho do vento ou o que se passa dentro de si e transformar em arte, é quase mágico. Quase, a linha entre o mágico e o real é tão tênue que ora ou outra invadimos a sala de aula da colega para fotografar como uma urgência de querermos parar no tempo.

Vê-los pintar com a tinta que produziram a partir da terra encontrada no chão da escola, revelar fotos das folhas e galhos que caíram do quintal dali, observar a natureza que compõe o nosso território… Observar, criar, produzir. Uma sequência rica de significados que eu, enquanto professora, me dou o luxo e me permito também ser aluna naquele momento. Sento como meus alunos, espero meu pedaço de argila, me junto a eles com inúmeras perguntas, todos tentamos, fazemos o nosso melhor, sorrimos com o resultado, terminamos orgulhosos de nós mesmos pelo o que fomos capazes de criar. Voltamos para sala de aula certos de que todos somos talentosos, desmistificamos que todo professor sabe tudo. Voltamos para aula com um novo olhar sobre nós mesmos. Acho que todos que têm feito parte do projeto têm se sentido dessa forma. Somos levados a ter novas conclusões sobre nós mesmos, temos nos vistos como parte importante da natureza e temos percebido como ela nos impacta tanto quanto nossas ações a impactam.”

 

Anna Dantes, Madeleine Deschamps e eu tivemos longas conversas em dezembro de 2023 e janeiro de 2024 sobre caminhos de aprendizagens e sobre possibilidades de desdobramentos das oficinas e dos projetos realizados em 2023 com o Grupo Crianças. Falamos sobre criar vínculos com escolas e professores. Quando subitamente precisei retornar ao trabalho na Prefeitura do Rio, conversamos sobre como poderíamos ativar os estudos e pensamentos presentes nos ciclos Selvagem numa sala de aula. Em algum momento pensei em retornar ao trabalho como coordenadora pedagógica, mas aceitei o desafio de voltar como professora de sala de leitura numa escola de crianças. As crianças sempre estiveram presentes na minha vida, mas nunca estive como professora atendendo regularmente os pequenos em sala de aula.  

Lembro de ficar feliz em me tornar a “professora da sala de leitura”. Lembro de rir e lembrar de minha avó lendo a borra do café na xícara, as nuvens e os olhos das crianças. Dorvelina, mãe de minha mãe, não sabia ler ou escrever em português, mas lia a vida e interpretava sonhos. Ler e interpretar, lá em casa, era coisa do cotidiano, quase nunca relacionada aos livros. “A gente olhava e lia a terra.” Tudo era texto e tudo poderia virar texto. Os livros chegaram lá em casa recentemente. Achei engraçado isso de ser a mediadora das rodas de leituras de uma escola de crianças. Agradeci em silêncio a gentileza que a vida me fez: estávamos diante da possibilidade de iniciar um percurso de Aprendizagens em diálogo com a vida.

O que é compartilhado nos diários é apenas uma parte do trabalho, pois nosso percurso é trilhado por muitos pés. Oficinas, passeios, organização de propostas e materiais só acontecem porque o Grupo Aprendizagens é formado por uma rede invisível que se expande, interligando cuidados preciosos. Chegamos ao Complexo da Pedreira sonhando despertar memórias e fortalecer as conexões das crianças com o território. Para além das problemáticas que tornam os dias difíceis, fazemos menção ao território ancestral, natural e orgânico. Lembramos às crianças e aos professores que somos natureza, natureza viva e pulsante.

Madá se preocupou com a carga horária semanal que eu teria de cumprir e como isso poderia me sobrecarregar. Juntas acreditamos e sonhamos orçamentos, passeios, oficinas e uma “festa cósmica” para o final do ano com crianças vestidas de estrelas e planetas. Encerramos o semestre felizes. Praticamos o bem viver numa terra que só é conhecida por seus males. O poeta disse que “Fundamental é mesmo o amor/É impossível ser feliz sozinho”. Apesar de todo desafio, tudo foi mais feliz e potente do que imaginávamos. A escola nos respondeu muito mais rápido do que esperávamos. Está sendo fundamental seguir em amor e juntos. Ubuntu, sou porque somos. Tal qual as árvores da floresta que só existem porque estão intimamente ligadas, o percurso Aprendizagens está intimamente ligado a uma teia de seres regenerantes. 

Juntos aos relatos que recebemos de professores e grupos de pesquisas, neste semestre, fomos convidados pela Gerência de Relações Étnico-Raciais, da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, para a IV Jornada da GERER – Caminhos e perspectivas para futuros possíveis¹. Como resposta ao convite, preparamos um Guia de Aprendizagens Selvagem, GAS, para ser compartilhado com 1544 Escolas Públicas de Ensino Fundamental na cidade do Rio de Janeiro. “Cuidado não é troca, é compartilhamento”, já dizia Nego Bispo. Não criamos nada. Quando chegamos ao Complexo da Pedreira, já existiam muitos outros compartilhantes que nos receberam. Desde o algodoeiro na entrada da escola aos pássaros que nos visitam todas as tardes, agradecemos a toda vida e a todos os seres que estiveram conosco neste semestre.

Àwúré

 

¹Material Complementar da Jornada de Relações Étinico-raciais. https://sites.google.com/view/gerer-sme/jornadas-da-gerer/iv-jornada-da-gerer

18/06/2024

ONDE ESTÁ A MATA? ESTÁ DENTRO DO PEITO – por Veronica Pinheiro

 

 

A sala de leitura da escola se assemelha a uma biblioteca em organização e funcionalidade. Livros em prateleiras, divididos por assunto; mesas grandes e cadeiras. Um espaço planejado e que leva em conta a área de armazenamento, a área de atividade, a área de circulação. Algumas regrinhas gerais são comuns em ambientes de leitura: entrar somente com o material necessário para o estudo; entrar de forma “disciplinada”; manter a voz e os gestos em tom discreto para não atrapalhar os demais leitores.

As primeiras histórias que conheci não estavam em livros guardados em prateleiras. As primeiras narrativas e lições que aprendi saiam da boca de Dona Cassiana, uma anciã, que ficava no final da tarde sentada num banco de madeira, sob o pé de aroeira, lá no morro onde nasci. Para saber o final de uma história, às vezes, tínhamos que esperar o dia seguinte ou ir atrás de Dona Cassiana enquanto ela cuidava das plantas. Ela rezava as crianças e dava colo enquanto rezava. Era uma reza-história, cantada e coreografada com folhas. Lembro de um dia ter procurado por ela e não a ter encontrado. Nunca mais a vi. Pouco depois do sumiço de Dona Cassiana, sumiu o banco e o pé de aroeira. Mas as palavras contadas, cantadas e rezadas me acompanham até hoje. 

Hoje, sou a velha que conta quadras para meninos. Essa semana, cheguei à sala de leitura e retirei todas as cadeiras. Retirei também as mesas e apaguei as luzes. E acendi minha fogueira no meio da sala. No chão, colchonetes, 15 exemplares de um mesmo livro e eu sentada tal como a velha Cassiana ficava esperando por mim. 

 

 

Aprendi com Carlos Papá que o escuro acolhe todos, não fazendo distinção de pessoas. E foi no escuro da sala que nos encontramos com as narrativas de avós e compartilhamos cuidados e gentilezas. “O que é isso?” “Um acampamento, você não está vendo” Eu acompanhei a entrada deles somente com olhos e ouvidos, nada falei. “É um acampamento sim. Olha a fogueira.” “Vamos sentar porque está de noite e frio.”  Era 8h da manhã e fazia 31ºC do lado de fora da sala, dentro da sala tempo e lugar deslocavam-se sem convenções. 

Eles sentaram em roda. A primeira turma que recebi neste dia tinha 28 crianças presentes, a maioria com 8 anos de idade, e estavam curiosas para saber o que iria acontecer. Na primeira ação, eles formariam duplas de leitores. Pedi para que um aluno que já soubesse ler se unisse a um colega que ainda não soubesse ler. Feitas as duplas, eles precisariam escolher um cantinho na sala de leitura para ler a história. Cada dupla se aninhou e se escondeu da forma que pode e desejou. Montaram cabaninhas e criaram tocas para ler. Disse a eles que a aprendizagem é um processo em que todos colaboram da forma que podem. Eles assumiram o cuidado com seus amigos de turma. Fiquei observando como lentamente quem ouvia ia escorregando pelo colchonete até deitar para ouvir atentamente as palavras lidas pelo amigo. E sem ter intencionado, naquele momento estabelecemos uma outra relação com aquele chão. Todas as vezes em que deitamos no chão da sala de leitura tinha sido para nos proteger do tiroteio. Pela primeira vez, não era o medo que nos levava ao chão. Era a terra nos ensinado a fortalecer vínculos. A professora da turma entra pensando que a sala estava vazia e se surpreende com a cena e os gestos. Sensivelmente, ela se retira sem ser percebida. 

 

 

Nossa segunda ação era sentar ao redor da fogueira novamente. Agora a história seria lida por mim, e acompanhada por todos, cada um com um exemplar do livro nas mãos. Era uma solenidade, as chamas da fogueira de led aqueciam nossa roda. Comecei assim:

“Sônia Rosa, a autora do livro, dedica este livro aos seus dois sobrinhos-netos: Phelipe de Oliveira Nunes e Vitória Oliveira Silva. Eu, Veronica, dedico esta leitura aos meus alunos presentes sentados ao redor da fogueira comigo.” 

Os tesouros de Monifa é a história de uma menina que, no dia de seu aniversário, foi escolhida para ficar com o “tesouro” de sua família. Monifa era o nome da bisavó da avó da menina. Monifa chega ao Brasil num navio negreiro e escreve muitos diários cheios de sonhos, rezas e canções. Minha voz tentou acompanhar a solenidade do momento, mas meus olhos decidiram por si só regar a terra. Não só os meus, mas muitos olhos regaram a terra naquele dia. À medida que líamos, mais perto ficávamos um dos outros. A roda logo se tornou um ninho. Uma mão pequena e macia colhia as lágrimas que me saiam dos olhos para não molhar o livro. Outras mãos me amparam os ombros e as costas. Mais um par de mãos percorriam minhas tranças. 

Não me lembro de já ter chorado na frente de uma turma. No começo do ano eu era “a tia que dava colo” para as crianças que choravam na semana de adaptação. No meio do acampamento de leitura, eu era cuidada pelas crianças que entenderam que, no processo de aprendizagens, cada um coopera como pode. Passei então a receber cuidados. Eu li a história, e eles liam os bilhetes de Monifa. 

Ao redor da fogueira, sentados no chão nos abraçamos no fim da leitura. 

Alguém falou que no nosso acampamento só faltou uma coisa: “marshmallow”. Outro acrescentou que faltaram duas coisas: “marshmallow” e a mata. Antes que eu conseguisse formular resposta, Enzo, que parece nunca estar ouvindo o que falamos, disse: “Faltou só ‘marshmallow’ mesmo, a mata tá dentro da cabeça.”

Monifa significa “eu tenho sorte”. Cheia de mata dentro, ali eu era a pessoa mais sortuda do mundo.

 

Fotos: Wagner Clayton

11/06/2024

EU NÃO SABIA QUE ERA TÃO BONITO – por Veronica Pinheiro

 

 

“A GENTE PRECISA APRENDER A SE ENVOLVER COM A TERRA, COM OS NOSSOS RIOS, FLORESTAS E MONTANHAS.
Envolver não significa essa bobagem de interesse privado de ser dono daquele rio.”
Ailton Krenak¹

 

Choveu tanto na tarde e na noite do dia 04 de junho na cidade do Rio de Janeiro que perdi a conta das pessoas que mandaram mensagem perguntando se a visita ao Pão de Açúcar, dia 05 de junho, seria cancelada. Chegamos à segunda imersão do Percurso Aprendizagens: o encontro das crianças com as águas da Baía de Guanabara. Quando confirmado o encontro, não havia previsão de chuvas para o dia do passeio. A previsão mudou, mas optei por confiar nas águas e no Sol. O encontro não foi desmarcado. Saí de casa com muita chuva. Chegamos à escola para encontrar as crianças debaixo de chuva. No entanto, optei por confiar nas águas e no Sol. 

Tania e Ericka, companheiras de sonhos e Sol, foram direto para o local de visita. “Veronica, aqui não chove. Muitas nuvens.” “Diga ao Sol que contamos com ele. Diga a ele que as crianças já já sairão da escola”. Café da manhã servido na escola, era hora de embarcar no ônibus rosa e reencontrar nosso gentil motorista. 

Um acordo não palavrado ficou firmado na Favela da Pedreira: Se o ônibus rosa está presente, as crianças vão passear; logo é preciso que elas saiam e retornem à favela com tranquilidade. Os caminhos que levam à escola são desobstruídos para que nosso ônibus passe, somos observados do embarque até a saída do complexo. As crianças não percebem que a comunidade de alguma forma também muda sua rotina para que elas vivam dias de alegrias. Me comoveu ver que a comunidade e o poder paralelo se preocupa com o bem-estar das crianças e professores.

Saímos da escola. Não chovia mais. “Vamos subir e ver nuvens; com o tempo nublado não dará pra ver nada.” Ouvi, não respondi, pois confiava nas águas e no Sol. A caminho do Pão de Açúcar, passamos pelo Rio Acari. Nosso rio querido, que corta toda região da escola. Um rio largo que nos ouve. Um rio testemunha da vida e do terror imposto à região. Um rio que ainda guarda seus encantos, jacarés e capivaras. O Rio Acari é um dos maiores cursos de água do Rio de Janeiro, ele é o motivo do nosso passeio². Acari é tão forte que macrobiologicamente resistiu até pouco tempo. Nos despedimos do rio e seguimos viagem. Percorremos 40 km até o Pão de Açúcar. Subimos o Morro da Urca e o Morro do Pão de Açúcar para observar de cima as águas da Baía de Guanabara.

Durante a vivência, as águas e o Sol nos receberam como quem recebe parentes queridos. Não chovia, as nuvens se recolheram num outro lugar para que pudéssemos contemplar tudo quanto se era possível ver das alturas. O Sol nos guardou na subida e descida dos morros, seu brilho refletido nas águas encantou todo grupo. Foi a primeira vez que não vi medo nos olhos das crianças. As crianças se abraçavam e andavam de mão dadas. Sorriam sorrisos largos e duradouros. Tinha hora que eu jurava que via os sorrisos delas refletidos no mar. Algumas choraram. Duas choraram muito e não sabiam dizer exatamente o porquê. Ao contrário dos sorrisos, os choros eram curtos e breves. Tenho certeza de que era só o mar que mora dentro do peito e que não quis se conter. 

Éramos 10 adultos no passeio, e lá entendi que não haveria mediação. Cada adulto tinha 4 crianças para acompanhar. Andávamos bem próximos, era dia de festa. Eu pouco falei, a natureza não carece de mediador. As águas, o Sol, as Plantas, os Pássaros, os Micos, o Vento falavam tanto, tanto, que me assustei com tamanha receptividade. Tudo chamava muita atenção das crianças, os aviões que pousavam bem na nossa frente, os turistas falando inglês, as plaquinhas que um amigo lia para o outro que não sabia ler. “Tá escrito que a baleia vai passar aqui até setembro” “Jura! É hoje? Lê direito e veja se tem dia.” A baleia não passou no dia 05 de junho. 

Muita coisa foi curada em nós naquele dia. Há quem tenha horror em ouvir que a educação pode curar. Aprendi com os mais velhos quilombolas e indígenas que tudo pode ser cura: cantos, palavras, comidas, abraços, conselhos. Quando estávamos nos encaminhando para descer, um helicóptero pousou no heliponto do Pão de Açúcar. 

“Tia, o que o helicóptero quer?” 

“Ele não quer nada, meu filho.” 

“Tia é tiro?” 

“Não. São pessoas passeando, elas entram no helicóptero para passear e ver toda cidade de cima.”

O menino de 11 anos só conhecia o helicóptero no contexto da guerra urbana. A polícia no Rio de Janeiro tem uma frota de helicópteros. As aeronaves blindadas são utilizadas em operações policiais, e os meninos sabem que quando tem helicóptero é que a situação está pior que o habitual. O helicóptero da reportagem eles também conheciam. Mas helicóptero de passeio? De passeio, não. Isso porque a cidade separa. A cidade tem muros rígidos para excluir muitos e guardar alguns. O capitalismo determina os significados que os signos terão dentro de uma mesma cidade: para meu aluno, helicóptero significa perigo; para turistas, diversão. 

Mas a minha observação sobre as cidades é que elas funcionam como um verdadeiro sumidouro de energia.” Ailton Krenak

“Tia, então a gente tá na Europa?”

A pergunta me doeu o peito, não pelo desconhecimento geográfico. Mas por esse menino entender que não faz parte daquele Rio de Janeiro. Porém era dia de festas e encontros de vida. Mais uma vez a vida presente na natureza, a mesma vida natureza que sustenta o menino, nos abraçou novamente. Suspensos no ar, dentro do teleférico éramos só gente, ar, montanha, água, pássaros, Sol e água. O mesmo menino chorou abraçado à diretora da escola. Ele me disse que não vai esquecer de cuidar da natureza.“Tia, eu não sabia que era tão bonito.” “Você é natureza, igualzinho a essas montanhas e as águas da baía.” 

Esse passeio inaugurou um outro movimento de conversas sobre a vida das pessoas e  sobre a vida dos rios na escola.

Ahh, quando descemos do bondinho, as nuvens recobriram os céus naquele lugar. Pedi a chuva para esperar a gente voltar pra casa. Ela nos ouviu.

Quando foi transferido o sentido da vida para ter coisas, a gente já começou a se afastar da Mãe Terra. Essa mãe maravilhosa que chama a atenção da gente, inclusive para falar: “Ei, vocês estão vivos”. Quando uma mãe dá uma bronca dentro de casa, ela não está só dando uma bronca para a gente não estragar a casa, ela está dando uma bronca para dizer: “Vocês estão vivos”. Pra gente não se alienar do sentido de estar vivo. (Ailton Krenak) 

Fotos: Ericka Hoch

 

__________________

¹ “Trocamos nossa humanidade por coisas.” https://revistatrip.uol.com.br/trip-fm/ailton-krenak-trocamos-nossa-humanidade-por-coisas 

² “Cadê o rio que estava aqui?” https://selvagemciclo.com.br/diario-de-aprendizagens/#tab-1717677150043-1 




04/06/2024

ESSA SEMANA NÃO RECEBI BILHETES – por Veronica Pinheiro

 

A escola está fechada. Hoje não tem foto. Essa semana não vi as crianças. A escola está fechada. O acesso está mais difícil que o comum. “Usem crachá”. “Esperem antes de sair de casa”. Não saia de casa! 

Alternamos entre semanas de encantamentos, euforia, alegrias e medo. Perigo difuso. Perigo concreto. Esta semana não recebi bilhetinhos, nem abraços de braços curtos.

Essa semana me lembrou meus primeiros dias na escola. Na ocasião, a sala de leitura ainda não podia ser usada. Em uma caixa colorida, eu colocava os livros que leria com as turmas em sala de aula. Levava na caixa livros para todas as crianças. Onde eu estivesse com aquela caixa, lá estava a sala de leitura. Era um exercício, meu e das crianças, de transformar o lugar. A mágica sempre estará no encontro. Formada a roda de leitura, a gente podia estar e ser o que bem quisesse.

No primeiro mês de aula, lemos juntos Manu e Mila, de André Alves. Numa turma do 3º ano do Ensino Fundamental, distribuí os livros para crianças de 7 e 8 anos de idade. Alfabetizadas em português, ou não, todas recebem um exemplar do livro. Se tem uma coisa que criança que não lê faz com facilidade é imaginar. Enquanto não somos obrigados a enquadrar o que pensamos, sonhamos e sentimos sem regras gramaticais, confiamos no repertório interno com muita força. O repertório interno é todo um mundo que a criança traz de casa – as brincadeiras, as crenças, os saberes, os sabores. A escola regular, em muitos momentos, ignora  a vida vivida pelas crianças e trabalha para que elas façam o que a Base Comum Curricular espera delas.  

Quando entrego livros nas mãos das crianças, digo que, mesmo que elas não entendam as palavras, podem ler cores, desenhos, símbolos e traços. Elas podem também fingir que estão lendo. Podem inclusive fechar os olhos e dormir enquanto eu leio. Antes que alguém julgue absurda a permissão que dou às crianças, trago uma informação: alguns alunos moram em locais onde acontecem bailes e festas que começam às 21h de um dia e terminam às 8h da manhã do outro dia. 

Antes de iniciar a leitura digo tudo o que pode. Num ambiente que se especializou em dizer o que não pode, poder é subversão. Lemos em voz alta e com brilho nos olhos Mila e Manu, a história de dois amigos que procuravam a “ALEGRIA”. Foi uma leitura delicada que plantou pensamentos bonitos nas crianças e em mim. Durante a leitura, recebi dos gestores da unidade uma notificação de perigo e que as crianças não poderiam sair das salas. Corredores e banheiros são nossos lugares mais vulneráveis. Lembro de terminarmos a história deitados no chão da sala porque o tiroteio estava muito perto. Lembro de compartilhar um cuidado que eu não sabia que era capaz de compartilhar. Lembro de desejar de todo coração nunca mais ver as crianças deitadas no chão para se proteger de tiros. 

Lembro também de passar 2h em absoluto silêncio ao chegar em casa; era um silêncio da boca pra fora porque dentro existia uma barulheira de causar medo. Fazia tempo que eu não sentia medo. Medo por mim, que saí da zona de perigo. Medo pelas crianças que dormiriam lá. 

Quatro meses depois desse episódio, recebemos orientações para ficarmos em casa. Apenas um dia na semana a escola abriu, mas as crianças não apareceram. Eu estava lá com tintas, livros e uma fogueira artificial. Comprei uma fogueirinha de LED que simula chamas reais. Uma tentativa de aquecer os corações gelados de medo. Mas as crianças não estavam lá. Sentada à beira da fogueira de faz de conta, ouvi a voz de uma professora que pouco fala comigo. Ela entendeu o convite, conversamos a manhã inteira, ela me contou de suas turmas e trajetória em escolas. Descobrimos, por conta da fogueira, que temos muitos sonhos em comum. De alguma forma, nos aquecemos uma à outra… Saí da favela cantando um samba antigo de seu Nelson Cavaquinho. O mesmo samba que eu cantava quando eu era jovem e voltava tarde da universidade. Eu cantava para espantar o medo de subir sozinha o morro onde eu morava. Cantava para aquecer o coração e espantar o medo, assim meu avô ensinou. No último dia de escola aberta, cantei para sair da escola.

 

“Quando eu piso em folhas secas

Caídas de uma mangueira

Penso na minha escola

E nos poetas da minha estação primeira

Não sei quantas vezes

Subi o morro cantando

Sempre o Sol me queimando

E assim vou me acabando

Quando o tempo avisar

Que eu não posso mais cantar

Sei que vou sentir saudade

Ao lado do meu violão

E da minha mocidade”

 

Enquanto escrevo, recebi a mensagem que podemos retornar. Que sejam bons os dias que virão.

Awrê

28/05/2024

LER A TERRA – por Veronica Pinheiro

 

Me lembro da conversa que tivemos com o barro no encontro Cosmovisões da floresta, no dia 13 de maio de 2023, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio). O encontro entrelaçou os projetos Ore ypy rã – Tempo de Origem e o Selvagem em um dia de exposição e atividades com cantos, danças, conversas. Diante de um vaso de cerâmica marajoara, Francy Baniwa começou a falar sobre como as mulheres Baniwa conversam com a argila, que é um ser muito antigo e sagrado. De onde eu venho, o barro também é sagrado. Lembro do barro vermelho que cobria toda a comunidade e de como tocávamos com a mão no chão e no coração antes de dançar ou jogar capoeira. Lá em casa, o barro era nossa avó; berço originário e colo derradeiro. O barro só era colhido mediante as necessidades. Levei isso para as oficinas com argila.

Andando pelo bairro de Costa Barros, onde a escola está localizada, entre barrancos e barracos, a quebrada do terreno ocasionada pela chuva, deslizamento ou pela ação do homem revela as cores guardadas na terra. Texturas e tonalidades de marrom e matizes avermelhadas colorem e revelam propriedades físicas, químicas e mineralógicas do solo. Durante o planejamento das oficinas de plantio das espécies frutíferas da Nhe’ëry com Gerrie Schrik, me foi feita a seguinte pergunta: Como é o solo da escola? Não tendo as respostas técnicas, pude falar com detalhes sobre o que vi. E via as cores da terra nas escavações e barrancos. Olhar pra terra é uma prática que tento passar para as crianças.

“Ninguém fazia análises de solo, conhecíamos o solo só pelo olhar. Só de olhar para a terra já sabíamos o que plantar. Conhecíamos a vegetação. Numa terra que dá muita leguminosa nativa, plantava-se feijão; numa terra que dá muita gramínea nativa, plantava-se milho e arroz. É a linguagem cósmica. É simples. Não é preciso fazer análises de solo porque a terra já diz o que está disposta a oferecer.” Nego Bispo

A terra diz. Passamos na escola uma semana olhando a terra. As crianças e eu. Faixas de terra ao redor da escola que não foram cobertas pelo cimento foram os textos da semana. Em sala, eu e as crianças lemos e conversamos sobre a “Carta da Terra”. Curioso, as crianças nem sabem mais o que é uma carta. Elas escrevem recadinhos em papéis pra mim, mas chamam o bilhete de mensagem. Expliquei o que era uma carta, para que servia e como era composta. “A Terra pode escrever uma carta?”, “Não! ela não tem braços nem mão. Ela deve ter ditado e alguém escreveu: tipo Deus com Moisés”. 

Depois de muita conversa, saímos quintal afora. Parecia uma expedição: cadernos, canetas, um galho para apoiar na subida. O livro estava fora da sala de leitura. Lemos o livro mais antigo de todos: lemos a terra. Por um tempo, só observamos as cores do solo; por outros, só os pequenos insetos e animaizinhos que viviam ali sem que ninguém notasse. “Tia, mora muita gente aqui!”, “Eu sei, você acha que a escola só tinha móveis e livros? A escola é habitada por seres vivos mesmo quando nós não estamos nela”. Formigas, lagartos, aranhas, plantas, muitos pássaros. As crianças do 1º ano se espantaram. Elas não sabiam que tantos pássaros diferentes visitavam aquele quintal no final da tarde. Ficamos sentados em silêncio no meio da quadra depois da história contada. Eu disse que eles receberiam visitas. Visitas aladas, coloridas e cantantes. Tive a sensação de serem as mesmas aves que me acordam em casa. Certamente, não são as mesmas aves, mas é bonito pensar que elas me acompanham até a Pedreira. 

Tentei conversar com o senhorzinho que está sempre plantando num pedaço de terra no alto do morro. Certamente ele é a pessoa mais adequada para falarmos sobre as oficinas de plantio e de pigmentos de terra. Ele se relaciona diariamente com a terra: eu vejo quando passo às 7h da manhã pelo seu quintal. Numa região com o segundo menor índice de desenvolvimento humano, existe um homem farto de verde. Solo-planta-homem suspensos e escondidos no verde à beira do asfalto. Enquanto a insegurança alimentar diariamente circula entre a população local, o senhor, que não se desconectou da terra, cuida e é cuidado. Marcamos de visitá-lo, pretendemos chegar com uma cesta de delicadezas, e de alguma forma ser gentil com quem gentilmente pisa sobre a terra.

Pretendemos também levar para ele um quadro pintado com tintas preparadas com as terras do território e da escola. E de alguma forma estabelecer ali um diálogo tendo como partida nosso berço comum: a relação com a terra. As oficinas são movimentos iniciais, são sementes. Germinando as sementes, algumas memórias de vida são despertadas. A vida despertada está no território, nas memórias guardadas na terra e adormecidas nos corpos. Ao estabelecermos uma parceria com uma escola de ensino regular, sonhamos com a ideia de escolas vivas em ambientes urbanos e periféricos. Trazemos como proposta o fortalecimento do território, dos saberes e das práticas de vida que lá existem. Nesse movimento, tentamos identificar quem são os guardiões do bem viver; quem são os seres, que em meio a tantas dificuldades impostas, guardam práticas que sustentam cosmologias ancestrais.

Não existe um modelo único de oficina aplicável para toda e qualquer escola e território. Já compartilhamos oficinas de tintas naturais em outros momentos. Para as crianças da escola Escragnolle, partimos da “Carta da Terra” e chegamos aos pigmentos e pinturas. Ao convidá-las a aprender mais sobre o lugar onde elas vivem, ouvi repetidamente as histórias de violência e medo. Perguntei se elas sabiam de onde eram aquelas tintas da oficina. Algumas crianças desconfiaram que a tinta era barro. “Parece tinta, mas tem cheiro de terra”. Perguntei se elas sabiam que a terra da região da escola era uma terra cheia de cores. Perguntei se elas conheciam o senhor gentil que conseguia ter uma forma diferente de ser e viver na favela. As crianças, assim como os pássaros, sabem de muita coisa. Os pequenos me trouxeram o nome e uma possível data de visita ao senhor. 

As crianças disseram que não sabiam que era importante conhecer de terra, de plantas e de quintal. Durante a semana as crianças me presentearam com terras, urucum e flores pigmentadas. Presentes de crianças da Pedreira. Talvez os mais bonitos que já recebi na vida.

Agora estamos mapeando os caminhos verdes da favela. As cores da terra do quintal da escola pintam de amarelo e tons de vermelho os mapas da vida da Pedreira.

Fotos: Wagner Clayton



21/05/2024

SERÃO PERMITIDAS APROPRIAÇÕES E RELEITURAS – por Veronica Pinheiro

 

Não tenho nenhuma perspectiva com relação a um novo mundo. Eu não acredito num novo mundo. Eu acredito que nós vamos ter que resolver o que a gente vai fazer com este que a gente está estragando. A ideia de um novo mundo está dentro de uma lógica que sugere que o meu sapato acabou, eu compro um novo.
Ailton Krenak

 

 

 

O ano: 2024. As duas reflexões chegaram a mim no mesmo dia: a primeira, um vídeo, do qual transcrevi um trecho da entrevista de Ailton Krenak; a segunda, um edital da Mostra Municipal de Multilinguagens, de onde copiei a frase que intitula este texto. 

Esta semana o diário seria sobre a oficina “Cores e terra – pigmentos e pintura”. Porém, no último dia da semana, ainda em expediente, recebi o edital da 4ª Mostra Municipal de Multilinguagens. Minha tarefa era entender como poderíamos inscrever a escola e os trabalhos que estamos desenvolvendo na mostra. Não sei vocês, mas eu leio editais e me atento às miudezas e aos detalhes. Eram tantas orientações pedagógicas somadas a um punhado de siglas e objetivos gerais e específicos. Assumo aqui que sou cismada com leis, diretrizes e pedagogias. As práticas, o não dito, o estabelecido, as escolhas e o fôlego das propostas me interessam mais. A princípio, li para entender em qual linguagem artístico-pedagógica poderíamos inscrever a escola (dança, teatro, música e/ou artes visuais). Depois não consegui parar de pensar sobre o que li.

O tema da mostra –  Brasil e seus brasis, a influência dos povos originários na formação da nossa identidade cultural brasileira, à luz da Lei 11.645¹ – tem uma série de agendas a cumprir. Era tanta demanda bonita (competências para o século XXI²; conjugar os 4Cs³; trabalhar temas transversais⁴; incluir a questão sócio ambiental e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS⁵; ampliar visão de sociedade e de mundo; focar na Agenda 2030 com a Coordenadoria de Diversidade⁶; não esquecer da Base Comum Curricular – BNCC⁷; implementar a Lei 11.645) que até fiquei tonta. 

Este texto poderia ter parado no título. Entretanto, convido a todos a pensar em como a gente vai resolver este mundo que estamos estragando. “Serão permitidas ‘apropriações’ e ou releituras’”. Esta frase me saltou aos olhos, automaticamente disse: “não entendi”. Ou entendi tudo. A sentença (frase ou oração; intencionalmente escolho a palavra SENTENÇA) escrita na página 15 do edital diz tanto sobre as relações étnico-raciais propostas pelas instituições e suas escolhas pedagógicas. Porém as instituições são compostas e representadas por pessoas. E como pessoas podemos juntos pensar em possibilidades para reescrever perspectivas e realidades.

Não há neutralidade num texto. Aprendi estudando linguística que em cada signo “dorme um monstro”. Se me atento ao não dito, como ignorar o dito? O escrito? 

“O corpo de um negro ou de um índigena está impregnado de cultura e memória, traz as marcas de dor e sofrimento que a colonização impingiu. Essas peles não são fantasias. Portanto, apropriação cultural não é homenagem, é violência simbólica exercida de forma sutil ou explícita. Ninguém tem o direito de usar um cocar e pintar a cara enquanto apoia o genocídio indígena. Um branco não pode cantar samba e continuar destilando racismo.”⁸

Certamente alguém vai tentar explicar e apresentar contextos para justificar a sentença que tanto me doeu os olhos. Pode até explicar, mas quem valoriza documentos e papéis não sou eu. Meu povo guarda memórias e saberes em cantos, em práticas e em rezos. Não sou eu quem exige que tratados e acordos sejam validados por escrito e protocolados. São as instituições. São as instituições que dizem “vale o que está escrito”. E estava escrito:

“Serão permitidas ‘apropriações’”

E se está escrito pode ser reescrito. Que possamos, a partir de 2024, ressecrever coletivamente os caminhos e as possibilidades de coexistência. Toda cultura é resultado de anos de interações sociais e naturais; por isso, a afirmação da identidade é um movimento orgânico.  É importante ouvir mais; por exemplo, ouvir como pessoas indígenas gostariam de ser apresentadas e representadas. Muita gente não sabe que um grafismos não é apensas uma pintura; tantas outras, desconhecem que um canto pode trazer memórias antigas e palavras de cura. Que em 2024, possamos entender que a melhor forma de honrar uma tradição é fortalecendo os territórios e respeitando todas as manifestações de vida presentes neles.

 

 

¹http://portal.mec.gov.br/index.php?id=12990&option=com_content&view=article#:~:text=A%20Lei%20n%C2%BA%2011.645%2F08,Afro%2DBrasileira%20e%20Ind%C3%ADgena%E2%80%9D.

²https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000234311

³O conceito dos 4C’s foi apresentado pela associação National Education Association (NEA), em complemento às atividades do “21st Century Skills”, movimento educacional do século 21 que visa capacitar os educadores para avançarem em sua própria prática. Os 4Cs são: pensamento crítico; colaboração; comunicação; criatividade.

⁴ Os temas transversais definidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais são: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Temas Locais. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/implementacao/contextualizacao_temas_contemporaneos.pdf

⁵ São 17 os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pelas Nações Unidas. http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel

https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2023/setembro/instituida-comissao-nacional-para-os-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel

http://basenacionalcomum.mec.gov.br/

⁸Apropriação cultural / Rodney William. — São Paulo : Pólen, 2019.

14/05/2024

SUMAUMANOS – por Veronica Pinheiro

Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”, 

“Todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”.

 

 

Às 7h30 do dia 07 de maio de 2024, a diretora, como todos os dias, abriu o portão da escola. No lugar de “bom dia”, ouvimos: “Não dormi de tanta alegria! Eu queria que amanhecesse logo pra vir pra escola.”

Pronunciadas as sentenças, ouvimos vozes sequenciadas como num jogral: “Eu também”. “Eu também”. “Eu também”.

Não reforcei o coro, mas eu também.

Era o dia da primeira imersão do Grupo Aprendizagens. Nosso destino: Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Nesse movimento de despertamento de memórias, provocamos encontros. Alguns são entre espécies, outros não. Para nossa imersão pensamos no encontro das crianças com as árvores. Tínhamos um roteiro alinhavado: receber as crianças na escola; café da manhã; embarque no ônibus; chegada no Jardim Botânico; visita ao museu e à exposição Mbaé Kaá; passeio no jardim; piquenique; meditação e jogos teatrais; retorno à escola; e almoço. Uma linha longa e sensível prespontava de verde nossas expectativas. 

Se “só existe o experimentar e o resto não nos diz respeito”¹, o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza, que também somos? Muito provavelmente, chegaremos ao último diário do ano, em dezembro, sem a resposta, mas essa pergunta nos move. Repetidas vezes falamos em semeadura; em palavras germinantes. No cenário ideal, quem planta uma roça sabe o que vai colher e sabe o tempo de colheita do que foi plantado. E quem planta sonhos? Encontros? Quem planta água, árvores e florestas? 

Levar as crianças ao Jardim Botânico para que elas encontrassem as árvores não compõe uma estratégia pedagógica. É muito mais simples: toda criança tem o direito de saber que é natureza e de ter acesso às manifestações do mundo natural. 

“Tia, isso não é tiro. É fogos. Fica tranquila.” “Tia, esse barulho é do helicóptero da reportagem,  o helicóptero da polícia tem outro barulho.” Na favela da Pedreira, muitas crianças de menos de 10 anos sabem reconhecer os sons do horror e da guerra. Porém, não conhecem os sons resultantes do encontro do vento com a copa das árvores. No dia 07 de maio de 2024, dia do passeio, a favela amanheceu tranquila e o Sol apareceu cedinho e bem quente, apesar de estarmos no outono. A última terça tinha gosto de docinho de festa.

Da escola, éramos um total de 42 pessoas². Do Grupo Aprendizagens, 6³. 1 ônibus rosa-choque e 1 motorista super gentil. A cor do ônibus é estratégica, precisamos entrar e sair da favela em segurança. O tal ônibus rosa se tornou uma personagem querida entre crianças e adultos, ele já ganhou nome e sua visita está sendo aguardada por outras turmas da escola.

 

 

A visita ao jardim começou e terminou diante da Sumaúma (Ceiba pentandra). No começo, “Sumaúma: Copa, Casa, Cosmos”, obra de Estevão Ciavatta com narração de Regina Casé, nos imergiu virtualmente na Sumaúma. Fomos recebidos pela equipe do educativo do Museu; Daiani Araújo e Thalyta Sousa receberam as crianças com muita delicadeza e conduziram todo o grupo até a obra Sumaúma. Na sala de projeção, todos, sem exceção, ouviram com o coração as palavras da árvore. Pela primeira vez, muitos dos presentes se deram conta que uma árvore tem muito a dizer sobre si e sobre a vida. Alguns quase não piscavam, outros ouviam de olhos fechados. Todos sorriam com lábios e olhos. 

 

 

“Tia, faz o mapa pra chegar da escola até aqui. Quero trazer minha família pra ouvir a árvore.”

“Farei um mapa do metrô da Pavuna até aqui. Será muito fácil chegar.”

Subimos as escadas de madeira em pequenos grupos de 7 pessoas e no segundo andar, dentro da  exposição Mbaé Kaá aprofundamos algumas conversas sobre plantas e a relação dos povos indígenas com elas, ao redor da instalação Jardim Viva Viva. Arte Guarani, natureza, ciência, Barbosa Rodrigues e as janelas do prédio. Após a conversa sobre a exposição, as crianças correram para janela. Ali me toquei que as janelas das salas de aula da escola não têm vista. O gesto coletivo de olhar para fora trouxe uma inquietação ao grupo. Muitos encontros estavam por acontecer. Abraços entre crianças e educadores do museu encerraram a primeira parte do passeio.

 

 

Dentro do Jardim, as crianças olhavam pra todas as direções possíveis. Enxergavam  com olhos, ouvidos, pés, pele e coração. Pausa para admirar a água fresca descendo das pedras. Pausa para sentir o frescor das águas. Por um minuto ou mais não ouvi vozes; corações e bocas se calaram para o olho ver direito. Findo o silêncio que saudava as águas, aos poucos a euforia tomou novamente o grupo. “Não vou mais lavar essa mão aqui. Toquei na água da cachoeira.” Não falei nada. O menino acreditava que tinha tocado as águas, mal sabia que as águas tinham tocado nele. Ele agora carrega água fresca dentro, lavar ou não a mão é detalhe.

“Tia, o bambu falou!” Antes que eu tecesse algum comentário…

“Por que não tem panda lá em cima?”

Antes que eu falasse qualquer coisa… um peixe gigante, o tambaqui que vive no Lago Frei Leandro, se tornou mais interessante que a resposta. Caminhamos por alguns minutos, atravessamos a pequena ponte e o pequeno portal para o parquinho das crianças. Lá, tivemos uma pausa pro lanche e para meditação. Cantamos pra Terra. De olhos fechados fomos árvore. Raízes. Tronco. Galhos. Folhas. Nosso passeio se aproximava do fim, era hora de retornar ao ônibus. Pegamos um caminho diferente dentro do jardim, não poderíamos ir embora sem encontrar a Sumaúma plantada no Jardim. 

Com raízes muito profundas que trazem água para a superfície mesmo na época seca, a Sumaúma é considerada a mãe da floresta e pode chegar a 70 metros, o que equivale a um edifício de 24 andares. De onde eu venho, na sumaúma vive Iroko, (do iorubá Íròkò) que é guardião da ancestralidade e dos antepassados, seio da natureza e morada de todos os Orixás; primeira árvore que se fez plantar na Terra. Muitos povos indígenas afirmam que as grandes sapopemas da sumaúma representam um portal para outro mundo. Uma árvore  sagrada para diversos povos da floresta, uma grande mãe, que protege todos. Os Huni Kuï dizem Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”, “todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”. Num espaço pluriversal de diálogos, a sumaúma é tudo isso e mais um pouco. 

Li um documento da EMBRAPA sobre a Sumaúma e pensei que a equipe que escreveu o texto para o  Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento deveria ter visitado o Jardim Botânico do Rio junto com as crianças, pois os técnicos do governo só conseguiram apresentar ao público os múltiplos usos e alternativas econômicas sobre a sumaúma. As crianças não. Assim como os babás e pajés, as crianças se conectaram com a árvore. Sonhos e seiva se misturaram. À medida que nossa roda se formava ao redor das sapopemas da sumaúma, memórias verdes eram despertadas. Em tempo de sonho, meus pequenos companheiros sonharam ser árvore e viver num jardim. Sonho é seiva, líquido que circula mantendo o tempo circular. Num tempo de seiva, Angélica de 10 anos chegou à seguinte conclusão: “Encontramos a árvore, entramos dentro dela agora somos SUMAUMANOS”.

 

 

 

Voltando à pergunta que nos movimenta: o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza que também somos? Segundo a menina Angélica, podemos virar um pouco árvore.

 

¹in Mbaé Kaá o que tem na mata: A Botânica Nomenclatura Indígena, de João Barbosa Rodrigues. Dantes Editora, 2018.

² 37 alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, 3 professores, coordenadora pedagógica e diretora adjunta

³ Luany da mediação de visita ao Jardim; Paula Novaes da mediação de atividade de respiração e jogos teatrais; Tania Grillo da mediação durante a exposição Mbaé Kaá, e 3 integrantes da equipe de voluntários, Bia Jabor, Eliane Brígida, Evellyn.

Fotografia: Éricka Hoch; 

Coordenação e medicação nas atividades de Veronica Pinheiro .



07/05/2024

DE SOL EM SOL – por Veronica Pinheiro

 

Foto: Wagner Clayton                      

 

Todo MUNTU (ser humano) é o Sol vivo, percebido como um “poder”, “um fenômeno da veneração perpétua, da concepção à morte” e além. Uma vez trazido ao mundo físico se inicia uma tarefa sagrada (a mais importante para civilizações africanas): cuidar desse MUNTU para que ele brilhe como o Sol do meio dia.¹

Observe: a cosmologia africana dos Bantu-Kongo, ideia compartilhada pelo dr. Fu-Kiau, apresenta o cuidado com as crianças como uma arte que precisa ser honrada.

Pensando no universo escolar, ser professor de crianças é uma atividade considerada de menor prestígio na sociedade brasileira; uma atividade realizada geralmente por mulheres e por pessoas de baixo poder aquisitivo. Existe uma hierarquia estabelecida entre os profissionais de educação e quem leciona na Educação Infantil e Ensino Fundamental são desrespeitados dentro da própria categoria. É comum um professor universitário se ofender ao ser perguntado em que escola ele trabalha. “Escola? Não trabalho em escola. Sou professor da Universidade fulana de tal.”

Curiosamente, muitos professores que se apresentam publicamente como decoloniais (ou contra-coloniais) são apegados ao pensamento hierárquico europeu, que vê a educação infantil e o Ensino Fundamental como um lugar de menos prestígio intelectual. 

A professora Jacqueline Siano esteve presente na minha banca de qualificação do mestrado, ela fez a seguinte observação: “Você pesquisa confluências afropindorâmicas e práticas contracoloniais no ensino. Você precisa voltar para escola!” 

Voltei. 

Volto prenhe de caminhos e possibilidades. Trago no coração algumas ideias para adiar o fim do mundo. Há quem diga que volto pluriversalizada. Eu digo que volto povoada. Povoada por seres, narrativas, tempos e espaços. Tenho andado cada vez mais acompanhada. Nesta volta, muitas memórias foram despertadas no corpo de carne e no corpo memória. Nessas memórias, conheci e despertei memórias solares.

Quem é o Sol? Quantas narrativas conhecemos sobre sua origem, a origem do mundo e sua participação como fonte vital de energia?

Eu trazia duas memórias solares: a de casa, repetida em versos e nas práticas diárias, que me dizia que nós éramos como o Sol; a da escola dizia que o Sol é uma estrela localizada na Via Láctea, a estrela mais próxima do planeta Terra e a maior de todo o Sistema Solar. A escola dizia que era impossível que eu fosse Sol. Como a escola é autorizada a dizer o que é certo e errado, esqueci que era Sol e fiquei com a versão da escola. Essa visão reducionista de existência apaga sóis em dia pleno. 

Kuaray (Guarani); Abe (Desana); Mãyõn (Maxakali); Kamoi (Baniwa); Sol (Português); Bari (Huni Kuin); Pawa (Ashaninka); Wei (Macuxi) são mais que palavras utilizadas para designar o Sol; são epistemologias solares. Palavras geradoras, acompanhadas de vida e mundos. Tenho um gosto especial por narrativas que começam com “Antes o mundo não existia”. Esse tempo antes do tempo existir traz ensinamentos profundos de cuidado e manutenção da existência. Os mitos de origem não existem para alimentar os ouvidos do mundo, mas para vibrar vida. 

Despertando memórias solares, alguns vazios foram preenchidos com escutas e pesquisas; em breve o Ciclo Sol apresentará uma série de falas sobre o Sol². O pensamento lá de casa reapareceu em livros e teses. “Deixa meu Sol aceso”, fala de meu pai, apresenta vestígios de uma filosofia antiga, trazida ao Brasil por pessoas negras durante a travessia do Atlântico entre os séculos XVI ao XIX (tráfico de pessoas promovido por Portugal é a expressão mais precisa). No pensamento Bantu-Kongo, quatro grandes “sóis” regem  os processos de formação e mudança. O primeiro (Sol Musoni) é o Sol do “ir para”, todos os começos; o segundo (Sol Kala) é o Sol de todos os nascimentos; o terceiro (Sol Tukula) é o Sol da maturidade, liderança e criatividade; o quarto (Sol Luvèmba) é o Sol da última e maior mudança de todas, a morte¹. 

Nunca empreguei tanto a palavra Sol no plural quanto nesses últimos dias. Plural em significados e existências. Coexistências continuamente formando, mudando, expandindo. De sol em sol, se pensarmos no processo de solar de formação Bantu-Kongo, o Grupo Aprendizagens encontra-se no segundo sol. Estamos nascendo. Nascendo e propondo nascimentos. Para isso, temos semanalmente reuniões de planejamento e estudo (com pessoas da equipe Selvagem); mensalmente nos reunimos com os professores da escola parceira e com os voluntários do grupo. 

 

Foto: Wagner Clayton

 

Nosso último rompimento, foi receber na escola a visita da ceramista Angélica Arechavala (voluntária que acompanhou o Grupo Crianças e agora apoia o Grupo Aprendizagens). Pode parecer simples, mas a escola está localizada numa região desfavorável para receber visitas. Nossa ideia é estreitar parcerias e criar uma rede orgânica entre territórios, isso inclui trazer pessoas de fora para conhecer a comunidade escolar e levar a comunidade escolar para conhecer outros lugares. 

Para que mais um Sol vivo fosse incluído na mediação das oficinas de cerâmicas, contamos com a articulação da escola, que disponibilizou pessoas para buscar Angélica e trazê-la pelo caminho mais seguro. Ao compartilhar com um cientista a potência daquele encontro que durou 10 horas, recebi o seguinte comentário:

“Os objetos dobram o espaço-tempo, sentem essa curvatura e se movem de acordo. Você é um sol. A chegada da ceramista adiciona um novo sol além de você. Isso desloca a posição do primeiro sol, e principalmente dos demais planetinhas que são seus aluninhos kkkkkk que estavam acostumados à configuração anterior. Por isso, eles estavam mais próximos girando e orbitando em torno de você”.

O que teve de tão potente nesse encontro? Eu pude sentar e tocar em crianças que geralmente não me permitem muita aproximação. Crianças que conhecem o horror bem de perto confiaram em nós no último encontro. Era um ambiente de muita confiança e cuidado: direção, coordenação e professores nos acompanharam em todo tempo, em cada espaço.  A presença de Angélica dobrou o espaço-tempo, gerando deslocamentos solares.  Estamos caminhando para gerar Tukula, o Sol da maturidade. Que ele chegue em boa hora.

“O Sol caminha devagar, mas atravessa o mundo” – Provérbio Africano

 

 

¹Fu-Kiau, Kia Bunseki e Lukondo-Wamba, A.M. KINDEZI: A Arte Kongo de Cuidar de Crianças.  Com introdução de Marimba Ani. Tradução para o brasileiro por Mo Maiê. Rede Africanidades

²O Ciclo é composto por 19 falas pluriversais de Catarina Delfina Tupi-Guarani, Fabio Scarano, Moisés Piyãko (Ashaninka), Catarina Aydar, Carlos Papá (Guarani), Aliny Pires, Dua Busë (Huni Kuin), José Miguel Wisnik, Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Júlia de Carvalho Hansen, Francisco Baniwa, Aza Njeri, Anacleto Tukano, Carla Wisu (Dessano), Camila Mota, Marcelo Gleiser, Eduardo Góes Neves e Ailton Krenak.

 

 

30/04/2024

O SOL SONHAVA AMANHECER – por Veronica Pinheiro

 

“Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou o Sol
Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou a água, o vento, a vida no planeta
Por isso você não pode ter medo do escuro.
O escuro é a mãe de todo o universo, inclusive de Deus.
O escuro não escolhe ninguém.”
Poética Guarani narrada por Carlos Papá¹

 

Foto: Veronica Pinheiro

 

O diálogo a seguir abre caminhos para a segunda Oficina Aprendizagens, que o Selvagem pensou para a Casa das Crianças:

  • Preciso de uma sala escura.
  • Não temos uma sala escura. Você não pode usar a Sala de Leitura com a luz apagada? 
  • Posso. Mas ela não é escura o suficiente. E se alguém, sem querer, acender as luzes da sala, perdemos esta etapa do trabalho.
  • Crianças têm medo do escuro.
  • Crianças têm medo da relação que criaram para elas com o escuro. Vai dar certo, elas estarão carregando o Sol dentro do peito. Vamos construir uma boa relação com a escuridão.
  • Tem a antiga salinha do médico. Não sei se é escura o suficiente, mas eu te levo lá.

A salinha do médico ganhou camadas de tecido preto, gentilmente colocadas pelo professor Wagner, tornando-se o nosso laboratório de imagens e sons. A oficina era sobre o Sol e a relação de vida que ele estabelece com a Terra. A palavra “relação” aparecerá escrita ou subentendida em todos os textos do diário, e não será por descuido. A oficina, mais especificamente, era de cianotipia, processo fotográfico artesanal, criado no século XIX, que utiliza sais de ferro para a produção da cópia fotográfica em tons de azul. A sala cedida, inicialmente, era para a preparação dos químicos, para sensibilizar e secar os papéis na primeira etapa. E, para a impressão das imagens, a luz do Sol. A sala está se tornando um lugar para pensar sobre as coisas que sentimos quando estamos longe da luz. Para as crianças, luz significa bem, coisa boa; e escuridão significa mal, coisa ruim. Entre a luz e a escuridão, o pensamento euro-cristão-monoteísta criou distâncias fixas preenchidas por medos.

A escolha das oficinas é um grande apanhado de inquietações. Buscamos atividades em que a natureza seja protagonista. E nos concentramos para que o protagonismo não se confunda com utilidade ou recurso. Cuidamos para que ninguém pense que usamos a luz do sol para revelar fotografias. Não usamos a natureza, somos seres compartilhantes. Diante do sol os corpos dançam – o corpo da água, dos humanos, das plantas, dos sais. De que nos adiantam atividades onde há uma ebulição sinestésica, que, no final, só gera prazer aos humanos e ofende às árvores, às águas, à terra? 

Foto: Wagner Clayton

 

Antes da oficina de fotografia artesanal, conversamos sobre os textos que a luz do Sol escreve na terra. Falamos sobre escuridão (de onde saímos todos), sobre fotossíntese,  foto e  sínteses. Três textos foram compartilhados com os alunos da escola: A vida do sol na Terra¹, Iori descobre o Sol e Taynôh, Ho Shamêh Tahe. Um vídeo sobre o Sol foi exibido. Pintamos o Sol em tecidos de algodão; tecemos raios solares para pulseiras; fizemos registros fotográficos; sensibilizamos papéis no laboratório escuro. Com qual objetivo? Despertar memórias solares.

A escola constrói esquecimentos. Por anos, acordei antes do Sol, chegava na escola bem cedinho e voltava para casa quando o Sol já estava se pondo. Trabalhava na escola e ensinava sobre as coisas da vida. Naquela época, estive tão distante do Sol que meu corpo se esqueceu de muita coisa. Desaprendi a suar e a produzir vitamina D. Meu corpo tinha falta de Sol.

Se a escola constrói esquecimentos, contamos histórias para acordar sentidos e memórias. 

“Se tiver dificuldade para achar o caminho, pergunte a meu filho Kuaray, o pequeno Sol, que ele saberá guiar vocês.”¹

Em diálogo com o mito Guarani, conhecemos um pouco sobre Kuaray, filho de Nhanderu’i. Conversamos sobre caminhada e escuta. 

A mãe do Sol em algum momento parou de ouvir o Sol porque ficou furiosa quando foi picada no dedo por uma enorme abelha mamangava.

 

Foto: Wagner Clayton

 

Os pequenos sóis que estavam diante de mim quiseram falar. Eu parei para ouvi-los. Eram narrativas silenciadas. Compreendi ali um pouco da relação deles comigo e com a escola. Algumas crianças sem mãe, muitas sem pai, tendo que ser um Sol que brilha sozinho na Terra. Crianças de 5 a 7 anos que conversam sobre conselho tutelar, abandonos e desejos de ser Sol.

Na leitura de Iori descobre o sol, de Oswaldo Faustino, na verdade é o Sol que descobre Iori. Em Iorubá, Iori quer dizer “cabeça que voa alto”. Exercitamos imaginar quem era o Sol e o que ele fazia na Terra. No final dessa atividade, recebi vários sóis pintados e nomeados com nomes femininos. Sorri e falei alto: “Vocês aprenderam isso com os Macuxi?”. “Wei” significa “Sol”. Sony Ferseck me disse que, para a cultura do povo Macuxi, o Sol é uma entidade feminina². As crianças entenderam o exercício de pensar em outras formas de ser e estar no mundo. Pensaram no Sol como quem alimenta as plantas todas as manhãs e disseram: “O Sol é mãe”. Eu sorri. Nunca tinha pensado nessa possibilidade. Confluímos. Meus pequenos companheiros de jornada iluminaram mais uma vez meu caminho na Pedreira³. 

Deste livro, surge a frase mais doce que li na semana: “O sol sonhava amanhecer”. 

Sonhei com o Sol e partimos para a última leitura e oficina.

Taynôh, Ho Shamên Tahe, o menino que tinha cem anos, é um livro polilíngue (Puri, Guarani Mbya, português e espanhol) de Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri). A leitura foi rápida e generosa. Fomos guiados por uma água doce e profunda, conversamos sobre não plantar esquecimentos. 

Durante esse encontro, sistematizamos todas as etapas da cianotipia. Depois de ter explicado tudo o que iria acontecer e os resultados que teríamos, pulei etapas e descumpri os combinados. A turma acompanhou a oficina seguindo a professora na sala escura, no Sol. Mas as impressões não saíram no papel. Letícia, de 10 anos, fez a seguinte observação: “Para que as coisas aconteçam na terra, todos os elementos precisam estar presentes. Você sensibilizou os papéis com água. Não usou os sais. ‘Tudo acontece em presença’, não é?”. “É. Tudo precisa estar presente, Letícia.”

Vitor, de 10 anos, conclui: “Então bora voltar pro escuro e começar tudo de novo”;

Começamos de novo. E quando colocamos no Sol os papéis, sem pular etapas e sem ausências, o Sol escreveu em azul nos papéis. Ali estavam nossas fotografias azuladas, retratando as folhas que colhemos no quintal.

Fotos: Wagner Clayton

 

 

¹https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2023/11/CADERNO79_PAPA_KANGUA.pdf

²Ferseck, Sony. Weiyamî: mulheres que fazem Sol. Boa Vista, RR: Wei Editora, 2022.

³Pedreira é o nome do complexo de favelas onde a escola está localizada.

23/04/2024

CADÊ O RIO QUE ESTAVA AQUI? – por Veronica Pinheiro

 

Turma do 1º ano Roda de Leituras: A natureza que vive aqui
Foto: Professor Wagner Clayton

Os livros didáticos de história do Brasil sempre apresentaram a vida dos povos indígenas e quilombolas de forma preconceituosa. As lacunas estabelecidas, intencionalmente, nos ensino básico e superior formou, deformou e conformou gerações. Ao apagamento sistemático de produção de saberes produzido por grupos contra-hegemônicos¹, chamamos de EPISTEMICÍDIO. Quando o conhecimento científico se torna a única maneira de ler e entender a vida, fica estabelecido uma estrutura monocultural que tenta desqualificar outras formas de conhecimento. 

Ouvi, mês passado, num evento de uma universidade federal, que ”somos vira-latas”. A fala veio de uma doutoranda bem intencionada que tentava explicar que a mestiçagem estrutura toda a forma de ser e existir do brasileiro. Vira-latas são SRD, cães sem raça definida, sem origem delimitada com misturas de duas ou mais raças. Com todo amor que tenho aos vira-latas, o pensamento que compara o povo brasileiro a cães sem origem delimitada é perverso do começo ao fim.  

Começo a contar histórias indígenas e afro-pindorâmicas da seguinte forma: 

Há quinhentos anos, não existia um povo chamado de brasileiro. Quem morava aqui (Rio de Janeiro) eram outros povos. Eram nações que falavam línguas diferentes, tinham seu próprio jeito de ser e seu próprio nome. E sempre perguntam: Quem vivia aqui? 

A armadilha colonial é tão bem feita que levamos às crianças apenas as informações contidas nos livros. Fazemos isso, mesmo sabendo que os colonizadores, que tentaram identificar o nome de cada povo, criaram muitas confusões por desconhecer a língua falada ou por simplesmente preferir genericamente designar nações.

A escola onde estamos tecendo memórias está localizada próxima aos rios Acari (peixes), Irajá (cuia de mel) e Pavuna (lugar atoladiço). Os rios dão nome aos bairros. E às suas margens, além de mata ciliar, encontramos fios de memória para nossas tessituras. 

No ciclo presencial AYVU PARÁ, que aconteceu no dia 31 de maio de 2023 no Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, Carlos Papá mediou aulas com saberes profundos sobre a Nhe’ërÿ (o lugar onde os espíritos se banham, assim os Guarani chamam a Mata Atlântica). Durante os dias de encontro, a caminho do restaurante onde almoçamos, Papá me fez a seguinte pergunta: “O que você está ouvindo?” 

Era hora de almoço, um dia de semana na Barra Funda, São Paulo capital. Eu ouvia crianças indo ou voltando da escola, carros e ônibus na avenida Matarazzo, gente passando. Papá vendo que eu não entendi a pergunta, parou, olhou para a tampa de um bueiro e disse: “Você não ouve o rio? Tem um rio preso aqui dentro.”

Depois da escuta ser gentilmente conduzida, ouvi o rio. Sua voz era diferente dos rios que eu tinha acabado de ouvir em viagam no Recôncavo Baiano. Uma voz densa. Era tanta força e vida que eu fiquei ali por alguns minutos. 

Os rios sabem de muitas coisas. Certamente eles sabem da origem de muitas coisas. Nada nesse território tem origem desconhecida. A questão é: quem estamos ouvindo? Os livros didáticos trazem informações sobre pessoas indígenas e quilombolas, porém raramente indígenas e quilombolas participam da organização dos conteúdos. Mais raro ainda é encontrar parcerias que não tratem pessoas indígenas e quilombolas como objetos informantes ou interlocutores-informantes.

Sonho com o dia que poderei, como professora, colocar nas referências dos meus textos e planejamento de aula: “palavras do Rio Acari” ou “canto do beija-flor que pousou na janela da sala”.

A lei 11.645 torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio. Na prática, os livros são a referência, e as aulas são encontros para repasses de números, dados, datas e informações sobre algo desconhecido. A história e a cultura idígena e afro-diaspórica se estabelecem em presença, não em referência. O mito ou o itã são memórias vivas de povos vivos. A corporeidade é o lugar de articulações e agências de vida. O território vibra a força da vida; sendo ao mesmo tempo corpo, chão, rio, ar e todos os seres que existem naquele lugar. Por isso, insistimos em falar de escolas vivas. Escolas de presença, com memórias vivas.

Para isso, precisamos refazer percursos. Como professora, devo estar disponível aos processos de desaprendizagens. De deseducação. Preciso criar outra relação com o tempo/bimestre/cronograma/agenda. O que fala o rio Acari me importa mais que o que contam os livros. Quando as crianças me perguntam: “Qual povo vivia aqui?”

Eu respondo: “Cadê o rio que estava aqui? Algum rio passa por aqui? Porque os rios certamente sabem mais sobre esse lugar do que os livros que li.”

A pergunta rendeu: Agora temos um projeto junto a coordenadora pedagógica da unidade para a escola e comunidade escolar. Cadê o rio que estava aqui? O que os rios dizem sobre nós?

Se você ouve rios e sabe de coisas líquidas, mais ou menos torrenciais, precisamos de você para construir percursos. Para caminhar pelas águas, temos uma canoa chamada Encantada. E nela sempre cabe mais um. Aceita o convite?

 

Apresentação da sala de Leitura e o 4º ano para escola: A culpa não é da chuva
Fotos: Professor Wagner Clayton 

 

¹ Entende-se por movimentos contra-hegemônicos as práticas de resistência aos discurso de gestão dominantes que buscam contestar e escapar à disciplina da ordem do sistema capitalista. SULLIVAN, S; SPICER, A; BÖHM, S. Becoming global (un)civil society: Counter-Hegemonic Struggle and the Indymedia Network. Globalizations, 8(5), 703–717. https://doi.org/10.1080/14747731.2011.617571

16/04/2024

DESENHOS DA FALA – por Veronica Pinheiro

 

 

“Tem gente me ouvindo?
Quem tá me ouvindo bate uma palma.
Quem tá me ouvindo bate duas palmas.
Quem tá me ouvindo bate três palmas!”

Professores espalhados pelo Brasil lançam mão dessa quadrinha para obter a atenção das crianças para uma atividade. Como professora, muitas vezes me bastava que os alunos me disponibilizassem seus ouvidos, olhos e mãos. Existe uma tal régua que mede a eficiência de um professor e nas escolas a conhecemos pela alcunha de “domínio ou controle de classe”. Quanto mais quieta uma turma, mais eficiente é o regente. O professor em atividade é chamado de professor regente. O comportamento da turma e o desempenho nas avaliações são os critérios máximos para avaliar um professor. Por quê? Porque são pontos observados quantitativamente; são índices facilmente observáveis. Nunca vi secretarias ou programas educacionais medindo o quanto uma turma ou um professor está feliz no bimestre. 

A felicidade e o bem-estar não compõem os objetivos gerais ou específicos de um planejamento escolar. Quanto está feliz o professor da turma A? Qual a turma mais feliz da escola? Felicidade é subversão em espaços de formação. A escola é uma estrutura social que representa esquemas de poder e, para isso, as pessoas que ocupam esse espaço assumem papéis sociais. Para garantir sua adaptação e permanência na função, um professor adota a máscara social do regente, se apresentando publicamente muitas vezes como um indivíduo austero. Dá um trabalho danado ser gentil na escola, sabe? Alunos não reconhecem a gentileza como características de um regente. Para eles, adultos são máquinas de dizer “não”; adultos determinam onde, quando e como. 

Na prática, “uma turma boa permanece sentada em silêncio ouvindo e escrevendo”. Delicado, né? Porque um professor que tem 40 alunos em turma não consegue trabalhar se a turma não estiver sentada, né? Tudo é feito para ninguém questionar o modelo estabelecido.

Diante de toda potência dos corpos, docentes e discentes, o sistema educacional regular quer dos professores apenas voz e mãos. Dos alunos, os professores querem ouvidos, olhos e mãos. 

Atendo semanalmente 14 turmas, passo 1h40 com cada uma delas. Confesso que tenho minhas máscaras sociais. Quando percebo que tenho a atenção de uma turma retiro a máscara da regente, algumas turmas entendem o código e seguimos de boa ao som de músicas, lendo, escrevendo e observando como a natureza está presente na escola. Porém, uma turma já percebeu que componho uma personagem para dar aula. Esses meninos, mais espertos que eu, não me deixam falar, eles não me emprestam seus ouvidos. Diante do desafio, busquei os recursos que tenho para termos qualidade em nossos encontros. 

Levei argila para aula e pensei: “Quem sabe o contato com a terra crie um tempo de escuta de qualidade?” O processo de criar com argila está também associado a práticas meditativas de concentração plena. O tato, o contato, a interação com a terra podem promover um senso de comunidade e conexão entre as pessoas do grupo. Mas não deu certo com eles.

Tentei várias coisas. Algumas funcionaram parcialmente. 

Lembrei da experiência que vivi com jovens artistas Guarani na preparação do Ciclo Nhe’ërÿ em maio de 2023. Vi quando eles cantaram e dançaram diante de uma tela em branco. Antes de pintar, eles cantaram as memórias da Nhe’ërÿ e honraram a Nhanderu com danças e palavras sagradas. Quando sentiram em seus espíritos que estavam autorizados para representar a Nhe’ërÿ com desenhos, desenharam as palavras cantadas e faladas. 

Foi quando resolvi parar de ler histórias para o terceiro ano e começar a desenhar no quadro as histórias do livro. De Elias Yaguakãg, As aventuras do Menino Kawã foram desenhadas no quadro branco e, enquanto a turma ficava empenhada em reproduzir as imagens no caderno meia-pauta, eu aproveitava para contar (às vezes, ler) as histórias. Capítulo por capítulo, as palavras ganharam imagens que eram apagadas do quadro no final da aula. Percebi que as mesmas imagens ganharam lugar nos olhos, cadernos e na memória criada em aula. Um dia, esqueci o quadro desenhado e a professora de inglês da turma não entendeu os desenhos. Então eles contaram para ela sobre Kawã, o menino indígena que era protegido pela Ka’apora’ãga. A professora me procurou na hora do almoço dizendo com sorriso nos olhos: “Eles ouviram e sabem cada detalhe da história. Eles não só te ouvem, eles estão te escutando”.

Já que chamamos nossos compartilhamentos de semeadura, precisamos saber o que a terra pode dar antes de lançar a semente. Eu queria os ouvidos, mas eles são visuais. Não ia dar certo, né?

Eles escutam com os olhos!

 

Desenhos: construção coletiva da Turma 1401 com a professora Veronica

09/04/2024

PISANDO SUAVEMENTE NA TERRA OU PRIMEIRO BIMESTRE ESCOLAR – por Veronica Pinheiro

 

Colagem: Lívia, 7 anos | Aula: Eu sou natureza
Foto: Veronica Pinheiro

 

Chegamos ao Complexo da Pedreira, por uma escola. Temos muitas críticas ao sistema educacional que homogeiniza pensamentos e modos. A crítica é ampla, não está direcionada a professores ou a uma secretaria de educação específica. A escola de ensino regular cumpre bem o seu papel no projeto da imposição civilizatória europeia. Essa imposição traz como consequência, para os povos afro-pindorâmicos, uma distorção de identidade, uma vez que a escola nos ensina a ver por meio dos olhos do colonizador. Já disse Leonardo Boff:

“Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.” 

Ao ignorar saberes e ciências que não estão contidos, intencionalmente, em seus manuais, a escola provoca um processo de desterritorialização de crianças dentro de favelas, quilombos e aldeias; e assim deslegitima os conhecimentos trazidos pelas crianças e famílias, obrigando alunos a adotar a língua e a linguagem do dominador. 

Já testemunhei (como aluna, professora, coordenadora pedagógica e diretora escolar) muitas violências físicas e simbólicas cometidas dentro da escola. A violência simbólica é a violência “invisível”, que subjuga e aprisiona os sujeitos. Temos muitas críticas, no entanto não podemos ignorar que, no Brasil, crianças e adolescentes urbanizados, principalmente nas periferias, estão tão vulnerabilizados que a escola pode se tornar um espaço de construções interessantes. Então… se a escola é um lugar de homogeneização e docilização de populações, ela também pode vir a ser um lugar de ruptura. 

Qual seria então o elemento disruptivo?

Cris Takuá, minha mestra, me ensina a não apostar em respostas prontas, mas na semeadura de possibilidades de transformação que sustentam mundos. Acreditamos no fortalecimento dos territórios através do acordamento de memórias recentes e memórias muito antigas. Sendo o tempo circular, o que será e o que já foi estão sensivelmente conectados. Contar histórias para acordar não é apenas para o despertamento de uma consciência sócio-histórica, mas para firmar pilares que possibilitem uma leitura de si por meio dos seus próprios olhos. 

Por esses e outros motivos, não poderíamos, porém, chegar à escola simplesmente dizendo a professores e a alunos que eles precisam pensar de outra forma. Estamos construindo diálogos, vínculos e não aplicando uma proposta esvaziada de contextos. Chegamos pisando na terra suavemente. Muitos pais de alunos estudaram quando crianças na E.M.P. Escragnolle Dória e foram alunos das professoras que dão aula a seus filhos. Algumas professoras trabalham há mais de 15 anos aqui. É fundamental ouvir essas histórias. 

Encerramos o primeiro bimestre animados. A professora do primeiro ano nos convidou para planejarmos juntos as atividades dos próximos bimestres, incluindo em seu planejamento a ideia de uma escola viva. Alguns professores estão acompanhando voluntariamente as oficinas das crianças na escola e as rodas de leituras. Outros me acharam no Instagram e chegaram ao Selvagem.

Diretoras e coordenadora pedagógica também começaram a sonhar conosco. Até o Sol, tema do ciclo de estudos Selvagem em 2024, passará a fazer oficialmente parte do Projeto Pedagógico Anual da escola – PPA. Não fizemos palestras ou reuniões para falar dos ciclos para a equipe pedagógica, o proselitismo não faz parte do pensamento Selvagem. Como se deu então as parcerias? Pela magia do encontro. O encontro é capaz de criar vínculos de vida de maneira orgânica, natural e confluente.

 

“Que possamos então nos animar
e nos animar uma vez mais,
Nhamandu pai verdadeiro primeiro!”¹


Foto: Veronica Pinheiro

 

¹A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani I. Pierre Clastres; tradução Níeia Adan Bonatti. – Campinas, SP.

02/04/2024

TEMPO E AMOR – por Veronica Pinheiro

 

Imaginemos partículas no espaço.
Cada partícula é um ponto de energia. 

No entanto, nada existe em si só,
tudo existe porque há uma dança. 

Neste cosmos flexível,
cada corpo que irrompe
é um novo desenho e
transforma tudo ao redor.¹

Anna Dantes

 

Em minha casa, aprendi que para se educar uma criança é preciso uma comunidade.

“nada existe em si só”

Poder voltar à escola como comunidade, pertencendo e trazendo comigo a comunidade Selvagem, me coloca noutro lugar, um lugar expandido. Trabalhei como professora em escolas, durante muitos anos fui repreendida por trazer afetos e sorrisos na mesma mochila em que trazia os livros. Nasci e fui educada em comunidade. Aprendi em casa a amar com as mãos; trabalhávamos cantando e cuidando uns dos outros. Meu avô Antônio ensinou a meu pai que o canto espanta os medos e protege a casa. O cuidado com as crianças era compartilhado. Compartilhada também era a água, a comida, as dores e as alegrias.

Uma vez ouvi que eu era feliz demais pra quem trabalhava como professora em escola pública. A observação veio de uma outra professora. Na ocasião, ela estava responsável por organizar o quadro de horário e os tempos de aula de todos os professores. Naquele ano, eu conseguia cumprir toda minha carga horária em três dias por semana. No entanto, após o observado, fui colocada para trabalhar cinco dias por semana de 7h às 17h. A punição era passar mais tempo na escola. Repleta de tempos vagos, aproveitei para conhecer melhor meu local de trabalho. Foi assim que eu aprendi a observar alunos, funcionários e todas as vidas que compunham uma unidade escolar. Ali nasceu uma companhia de teatro com os alunos do 6° ano, fruto de tempos vagos preenchidos com poemas e canções.

Na tentativa de punir afetos, recorreram ao tempo. Porém, na seara de Iroko, o tempo não é castigo. Tempo é força. Iroko é a própria representação da dimensão do tempo, pouco conhecido dos seres vivos e mortos, nascidos ou por nascer. Guardião da ancestralidade, Iroko rege os tempos e fortalece os vínculos entre o passado e o presente. Iroko é a primeira árvore que se fez plantar na Terra. Para os que descendem dos bantos, equivale ao Inquice Kitembu: o vento transformador e a árvore o corpo do tempo.

Volto à sala de aula em outros tempos, volto com uma comunidade aquilombada, prenha de seres e sonhos. São tempos de dança. Tempos de afetos largos. Afetos acolhidos. Vejo na Escola Municipal Professor Escragnólle Dória que, aos poucos, crianças, funcionários, professores e equipe diretiva se permitem entrar nessa nossa dança Selvagem.  Ousamos despertar memórias guardadas pelo tempo. Estamos escrevendo bilhetes ao vento transformador; a pedreira onde se localiza a escola já foi conhecida como o “Morro da Ventania”. Através da arte, criamos diálogos sensíveis na tentativa de acordar nos seres urbanizados que somos a natureza que também somos.

Nesse universo que se chama escola, minha comunidade Selvagem dança expandindo vida. Afetando e sendo afetada. Minha comunidade me respalda.

“Enquanto o universo se expande, o amor aglutina.”²

Foto: Veronica Pinheiro

 

 

NOTAS:
1 e 2 Caderno Selvagem – Flecha 6, Tempo e amor
https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2023/10/CADERNO49_FLECHA_6.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=PeMBCABxXCQ&t=620s&ab_channel=SELVAGEMciclodeestudossobreavida

26/03/2024

“NA FLORESTA, EU CONSIGO FECHAR OS OLHOS” – por Veronica Pinheiro

 

Desenho colorido por Manuella 10 anos

 

Oficina 1 – O sol e floresta

Quando conectamos os seres urbanos que somos com a natureza que também somos, pegamos o caminho de volta pra casa. Voltar é um movimento tão importante quanto ir. É comum na educação falarmos de “progresso”, “avanço” e “desenvolvimento”. Parece que a vida é um movimento só de ida.


“Investir no seu desenvolvimento, com um olhar atento para o processo de aprendizagem de todo e de cada aluno é fundamental para construir trajetórias de avanço”¹. Desenvolver para avançar, Secretaria de Educação Carioca.


Numa proposta contracolonial de ensino, dizemos que desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Afirmamos que nosso caminho é de envolvimentos

Na busca de práticas de envolvimento, nossas oficinas de Aprendizagens Vivas evocam saberes e fazeres presentes no cotidiano e na memória. Entendemos que a corporeidade é o lugar de registros e agência, onde se articulam e se transmitem mundos. Pensamos em oficinas sinestésicas (sons, aromas, texturas, sabores e saberes), que, a partir da expressão artística, buscam possibilitar um espaço de envolvimento, criatividade e despertamento de memórias. 

De onde venho, dizem que arte é a conversa das almas; por isso, cantamos enquanto trabalhamos e dançamos enquanto lutamos. A arte e sua potência de convocação de um corpo coletivo pode, pela liberação dos sentidos, romper espaço e tempo. Romper espaço e tempo na tentativa de conectar seres urbanizados que somos com a natureza que também somos. 

Nossa primeira oficina na escola aconteceu em dia de operação policial na comunidade. Fazenda Botafogo é uma região conhecida pelos altos índices de roubos de cargas e tráfico  de drogas e animais silvestres. Romper com tempo e espaço era tudo o que eu queria naquele dia 14 de março. Começamos falando do sol e da selva. No dia anterior, nós tínhamos andado pela parte de trás do quintal da escola para ficar embaixo das árvores e ver de onde vinha a argila. Muitos não sabiam o que era argila, vários não sabiam do que era feita a argila. Ryan explica pra turma: 

– Argila é a massinha de terra.

Distribuídas argilas de muitas cores aos alunos, pedi que eles ouvissem a história com a argila nas mãos e que tentassem modelar com os olhos fechados. As mãos precisariam seguir o que a música falava. A oficina foi realizada com turmas do 2° ano do ensino fundamental (crianças com 7 anos de idade), as mesmas turmas que apresentam dificuldades em sentar para ouvir minhas aulas. 

Duas semanas antes, eu havia tentado uma atividade que pedia para que fechassem os olhos e quase nenhuma criança da turma conseguira; o incômodo entre elas foi tamanho que pesquisei sobre o tal medo do olho fechado. “Nictofobia, medo irracional do escuro”. No caso das crianças da escola, o medo do escuro não é irracional; desde pequenos são ensinados a estar atentos e vigilantes. Os perigos são reais.

No dia da oficina, no entanto, sentados e com a argila nas mãos, caminhávamos em pensamento pela floresta. Enquanto as almas conversavam, ouvi a seguinte frase: 

– Na floresta, eu consigo fechar os olhos. 

Depois disso, não lembro de muita coisa.

Foto: Professor Wagner Clayton

 

¹Coordenadoria de Ensino Fundamental Habilidades Curriculares 1º Bimestre 2024 Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura do Rio de Janeiro

19/03/2024

APAGA QUE TÁ FEIO! – por Veronica Pinheiro


Sala de leitura, livro 3

Leia os trechos a seguir em voz alta:

“E não era muito inteligente também. Ele tinha construído a casa de palha. Dá para acreditar? Quero dizer, quem tem a cabeça no lugar não constrói uma casa de palha.”

“Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

“Esse era um pouco mais esperto, mas não muito. Tinha construído a casa com lenha.”

“Então fui até a casa do próximo vizinho. Esse sujeito era irmão do Primeiro e do Segundo Porquinho. Devia ser o crânio da família. A casa dele era de tijolos.”¹


Será que a história dos três porquinhos ocorreu daquele jeito mesmo? E se o lobo resolvesse contar a coisa toda do seu ponto de vista? 

O lobo contou e ficou pior. Publicado pela Companhia das Letrinhas, o livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, é um livro infantil que compõe o acervo das salas de leitura das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. Só na escola em que trabalho são 32 exemplares. Uma turma de Ensino Fundamental 1 tem em média 32 crianças, portanto se trata de uma obra recomendada para ser lida em classe. Além disso, em 2013 e 2014, o texto foi colocado nos cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação carioca, suprimindo alguns trechos que classificam como ignorantes os sujeitos que constroem casas de palha ou lenha. Porém, nas duas edições do material pedagógico destinadas às crianças do 4º ano do EF aparece o trecho “Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

O livro A verdadeira história dos três porquinhos deveria ser um texto para inocentar o Lobo Mau. A intenção descrita no livro é trazer ao conhecimento do leitor que o lobo foi vítima de armação. No formato de um diário, o lobo fala sua versão da estória; e fico triste que ninguém tenha sinalizado: apaga esse trecho, tá feio. Pelo contrário, o desabafo do lobo foi escrito, revisado, publicado e distribuído para crianças do ensino fundamental.

Gostaria de trazer novamente uma informação que aparece no diário da primeira semana: a Pedreira, favela onde está localizada a escola em que dou aula, possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Ao caminhar pela estrada principal do bairro vemos muitas casas de lenha. 

Foto da Estrada de Botafogo. Acervo Pessoal Lenon Suhett, Pesquisa Geografia e Comunidade Escolar
(Lenon e Veronica foram diretores de escola juntos de 2019 a 2021)

A verdadeira história dos três porquinhos fere diretamente as crianças, a comunidade e as populações tradicionais que, manifestando abundância, conhecimentos ancestrais e relação com a terra, constroem suas casas com palha, lenha e terra. 

Carter G. Woodson fala que o sistema educacional eurocentrado está a serviço da deseducação do negro estadunidense e convoca a população negra a desenvolver e executar um programa próprio. Ler o diário de um lobo me fez lembrar do professor Woodson e pensar que precisamos de práticas educacionais decoloniais efetivas e não instagramáveis. 

Foto de casa na Aldeia Guarani Rio Silveira. Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

Ao longo do trimestre, vamos construir nossa casinha com bambu, palha e argila. As crianças precisam saber que o que o lobo chama de “pouco inteligente” chamamos de conhecimento tradicional, bioconstrução, e que é preciso saber muita coisa para se levantar uma casa sem comprar nada. Povos indígenas e quilombolas conhecem muito sobre solo, plantas, sabem onde o sol nasce e onde fica a lua em relação à casa construída; e tudo isso é sobre relacionamento. Recontaremos histórias, ativaremos fazeres, saberes e memórias.

Que o sol nos ajude nessa caminhada. 

O lobo já deixou escrito o que ele pensa. Não esperemos nada dele.

Casa no quilombo São José. O quilombo São José existe há cerca de 150 anos e está localizado na cidade de Valença (RJ).
É uma comunidade de descendentes de escravos que vieram da Angola e do Congo, atualmente cerca de 200 quilombolas
moram no local e suas casas são feitas de adobe, pau-a-pique e telhado de palha.
Foto: Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

 

¹SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.

12/03/2024

AQUELA TIA ALI VAI CONVERSAR COM VOCÊ – por Veronica Pinheiro

 

Massinha: Pérola, 06 anos


Na primeira semana de aula, minha função era acolher os que choravam. Achei graça. Depois entendi o tamanho da responsabilidade. Meus pequenos companheiros falavam de uma tal dor na barriga e, além das lágrimas, traziam nos olhos o desamparo. 

Ao recebê-los, eu dizia que ficaria ali o tempo que fosse necessário. Perguntava onde o medo estava. E as mãozinhas iam direto para a barriga. É fome? Para alívio do meu coração, as respostas foram todas negativas. Surgia então a última pergunta: eu acho que vi medo nos seus olhos; você tem medo de quê?

De maneira geral, o processo de escolarização desterritorializa dentro do território. Deixa a identidade da criança em segundo plano, determina o que é importante ou não para se saber, determina o que comer, como se vestir, distância o sagrado e impõe novos modos de vida. O tal do conhecimento universal, os conhecimentos básicos e o ensino fundamental norteiam os currículos. Aos poucos, um indivíduo vira uma classe; aos poucos, os corpos são docilizados. E quando menos esperamos… todos os desenhos são pintados dentro da linha.

São tantos os complicadores sociais que a escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana, invadindo aldeias, quilombos e periferias como braço do Estado. A escola apresenta o mundo às crianças. E para muitos, em muitos lugares, é a única instituição habilitada para transmitir conhecimento. No entanto, se existe um pensamento que norteia, se o mesmo está a serviço do colonialismo para sujeição dos sujeitos e adormecimento das memórias… deve haver um pensamento que suleia.

Sugiro que busquemos sulear os modos de se estar na escola. Criemos ambientes seguros para professores e crianças pintarem fora das linhas que contornam os desenhos. Aceitemos o bagunceiro e seu corpo insubmisso. Penso que, durante o processo de suleamento, as memórias de vida e princípios de sustentação dos territórios serão despertados. Sulear é pluriversalizar os modos de existir e se relacionar com a vida. 

De certa forma, aquelas crianças, que choraram na primeira semana de aula, sabiam que precisariam deixar, além da casa, um tanto de si pra fora dos muros da escola. Sei que alguém vai dizer: Mas algumas crianças vão sorrindo! É, eu sei, e essas me preocupam mais.

05/03/2024

A CAMINHO DA PEDREIRA – por Veronica Pinheiro

 

Chegamos à Pedreira. Um complexo com o menor IDH da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Chegamos ao antigo Morro da Ventania, onde o vento corria solto e falava alto. Dizem que quando o vento assobiava na Pedreira, nada mais se ouvia. O Morro da Pedreira está localizado no Bairro de Fazenda Botafogo, entre Pavuna, Costa Barros e Acari. Curiosamente, o vento não fala mais naquele lugar. Os escombros de uma antiga senzala, um cemitério de escravos, alguns troncos de tortura e uma pedreira desativada são as camadas mais recentes sob o solo desse caminho que começamos a trilhar. 

Uma antiga linha de trem cortava a mata densa da fazenda Botafogo. O trem expresso transportava, na década de 1970, pessoas à procura de trabalho e de um novo lar. Estas histórias ainda são ouvidas no território: “Cheguei na Pedreira em 04 de setembro de 1970. Até aqui, eu morei em outros lugares. Vim do Espírito Santo, mas sou de Minas Gerais. Vim com marido e seis filhos”, diz dona Geralda, uma das primeiras moradoras do complexo da Pedreira.

Mapa da Pedreira – João, 6 anos

O trem transformou o lugar onde o vento cantava numa intersecção de corpos-territórios. Corpos em trânsito confluíram, se fortaleceram e construíram uma comunidade. “Quando a gente confluencia, não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende”, diz Nego Bispo em seu livro A terra dá, a terra quer (Ubu Editora, 2023). A confluência é uma força que amplia. Esta força trouxe o Selvagem até aqui. Uma confluência solar: Sol, vento, pedreira, memórias guardadas na terra e trazida nos corpos. A corporeidade é um lugar de registros e agência, nela se articulam e se transmitem mundos.  

Nosso caminho na Pedreira é junto à Escola Municipal Professor Escragnolle Dória, para nós, Casa das Crianças. Acreditamos na confluência dos corpos –  discentes, docentes, plantas, cores, vento, Sol. Em 2024, iniciamos um percurso sobre aprendizagens vivas dentro de uma escola. A sala de leituras da escola será nosso núcleo de irradiação Selvagem. Lá receberemos 439 crianças por semana e 19 professores por mês. Serão 200 dias letivos; 8 oficinas de artes (para crianças e professores) e um grande encontro festivo no final do ano. Na mediação desse movimento, estarei como professora das rodas de leituras e como coordenadora das atividades de artes. Em 10 dias de aula, já passamos por tantas coisas: de medo de bate-bola no bailinho de carnaval a medo de bala perdida durante o turno escolar. Já lemos 2 livros, choramos, sorrimos e brincamos também.

Nesse percurso Selvagem, compartilharemos com crianças e professores reflexões para a construção de uma escola viva. Compartilhamos uma outra forma de ser e estar no mundo, lembrando que a vida e o bem viver devem fazer parte do cotidiano escolar. Não estamos a serviço da educação. Para além de cumprir uma diretriz nacional¹, subimos a pedreira  ativando memórias, saberes e fazeres. Um percurso solar para sentir, ouvir, criar e brincar. Seguiremos por aqui semeando palavras, mudas e mundos. Guiados pelos ventos, estamos sob a luz do Sol, a serviço da vida.

 

¹ A Lei nº 11.645, de 10 março de 2008 torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores, as licenciaturas.

20/06/2024

A FORÇA DAS MONTANHAS – por Cris Takuá

 

Foto: Carlos Papá

 

Avózinha montanha

A força das pedras 

Em meio à imersão da Espagiria 

Muito profundos os ensinamentos

trazidos de tempos muito antigos 

A cura é um delicado diálogo

Com os elementos 

Com todos seres 

Que nos possibilita a transformação 

E tece laços de animação 

Para o fortalecimento das crianças 

 dos Territórios 

E o acordamento das memórias 

Viva viva as Escolas Vivas 

Viva os laboratórios vivos 

Das Casas de Essências.

 

Foto: Ju Nabuco

Caminhando por entre montanhas e vales, chegamos em São Gonçalo do Rio das Pedras em Minas Gerais, terra sagrada de muitas pedras e histórias. Durante três dias acompanhei os coordenadores das Escolas Vivas Guarani e Tukano-Desana-Tuyuka, e três jovens que foram junto. Falamos de História, Filosofia, Alquimia e Espagiria (a arte de produzir remédios, separar e unir, extrair e purificar através da sensível arte de conhecer a matéria dos seres).

Dialogamos sobre conhecimentos profundos e, através da troca entre o grupo reunido, sentimos que o conhecimento, quando entra dentro da gente, ele fixa e não sai mais. A partir das disposição em escutar com atenção nos permitimos  sentir e perceber o que nos rodeia. Tudo o que desce do céu e sobe da Terra transmuta e nos orienta nessa caminhada de estudos e aprofundamentos na busca do Bem Viver.

Fotos: Ju Nabuco


O sonho das Escolas Vivas é ativar, animar e criar teias de afetos e cuidados, onde possamos caminhar cuidando de quem cuida e incentivar a semeadura dos saberes. Quando plantamos um jardim dentro nós a gente assume a responsabilidade de ser um agente multiplicador e capaz de ultrapassar a barreira do visível e a enxergar e dialogar com os seres invisíveis.

Um grande amante das plantas foi Paracelso, filósofo e médico do século XVI. Ele dizia que os humanos começam a adoecer quando se afastam de Deus, a natureza. Ele dizia que:

Quem nada conhece, nada ama.

Quem nada pode fazer, nada compreende. Quem nada compreende, nada vale. Mas quem compreende também ama, observa, vê…

Quanto mais conhecimento houver inerente numa coisa,

Tanto maior o amor…

Aquele que imagina que todos os frutos amadurecem ao mesmo tempo, como as cerejas, nada sabe a respeito das uvas.”

Assim passamos três dias dialogando, colhendo plantas e preparando remedinhos e, nesses momentos tão sensíveis, aprendemos que a força do céu que está na planta desperta a força que habita em nós. Mas nos processos criativos de transformação da matéria precisamos de atenção e concentração. Pois a dispersão pela fala demasiada e a desatenção provocam o desperdício do tempo.

Foto: Ju Nabuco

Dessa forma pude sentir e compreender a profunda relação com os elementos fogo, terra, água e ar e com os seres elementais: vegetais, animais, minerais e universais. Numa profunda conexão de tempos ancestrais onde filosofias Guarani, Tukano, Maxakali e lá do Egito se cruzaram e dialogaram numa profundeza encantadora.

Os jovens se inspiraram, cantaram, choraram e poetizaram suas percepções e inspirações de seguir caminhando, fortalecendo as Escolas Vivas e o sonho de alcançar a boa e bela forma de ser e estar em seus territórios.

Foto: Ju Nabuco

13/06/2024

PALAVRAS SOPRADAS – por Cris Takuá

 

Arte de Juliana Russo

 

Boas e belas palavras 

Massageiam a alma atenta.

Pensamentos invadem de magia meu ser

Em busca de entendimento

Dos mistérios das ciências da floresta.

As palavras como um sopro

Saem ecoando nossos pensamentos,

Voam e bailam no ar

Em busca dos conhecimentos, 

Mas nem sempre se fazem 

Claras e entendíveis 

Aos seres que as recebem,

Podendo causar arrepio ou 

Profunda emoção.

Como é difícil a suave comunicação

Em um mundo mergulhado em informação!

As palavras curam,

Alegram 

E também machucam

Se mal colocadas!

Precisamos cuidar de nossas palavras 

Para que os sentimentos 

Não perturbem nossos sonhos

E nosso caminhar.

Prossigo minha pesquisa 

Ora sonhando 

Ora acordada

Mirando seres sagrados

E buscando sabedoria e tranquilidade

Para seguir poetizando meu silêncio

Múltiplo e profuso.

A certeza a cada novo amanhecer 

De mais harmonia 

De mais alegria 

Entre os seres 

Entre o visível e o invisível

Entre o indivisível que habita 

Na terra e no mar. 

É preciso calar, 

É preciso amar,

É preciso sentir mais,

É preciso ser a gente mesmo

A cada instante, 

A cada suspiro de nosso viver.

Vai caminhante antes do dia nascer,

Vai caminhante antes dos sonhos 

A noite tecer…

 

Arte de Fabiano Kuaray

 

Para os humanos, a palavra, esse código ancestral comunica pensamentos e constrói pontes entre os mundos. Há muitos e muitos séculos, cantamos, rezamos, pronunciamos e sopramos mensagens de transformação.

Saber se colocar, entrar e sair de todos os lugares é uma ética para se dispor a conviver com a diversidade de seres que pensam e anseiam alcançar a sensível sabedoria de sentir sua própria sombra.

Disputas ideológicas muitas vezes causam atritos e podem afastar a energia que construímos e nomeamos como amizade, respeito e troca de conhecimento.

Refazer ou reconstruir a teia das relações nos exige uma capacidade de compreender a imperfeição que habita em nossa humanidade, tão machucada pelas contradições do dia a dia.

Quando compreendermos que o amor é uma partícula invisível que une e nos faz enxergar a nós mesmos, entenderemos que nada, ninguém e nenhuma palavra mal soprada poderá acabar com uma amizade verdadeira.

06/06/2024

ANDAR COM CONSCIÊNCIA – por Cris Takuá

 

Arte: Fabiano Kuaray    

     

     Ero Tori  (Façam surgir a consciência) 

     Ero Tori Tori 

     Ero Ta kua (Façam alcançar o som do conhecimento )

    Ero Ta kua ta kua….

 

Quando sentimos os ensinamentos transmitidos pelos mestres e mestras do saber, percebemos que somos direcionados a aprender a nos colocar no mundo, na relação com tudo e com todos que nos rodeiam. Todos os seres possuem uma profunda interação com a grande teia da vida, desde que desabrocham nesse mundo. Nós, humanos, somos seres imperfeitos, mas capazes de uma transformação possível para alcançar o Arandu, a sensível sabedoria de sentir a nossa própria sombra. Mas, para isso, temos que estar dispostos a andar com consciência, andar sentindo o som do conhecimento, que nos possibilita enxergar para além das aparências. 

As crianças são seres sensíveis, observam cada sentido das coisas. Tenho observado em muitos momentos as crianças questionando os adultos por suas atitudes contraditórias. Alcançar e andar com consciência compreende superar a contradição nas ações diárias. Sinto e vejo abelhas, formigas, cachorros, galinhas e tartarugas com sensibilidades e ações conscientes muito mais equilibradas do que a de muitos humanos.

O grande mistério da vida está em atravessar o portal do que os nossos olhos nos possibilitam ver e mergulhar no infinito mundo das redes de conexões dos saberes e fazeres que são os códigos de acesso ao entendimento. Durante os muitos anos em que dei aula numa escola, insistentemente eu sempre cutucava meus alunos para sentirem e estarem atentos à consciência ao caminhar, ao falar e ao se manifestar no mundo. Nem sempre eu era compreendida por eles ou por algumas lideranças, que sempre achavam que eu estava querendo falar de política. Uai? Política?

O que será a política do nosso próprio terreiro senão a de respeitar todas as formas de vida? As montanhas, os rios, as formigas e as cotias. Semear a micropolítica é algo muito encantado, porém desafiador. São séculos de deterioração do Teko Porã, a boa e bela maneira de Ser e Estar num território. Andar com consciência compreende se permitir a praticar essa delicada e sofisticada tecnologia ancestral, o Bem Viver.

Foto: Anna Dantes

Desde que saí/fui tirada da sala de aula formal, curiosamente, por todos os lugares em que tenho caminhado, me encontro com crianças, em oficinas, rodas de conversa e vivências. E escutando e percebendo o modo como elas concebem a relação das coisas, me surpreendo com a capacidade que as crianças têm de andar com consciência, de sentir o som de tudo que as rodeia. 

Criança deveria ser liderança nesse mundo de tantos humanos desmemorizados e sem consciência!

Séculos se passaram e a nossa humanidade escravizou plantas, peixes e montanhas em nome de uma razão delirante, que passou a julgar e comprar/descartar tudo que não corresponde ao padrão estabelecido.  Preocupados com o desenvolvimento, a ordem e o progresso, adultos humanos criam leis e fazem guerras. 

Enquanto isso, crianças em todo o mundo estão a observar esse descompasso e a se posicionar perante a ética que permeia nossos envolvimentos com a vida e não o desenvolvimento dos seres viventes.

Qual a ética que envolve suas relações no dia a dia?

Para andar com consciência e alcançar o som do entendimento das coisas devemos silenciar e escutar mais as crianças.

Foto: Vhera Poty

30/05/2024

AVÓZINHA DO MUNDO: ARAUCÁRIA – por Cris Takuá

 

 

Hoje sonhei com a avózinha das florestas

A grandiosa mestra

Conhecedora dos sábios segredos 

Da ciência das ciências dos mistérios.

Em poucas palavras ela foi me tecendo

Pensamentos, me revelando caminhos 

Me orientando e mostrando a

Incrível delicadeza que habita

Na simplicidade das coisas.

Meu espírito voou e percorreu

Vales e montanhas 

Bailou, rodopiou e sentiu

A profunda liberdade que reside 

Na morada sagrada dos espíritos secretos. 

Não há saber maior que o Amor!

A cada dia nos surpreendemos 

Com as revelações que surgem 

No novo amanhecer 

Na noite fria mergulhei em busca de entendimento

E pra minha surpresa, 

A grande mestra lá estava 

Em seu trono sagrado sentada 

A me esperar

Nas longas caudas de uma Araucária 

Com sua flauta e seu Maracá 

Só me aguardando pra junto a ela

Prosseguir com a cantiga 

E soprar poesias para os quatro cantos

A fim de colorir e massagear

Os seres dessa Terra!

Cansados e sofridos 

Pela falta de entendimento.

Oh seres caminhantes, despertai-vos

Desse sono profundo 

E sentis a saborosa magia 

Que mora no silêncio cantante

Dos pensamentos seus!!!!

Foto: Carlos Papa Tekoa Yvyty Porã, RS

Há milhares e milhares de tempos surgiu esse ser sagrado Kuri, como chamam os Guarani a araucária. Essa árvore tão antiga é uma avózinha vegetal do mundo. Registros arqueológicos mostram sua existência e resistência há muitos séculos. Nesses tempos todos, as araucárias já presenciaram muita luta, resistência e também muita beleza; uma memória ativa que, lá do alto de suas verdes copas, presenciam.

Nas últimas semanas estamos presenciando no Rio Grande do Sul um profundo desequilíbrio atingindo a vida de seres humanos e não humanos. O transbordamento do Rio Guaíba, do Rio Taquari e de tantos rios que, machucados pelas duras ações humanas, não aguentaram a pressão da chuva grande e inundaram, destruíram e deixaram seu recado.

Os Ija kuery, guardiões de tudo que habita nessa Terra, estão cansados dos seres humanos, imperfeitos e desajustados. Há muito tempo estão a observar as pegadas tão pesadas do agronegócio, da mineração, do desamor e do desrespeito para com a diversidade das formas de vida.

Gravura a bico de pena por Percy Lau, Arequipa, 1903
Rio de Janeiro, 1972. Fonte: Tipos e Aspectos do Brasil IBGE 1966

O marco temporal, essa tese anticonstitucional, que permite a revisão e o abuso das terras indígenas já demarcadas, é o ápice da ignorância e do abuso humano, que não consegue enxergar que sem floresta viva não haverá vida possível. A luta e o rezo constantes para garantir e proteger os territórios ancestrais dos povos indígenas são justamente para que todas as formas de vida  possam viver: araucárias, cotias, pacas, abelhas, ametistas, montanhas, rios e peixes.

Há duas noites, concentrada na Opy’i, casa de reza, em diálogo e estudo com plantas professoras, o espírito da Kuri veio falar comigo. Ela era bem velha e grande. Me disse calmamente que está lá do alto assistindo a toda a confusão e sofrimento que está acontecendo. Viu muitos parentes vegetais, animais morrendo afogados, arrastados pela lama, pela água brava e nada pôde fazer. Ela somente assistiu, silenciosamente, com seus bracinhos como se estivessem em forma de saudação, que reverencia todos os dias o sol, a lua e a vida, pedindo força e proteção. Ela ficou um tempo me mostrando as grandes florestas que já existiram de araucárias e que hoje estão reduzidas a algumas. Me mostrou também a força do petyngua, cachimbo Guarani feito do nó do pinho dela, e o quanto cada um que o carrega consigo deve respeitá-lo. Me recordou imagens muito belas de mulheres, preparando farinha de pinhão com seus pilões, cenas antigas onde tudo era profundamente interligado. Aos poucos as imagens e a voz dela foram desaparecendo e fui aos poucos voltando e, ao olhar para o fogo, que estava intensamente vivo, senti de me levantar e compartilhar com os jovens que comigo estavam aquela experiência mágica e muito proveitosa que havia sentido, presenciado e aprendido mergulhada em profundas mirações. 

Pintura: Jose Vera, RS

Ao amanhecer do dia refletindo sobre toda a noite de estudos e aprendizados, me recordei de passagens do livro a “Queda do Céu” de Davi Kopenawa….

“No começo a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá eram tão poucos quanto nós agora na floresta. Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. Seus antepassados mais sábios, a quem Omama criou e a quem deu suas palavras, morreram. Depois disso, seus filhos e netos tiveram muitos filhos. Começaram a rejeitar os dizeres de seus antigos como se fossem mentiras e foram aos poucos se esquecendo deles. Derrubaram toda a floresta de sua terra para fazer roças cada vez maiores. Omama tinha ensinado a seus pais o uso de algumas ferramentas metálicas. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido embaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grande quantidade. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso os fez esquecer a beleza da floresta. Pensaram: “Nossas mãos são mesmo habilidosas para fazer coisas! Só nós somos tão engenhosos! Somos mesmo o povo da mercadoria! Podemos ficar cada vez mais numerosos sem nunca passar necessidade! Vamos criar também peles de papel para trocar!”. Então fizeram o papel do dinheiro proliferar por toda parte, assim como as panelas e as caixas de metal, os facões e os machados, facas e tesouras, motores e rádios, espingardas, roupas e telhas de metal. Eles também capturaram a luz dos raios que caem sobre a terra. Ficaram muito satisfeitos consigo mesmos. Visitando uns aos outros em suas cidades, todos os brancos acabaram por imitar o mesmo jeito. E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se espalharam por toda a terra dos seus ancestrais. É o meu pensamento. Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite.”

(Davi Kopenawa, “Paixão pela mercadoria”, em A Queda do Céu)

Pintura rupestre de Araucária, Pirai do Sul, PR

23/05/2024

CORPO – CASA – TERRITÓRIO – por Cris Takuá

 

Arte de Cris Takuá

 

Nosso corpo é território

É casa, é morada ancestral

Nossa casa é a floresta

E através dela atravessamos

um cristalino portal

Nosso território é beira do rio,

É montanha e manguezal

Somos o emaranhado de uma teia

de colorido natural.

A floresta pulsa 

e os seres sagrados que nela habitam

estão a nos observar em meio ao vendaval

Respeitar os espíritos da floresta

Deveria ser o princípio inicial

das relações de transmissão de saberes 

e conhecimentos 

desse nosso mundo atual.

Arte de Kaue Karai Tataendy

 

Tecendo mundos vamos aprendendo a nos relacionar com os espaços que nos circundam. Desde a primeira morada que nos acolhe no útero de nossas mães começamos a perceber e a sentir a dimensão dos muitos territórios que habitamos. Nessa grande teia de relações somos concebidos com modos de pensar e existir conectados com uma memória ancestral, um acervo de saberes e fazeres que habita nossos corpos e existe em muitas camadas. O corpo, casa, território, esse mundo de conexões profundas está passando por modificações significativas devido ao processo de mecanização das relações. A inteligência artificial, cada vez mais presente na vida e nas convivências humanas, tem feito com que as ferramentas ancestrais de comunicação, como a telepatia, a intuição e os sonhos fiquem silenciados no dia a dia de muitos seres.

A nossa grande morada, a nossa casa sagrada, é a floresta. E ela não está presente somente dentro da nossa casa, mas nas cachoeiras, nas montanhas, em todos os espaços onde se constitui o tekoa, que é o território onde se vive, onde se planta, onde se cria, onde se brinca, onde se é possível conviver de uma forma coletiva, de uma forma verdadeira. Sinto que todo o nosso corpo, toda a forma como a gente se coloca no mundo, estão sendo chamados para uma transformação, um redirecionamento. Independente das nossas origens, das nossas posições políticas, filosóficas ou epistemológicas, precisamos ter um compromisso ético com a vida e, assim, conseguir equilibrar o sopro de amor que sai das nossas palavras com o compasso dos nossos passos ao caminhar. Esse é o grande desafio que temos que superar para conseguirmos avançar, com coerência e serenidade, sem sermos constantemente contraditórios nas nossas ações.

Arte de Jera Mirim

 

Ao longo da história, a humanidade se escorou em uma razão que não coloca os outros seres no diálogo. Os humanos criaram, inventaram, modificaram, destruíram o equilíbrio da natureza. E esqueceram de perceber que as formigas, as abelhas, o vento, as montanhas, os rios e todos os seres que habitam aqui neste planeta, seres visíveis e invisíveis, seres, animais, seres vegetais, seres minerais, eles também possuem uma coletividade, uma dinâmica de vida que pulsa dentro desse território que é o grande planeta Terra. Mas nós, humanos, insistimos em querer ser maiores, em querer ser mais pensantes e donos desse mundo todo. E, em nome disso, causamos todo desequilíbrio nessa humanidade que a gente julga e pensa ser.

Não tem como nos dissociarmos da natureza, porque nós somos a natureza e tudo está interligado. Nenhum humano consegue viver e sobreviver se não tiver água para beber, se não tiver um ar puro para respirar. Todo o processo capitalista e colonizador, em muitos lugares no mundo, impôs um modo de ver e pensar o tempo, e isso afetou os processos de transmissão de conhecimento. Há uma monocultura que rege os alimentos, que rege as epistemologias e os processos de cura e doença. Isso precisa ser compreendido de um modo que os indivíduos percebam que nós não somos nada além de um pequeno grão nessa grande teia que relaciona a vida. Quando penso em casa, corpo e território, percebo o quanto nós, humanos, somos dotados de um grande potencial que é a nossa própria mente. O nosso pensamento é capaz de muito desenvolvimento e criatividade, que podemos nós mesmos nos proporcionar ou nos direcionar a aprender.

As formigas, as abelhas e as plantas são seres muito inteligentes, assim como todos os seres minerais. Eles pulsam a cada dia, se transformam e se recompõem. E nós, humanos, estamos constantemente nos dividindo por classes, etnias, cor de pele, classe social. Mas somos todos humanos e fomos colocados todos neste mesmo barco, que é essa morada sagrada, que é essa casa-território onde habitamos e compartilhamos de lutas e sonhos, de expectativas e querências a cada dia.  Se habituar a isso e enxergar de uma forma clara e plena é a missão que cada um de nós carrega nessa morada territorial. Com as nossas sensibilidades, com nossas especificidades culturais, espirituais, somos capazes de alcançar essa grande coletividade que habita a casa planeta Terra, e assim reativar o cuidado e a atenção com o nosso próprio corpo, com a nossa mente e espírito.

Arte de Alexandre Wera Popygua

16/05/2024

ENTRE RIOS, MONTANHAS E CRIANÇAS – por Cris Takuá

 

Arte coletiva.
Foto: Cris Takuá

 

Vida Rios

“ Os Rios são veias visíveis 

Existem os Rios subterrâneos

e os Rios voadores.

Rios como flechas da memória

Neurotransmissores 

Rios Micélios Neurônios

Os Rios não são Rios, somos nós

São tudo.

São evidências do corpo da Terra

Vidências trazem a visão.

A pele da Terra é o céu.”

*** Anna Dantes, Puerto Berrio, 

 Colômbia- maio/2024 ***

 

Residência “Actuar por lo vivo” sobre a bacia do rio Magddalena. Puerto Berio, 3 de maio de 2024.
Foto: Digo Fiães

 

Os rios são as veias da Terra, são espíritos que caminham serpenteando, deslizando entre pedras e águas cristalinas. Brotam de montanhas antigas e acariciam nossas peles com a possibilidade da vida. Pelos quatro cantos do mundo e ao longo da história, humanos não souberam respeitar a existência dos rios. Mudaram seus percursos, contaminaram seus corpos com dejetos de mineração, agrotóxicos e lixo – muito lixo.

Hoje, crianças estão a refletir e, mais do que isso, estão sentindo as duras consequências dos hematomas nas camadas profundas da Terra. Através de sua sensibilidade estão mediando os conflitos entre os mundos e entre os tempos, com o objetivo de regenerar os vínculos com os seus territórios ancestrais.

Um caminho que vem se desenhando possível é sentir e pensar o rio, diante de todas as suas feridas e complexidades. E assim cantar para o Rio, conversar com ele e escutar suas profundas mensagens. Esses são desafios que seres sensíveis estão conseguindo alcançar.

 

Fotos: Lina Cuartas e Cris Takuá

 

Caminhando nas margens do Rio Madalena em Puerto Berrio, na Colômbia, no início de maio, recordei memórias antigas de crianças brincando e plantinhas brotando nas margens dos rios do mundo. Me conectei com o sagrado Guaíba lá no Rio Grande do Sul, cansado, machucado com toda a confusão humana, e algo ressoou em mim em forma de canção….

 

                    Yxyry Porã Mbaraete 

                    Yxyry Porã Mbaraete 

                     Yxyry reo Para Guaxu aguã.

                     Yxyry reo Para Guaxu aguã.

                        💦💧🩵💦💧

 

Um canto para o belo Rio Madalena, Guaíba, Taquari, Rio Doce e Paraopeba.

As montanhas são como avózinhas – nos abraçam e nos protegem. Muitas águas brotam do alto das montanhas, por isso elas têm profundas conexões com os rios que deságuam no mar.

São caminhos!

Rios, Montanhas e Crianças 

Seres que nos ensinam.

Precisamos escutar mais 

E respeitar a vida desses seres tão sagrados!

 

Foto: Maria Inês

09/05/2024

TABACO, MESTRE DO SABER – por Cris Takuá

 

Foto: Carlos Papá

 

Curandeiro ancestral

O sopro do cachimbo

O sopro do rapé

O sopro do amor

Das palavras

Das canções que 

Explodem do universo 

Interior das inquietações íntimas

De nosso Ser…

O sopro limpa

Alivia e dissipa

As mágoas e as ansiedades.

A maldade existe!

Mas não é nada comparada 

À força que habita na fumaça 

Das medicinas sagradas

Que através de seu sopro 

A tudo purifica e transforma 

O sopro que como um impulso

Sai em forma de palavras em movimento 

Ecoa pelos quatro cantos desse universo

Em profundos momentos .

É necessário cantar mais

Proferir mais palavras de amor

É necessário soprar cura a tudo e a todos 

A ilusão persiste em perseguir 

A matéria humana  

Mas o verdadeiro Amor habita 

Na sensível sabedoria 

Das pequenas coisas

Dos pequenos atos 

Das profundas ensenhanças

Dos sonhos e das crianças

Que revelam a cada novo amanhecer 

A extraordinária beleza 

De ser e existir plenamente.

O sopro me inundou a alma

Nessa noite silenciosa e fria

E através do sopro 

Vi sua bela forma serena e tranquila 

Me mostrando os caminhos 

Me revelando os mistérios

Me apurando os sentidos 

O sopro me aliviou

Me curou

E alegrou

E me fez poetizar ao amanhecer 

As cantigas do bem viver!!!!!

(Sopro de palavras recebidas num amanhecer após um ritual de cura com tabaco)

 

Foto: Cris Takuá

 

Há milhares e milhares de tempos em meio ao escuro surgiu a vida e todos os seres que habitam ao nosso redor. Cada ser vegetal, animal, mineral são espíritos que convivem num profundo emaranhado de saberes, como uma grande teia onde tudo está conectado. Tudo que habita na Terra tem seu guardião e dono. Os Guarani chamam de Ija, os Maxakali de Yamiyxop, os Huni Kuin de Yuxibu, os Yanomami de Xapiri. Cada povo nomeia esse ser e mantem relação de profunda comunicação no mundo espiritual.

Não respeitar esses seres pode nos levar ao adoecimento. Por isso, as crianças precisam ser ensinadas desde pequenas a pedir licença por onde caminham, saber entrar e saber sair da floresta, da cachoeira, da montanha. Respeitar esses seres espíritos significa ter boa vida em equilíbrio e saúde.

Existem algumas plantas de poder, que também são chamadas de mestras, que nos mostram os caminhos, nos colocam em diálogo com os seres espíritos e também nos curam quando afetados por algum mal espiritual.

Muitas culturas indígenas em todas as partes do mundo historicamente fazem uso do tabaco para as suas práticas de cura. Essa planta sagrada está presente em culturas ancestrais em praticamente todos os continentes. Uns a utilizam em cachimbos que, através da fumaça baforada, proporcionam uma comunicação espiritual. Outros sopram o rapé. Ela pode também ser mascada ou tomada como água de tabaco para purga, proporcionando limpezas profundas. Também tem o uso externo como cataplasma. São muitos os usos desse ser.

Ailton Krenak, no Caderno Selvagem Entrar no mundo – Conversas sobre “Plantas Mestras”, em que dialoga com Carlos Papá, diz: “Aprendi então a fazer uma coisa que ainda não ouvi ninguém falando, que é de ler o tabaco. Sei que tem gente que lê borra de café, que lê outros movimentos na água. Mas só experimentei essa coisa de ler a mensagem do tabaco dichavado, sem nenhum uso, só ali olhando para ele me mostrando coisas. Foi muito bom. É provável que outras pessoas já tenham também vivido essa experiência em outros contextos, do tabaco ser essa voz de saúde, essa imagem ativa. Não é uma coisa inerte, mas é algo vivo. É claro que quem faz o uso ritual dele, o uso cotidiano dele, tem outras experiências.”

Percebemos, no entanto, que esse ser sagrado vem sendo tratado de forma desrespeitosa pelas sociedades humanas. As crianças crescem com medo do tabaco, pois são ensinadas que ele mata, causa câncer ou problemas pulmonares. Essa afirmação é carregada de um desconhecimento do uso dessa planta, pois, para muitas culturas que fazem uso ritualístico do tabaco, ele cura.

Tomio Kikuchi, em seu livro Essência do Oriente, diz: “Segundo o princípio Único da ordem do Universo Infinito, isto é, a dialética prática Ying-Yang, fumar tabaco é classificado na categoria Yang… Deve-se ter compreendido que fumar é yanguinizar-se. O câncer sendo Yinguinização explosiva, dilatação contínua (dominado que é pela força centrífuga Ying, dilatadora) será contrariado em seu desenvolvimento pela absorção da fumaça Yang constritora. Esta pode levar a sua regressão e finalmente à reabsorção… nós podemos declarar, com toda certeza, que fumar o tabaco é sobretudo recomendado para cancerosos como para todos aqueles que desejam que fortificar sua imunidade contra o câncer.” 

Refletir sobre a profundeza dos seres plantas nessa relação íntima com nossas vidas significa mergulhar na ciência da floresta, que, ao longo de séculos, vem sendo ocultada e ignorada pela ciência capitalista e ocidental. Há um saber que rege comunicações muito sensíveis feitas através de tecnologias ancestrais, como a telepatia, a intuição e os sonhos. Os grandes rezadores e rezadoras, curandeiros e curandeiras passam tempos de suas vidas em processo de preparação para alcançar o entendimento para dialogar com as plantas professoras e possibilitar a cura aos humanos.

Ainda no diálogo Entrar no mundo, junto a Ailton Krenak, profundos pensamentos foram trazidos por Carlos Papá para que possamos sentir a delicada relação do tabaco para o povo Guarani.

O petyngua leva as mensagens diretamente do Nhanderu. E Nhanderu vai te guiar. E essa fumaça que você solta, de dentro para fora leva o pensamento, o sentimento. E a fumaça vai pairar por todo o universo. Vai se misturar com o vento. Vai se misturar com o aroma do ambiente. Com isso você vai se fortalecer cada vez mais. Mas isso você vai entender melhor quando tiver seus filhos. Através do tabaco e da fumaça vinham mais mensagens. Pela embriaguez do tabaco, eu comecei a perceber e entender os códigos da fumaça na medida que você bafora. A fumaça começou a abrir os códigos. Acabei entendendo esses códigos… E vinham as falas antigas, falas como se os grandes pajés se manifestassem. Senti uma força muito grande, me senti gigante. Não sentia mais meus pés no chão. Eu me senti… Parecia que eu tinha capacidade de voar. Assim, comecei a perceber que o petyngua é um instrumento que cura, que faz com que você entenda todos os códigos do tempo. Foi aí que também compreendi o que nós chamamos de teko axy. Teko axy quer dizer corpo imperfeito. O vento traz e leva as mensagens. A fumaça do pety, que é o tabaco, essa fumaça quando pensamos, leva o pensamento e paira para que o vento traga respostas.”

Através desses pensamentos trazidos convido a todos a se despir das camadas de formatação mental que recebemos desde criança. Que comecemos a repensar nossas relações com o escuro, com o Sol, com a chuva, o vento, o tabaco, a coca e tantos seres que desaprendemos a respeitar e com os quais podemos sim conviver de forma harmoniosa. A industrialização capturou algumas plantas mestras, cabe a cada um de nós reaprender a nos relacionar com cada uma delas.

 

Fotos: Cris Takuá

02/05/2024

TRAMA QUE TECE A VIDA – por Cris Takuá

                          Arte: Rita Huni Kuï

 

Teia da vida

Somos um emaranhado de fios

de sentimentos entrelaçados energicamente

A cada dia aprendendo

a tecer a grande teia da vida

Fia Fia Fia o Fio

Tece tece tece a mão

A base da trama 

Que colore essa canção.

Entre teias de aranhas

E profunda miração

As artes vão brotando

Fiando, tingindo e tecendo o algodão.

A floresta inspira o artista

Que medita e se inspira

Refletindo em sua bela criação

Mensagens ao mundo de respeito e união.

A arte traz a potência da cura

O eco da política em sua ampla concepção 

Criativa e transformadora.

O artista é um semeador,

Diálogo com morcegos, jiboias e aranhas 

E com seus saberes e fazeres ancestrais 

Toca a alma e descoloniza a mente 

Há séculos moldada por uma 

Monocultura do pensamento

A arte tem a possibilidade 

de metamorfosear as relações

Entre o céu e a terra

Entre o visível e o invisível

Nos mostrando outros caminhos 

Outras realidades possíveis

Num manancial intelectual e criativo 

Que habita na complexa e bela existência 

dos povos todos que resistem

com seus cantos, rezas, artes e filosofias.

A estética da floresta é múltipla

E dialoga com conhecimentos

Que não estão nos livros e nem nos museus

Vivemos uma criminalização epistêmica.

Uma violência contra as ideias 

Contra o pensar 

E isso reverbera no útero da terra 

Machucado de tanto nos abrigar 

Que saibamos despertar as lembranças 

E voltar a tecer boas e belas palavras 

E tecidos coloridos para reencantar a vida.       

 ********

Fotos: Kawa Huni Kuï

 

A tecelagem manual é uma arte que acompanha o desenvolvimento do ser humano há muitas gerações. Os diversos povos, de acordo com sua cultura, seu clima e sua região, desenvolveram o processo de tecer, fiar e tingir para produzir tecidos. Uma forma de linguagem ancestral que transmite narrativas repletas de sentidos e encantos. Para alguns povos, a aranha foi quem ensinou a tecer; para outros, a jiboia; para outros, pássaros que vão fazendo seus ninhos tecendo fibras e galhos. São ensinamentos muitas vezes passados do mundo espiritual para os humanos.

Para as mulheres Huni Kuï, o canto é parte do processo de tecelagem: durante a colheita, descaroçamento, bater e fiar das fibras de algodão, as artesãs cantam pedindo à força das aranhas para tecer rapidamente, já que, segundo sua cosmologia, o fio colhido pela aranha já saía pronto, sem a necessidade de bater ou fiar.

 

Arte: Rita Huni Kuï

 

Para que as artes indígenas continuem existindo, há a necessidade de que existam as florestas. O modo como a sociedade se desenvolveu nos faz esquecermos de quem realmente somos, não deixando de olhar para o fundo de nossa essência, para conseguir atravessar as barreiras do desconhecido. Junto a isso, a imensa fonte de informações na qual estamos mergulhados, os maus hábitos alimentares, o egoísmo, o desamor e a falta de bom senso estão desencantando a humanidade que sonhamos ser.

Um dos principais saberes que as sociedades indígenas têm e que torna seu pensamento valioso é justamente uma outra maneira de conceber a relação entre a sociedade e a natureza, entre os humanos e os não humanos, uma outra forma de conceber a relação entre a humanidade e o restante do cosmos. A existência de um equilíbrio, em que todos os seres interagem e se respeitam, não só os mais velhos, os anciãos e pajés, mas todos; jovens, crianças, formigas, abelhas, árvores, todas as formas de vida.

 

Foto: Cris Takuá

 

Para os povos indígenas, a natureza é quem dá sentido à vida. Tudo em seu equilíbrio. Como uma imensa teia, na qual tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está pra acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que com sua delicadeza e sabedoria vão nos guiando e nos ensinando como bem viver.

A arte brota de uma memória muito antiga e as tramas que se desenrolam de um processo criativo de imaginação mostram o potencial que habita no interior de cada tecelão. Entre sonhos e mirações vão se revelando formas e sinais, que refletem da natureza sua origem de criação, pulsando para a vida o sentido dessas relações.  

 

Foto: Carlos Papá

25/04/2024

NO TEMPO DAS CHUVAS – por Cris Takuá

 

Foto: Cris Takuá

 

O cheiro dos pingos na terra batida 

Anunciam a chegada das chuvas

Trazendo suaves brisas

Lembranças da infância 

De histórias vividas

O tempo, marcador das horas 

Dos momentos gravados

Sentidos na memória 

Me trazem sensações 

De infinita alegria 

Oh Terra!

Mãe dos seres animais e vegetais 

Oh vento!

Suspiro infinito do ventre do universo

Oh água !

Circula nas veias que percorrem 

os caminhos na imensidão do espaço

Oh fogo!

Sagrado mestre que a tudo consome, 

tudo transforma e aquece 

Salve as direções que nos guiam 

Aos olhos que nos orientam

E aos pés que nos sustentam

Nessa caminhada rumo ao infinito.

 

Foto: Cris Takuá

 

Cada dia que passa me animo mais a convidar os humanos a se tornarem selvagens, sentirem a delicada beleza de ser e estar em seu território em boa e bela forma. Amanhecer ouvindo o canto dos pássaros e anoitecer à beira do foguinho, contando histórias do dia que passou. A simplicidade que rodeia a vida de quem se permite ser parte da natureza é de uma grandeza muito encantadora.

O mundo acelerado do capitalismo, que transforma tudo em mercadoria, afastou a maioria dos humanos de sua essência e de sua alegria. Enquanto muitos se entorpecem de remédios para conseguir dormir, nas Tekoá, os Guarani, os Maxakali, os Ashaninka, os Huni Kuï e muitos outros parentes cantam para celebrar a noite. 

Desde criança me encanto com o cantarolar das chuvas que caem, limpando a terra e acalmando os pensamentos. No tempo das chuvas, tudo se torna alegria: o cházinho de erva cidreira, o bolinho assado de milho, as brincadeiras sem fim….

Como é bom ser selvagem!

Mas a sociedade capitalista insiste em querer nos colocar etiquetas, regrar nossas mentes para esquecermos que não tem dinheiro que paga a simplicidade. Por isso, sigo na minha rebeldia de acreditar que fazer comida no fogo da lenha, usar meu cachimbo para rezar e preparar remedinhos do mato para as crianças é acreditar num futuro mais feliz! 

Há tempos aprendi a desvirar o bucho de criança e isso é tão mágico! As faculdades de medicina não ensinam isso aos seus alunos, que buscam praticar a cura como profissão. Curar susto, lombriga desconfiada e tantos males que afetam as criancinhas é de uma beleza selvagem!

Assim, sigo dialogando com as chuvas, aprendendo a escutar os trovões e me direcionar nesse mundo de tantas belezas.

 

Foto: Cris Takuá

18/04/2024

HISTÓRIAS QUE OS LIVROS NÃO CONTAM – por Cris Takuá

 

Foto: Roberto Romero

Sueli Maxakali, artista, cineasta, liderança, avó e coordenadora da Escola Viva Maxakali, passou anos de sua vida sonhando reencontrar o seu pai Luis Angujá, como é conhecido, do povo Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Eles se separaram há mais de 40 anos, durante a Ditadura Militar. Para esse reencontro, Sueli idealizou, junto com sua irmã Maiza, o filme Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá. Esse longa-metragem documental está em processo de finalização e contou com apoio do antropólogo e amigo Roberto Romero e de Tatiane Klein, antropóloga que estuda há anos junto aos Guarani e aos Kaiowá. Foi ela quem, em 2019, nas suas caminhadas pelo estado, encontrou Luis vivendo na Tekoha Laranjeira Nhanderu e comunicou Robertinho. A partir daí organizaram a primeira ligação telefônica entre eles. Na época lembro que Tatiane Klein me contou e me enviou um vídeo de Luis muito emocionado.

A Ditadura Militar causou profundas feridas nas memórias e violentou os corpos e os territórios, provocando prisões, trabalho forçado, torturas, envenenamentos e doenças. Houve ainda a proibição da língua materna entre os povos indígenas. No relatório da Comissão Nacional da Verdade consta que mais de 8 mil indígenas foram mortos nesse período, vítimas de torturas e tentativas de apagamentos de suas memórias. Os livros de história e de literatura estudados nas escolas brasileiras contam muito superficialmente o que realmente aconteceu durante os anos de ditadura. A maioria dos livros mostram, com muitas fotos, os exílios de artistas famosos, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas não falam absolutamente nada sobre o exílio, o genocídio e o etnocídio dos povos indígenas.

Em meados de 1960, no auge da ditadura militar brasileira, Luis Kaiowá e seu primo José Lino foram levados para vários lugares diferentes por agentes do estado brasileiro, finalmente chegando ao Posto Indígena Mariano de Oliveira, na aldeia Maxakali de Água Boa, em Minas Gerais. Lá viveram mais de 15 anos. Luís casou-se com Noêmia Maxakali e teve duas filhas, Maiza e Sueli, enquanto José Lino casou-se com Maria Diva Maxakali e teve quatro filhas. Porém, pouco mais de dois meses após o nascimento de Sueli, Luis e José Lino foram reconduzidos para o Mato Grosso do Sul e nunca mais voltaram. Luis tornou-se um renomado rezador do povo Kaiowá, enquanto José Lino faleceu poucos anos após seu retorno.

 

Foto: Tatiane Klein

Sueli e Maiza cresceram sem ter notícias do pai, mas sempre buscaram perguntar o paradeiro dele quando encontravam parentes Kaiowá. Com a chegada da notícia de Tatiane Klein sobre a localização certa onde estava vivendo Luis, Sueli, com ajuda de parceiros, organizou a viagem de encontro e a gravação de um documentário contando toda sua história. Isso estava previsto para 2019, mas com a chegada da Covid tiveram que desmarcar e aguardar.

Nesse meio tempo, em setembro de 2021, Sueli, Isael e várias famílias Maxakali resolveram retomar uma área, a Aldeia Escola Floresta, onde hoje estão. Lá cultivam o sonho de curar a terra e fortalecer a vida das crianças e jovens através de práticas educativas. Em 2022, com a diminuição nos casos de Covid, Sueli e Maiza conseguiram retomar o projeto e planejar o tão sonhado encontro. Se prepararam espiritualmente para a partida na Aldeia Escola Floresta com um grande ritual do gavião-espírito, Mõgmôka, e seguiram para o Mato Grosso Sul. Entre os dois povos, muita expectativa, emoção, histórias e memórias em meio a um processo secular de expropriação, assassinatos e devastação de seus territórios ancestrais. E mesmo com tanta violência e dor, os dois povos resistem e exibem um ritual de vida vibrante e intenso, povoado por cantos, sonhos e espíritos. 

Fotos: Roberto Romero

Profundas histórias de vida e luta não figuram nos livros de história das escolas, mas estão presentes em muitos territórios indígenas. Quem quiser saber mais sobre o encontro de Sueli e Maiza com pai, em breve o filme estará em circulação e vai contribuir muito para o entendimento do que representou a Ditadura Militar para os povos indígenas.

Agradeço a Roberto Romero e Tatiane Klein, que contribuíram com fotos e narrativas desse momento tão importante para história do povo Maxakali e Kaiowá, mas também para história do Brasil.

Compartilho o link de um outro documentário feito por Isael e Sueli que conta também as violências durante a Ditadura Militar para o povo Maxakali: GRIN-Guarda Rural Indigena (Roney Freitas e Isael Maxakali 2016) – Documentário.

 

Foto: Alexandre Maxakali

11/04/2024

PENSAMENTOS DE CRIANÇA – por Cris Takuá

 

Fotos: Alba Rodríguez Núñez

Numa manhã de céu azul e montanha iluminada, fiquei a refletir sobre a profundeza dos pensamentos que desabrocham das criancinhas. Tudo está a pensar, observar e imaginar nesse mundo de encantos e belezas.

Kauê Karai Tataendy Mindua, meu filho de 10 anos, é um pensador desde os primeiros passos de sua vida, um grande professor das sutilezas das coisas que nos rodeiam. Cuidador de galinhas e cachorros, tem um galo chamado Pirata, que ele cuida desde que nasceu e que é cego de um olho. Kauê, com muito afeto, fez curativos e hoje Pirata é um galo que comanda o terreiro com seus cantos fortes logo ao amanhecer.

Nessa caminhada junto a esse meu pequeno professor, muitos conhecimentos vou aprendendo com ele. Uma reflexão que ele me trouxe esses dias foi sobre a relação dos humanos grandes com os seres da floresta. Ele me perguntou por que as pessoas crescem e deixam de ser “delicadosos” com os outros bichinhos e plantas. Ele pensa que muitos humanos grandes perderam essa sensibilidade de escutar e conversar com os outros seres e até com os espíritos.

Foto: Alba Rodríguez Núñez

Mergulhado em suas profundas inquietações, desde criança nas caminhadas na mata, traz falas sobre tempos outros onde ele se recorda de situações e momentos da vida que a sua memória ainda alcança. 

Curioso perceber a transparência lúcida da dimensão dos pensamentos das crianças, que tecem narrativas imaginárias e se encantam com as mais pequeninas coisas.

Meus dois filhos sempre me acompanharam nas caminhadas da vida, em lutas, trabalhos e articulações. Um dia fui convidada para comentar um filme sobre rezadores, xamãs de vários lugares do mundo, que seguem com seus cantos e rezos segurando os céus e equilibrando a vida no planeta. Kauê, atencioso que sempre foi, ao chegar em casa ficou comentando sobre o que viu e ouviu naquela noite e no dia seguinte pediu pra assistir o filme de novo comigo. Foi um momento forte para nós dois, pois ficamos encantados e ao mesmo tempo profundamente tocados por aquelas realidades tão distantes, mas tão parecidas com as nossas.

Passou um tempo e o vi concentrado com suas canetinhas coloridas desenhando tudo que estava pensando das nossas conversas e daquelas realidades tão profundas.

Desenhos: Kauê

Rezar para chover, rezar para continuar nevando, rezar para seguir os rios e mares com água limpas e peixes para comer, rezar para manter a floresta viva frente a tantas violências, como mineradoras, petrolíferas e um agronegócio avassalador.

Assim seguimos dialogando e sentindo a força que emana nos quatro cantos do mundo desses rezadores e rezadoras, que seguem, cada um da sua forma, resistindo para cuidar da nossa Terra tão machucada.

Que sigamos rezando e aprendendo com a delicadeza das crianças.

🐜🐜🐜🐜🐜🐜🐜🌱🌿💚

Foto: Alba Rodríguez Núñez

04/04/2024

KA’A, ERVA-MATE – por Cris Takuá

 

Desenho: Cris Takuá


Kunhã Tatá, Doralice, foi como uma avózinha pra mim, uma professora. Ela me apresentou e me ensinou sobre a sagrada mestra da Nhe’ërÿ: a Ka’a.

Ela contava que Ka’a e Takuá eram as filhas de Nhanderu. Um dia, andando pela Terra, ele pegou um galhinho de cedro e assoprou, criando assim uma criança, que brincava e urinava por todo canto. Então nasceu um brotinho de erva mate, a Ka’á. Era uma menina e ela já cantava com takuapu. Por isso que até hoje as mulheres cantam batendo o bastão de taquara no chão.

Takuá e Ka’a foram embora com Nhanderu quando o mundo pegou fogo, a água grande veio e acabou tudo. Mas, até hoje, os Guarani têm erva mate para fazer chimarrão e taquara para o takuapu, e para trançar a palha para peneira e balaio.

Os nhe’e kuery, os espíritos que moram com Nhanderu, estão falando para os rezadores que a terra vai acabar outra vez. Antigamente já houve um período de escuridão. Não amanhecia mais, assim mesmo veio a água. 

Nessa terra onde nós estamos agora, mais cedo ou mais tarde isso também vai acontecer. Se isso não acontecer, a gente não vai aguentar mais o calor aumentando, e vai vir a chuva, e vai vir yapó há’puá tatareve’gua, barro com fogo do céu.

Nhanderu acha que o mundo já está muito velho e quer limpar a terra. 

Assim Kunhã Tatá nos contava, dando orientações de como caminhar pela Terra, saber respeitar o tempo, entendendo as direções do vento, das nuvens e dos trovões.

Para o povo Guarani, o tempo se divide em dois: Ara Ymã, o tempo velho, e o Ara Pyau, o tempo novo. Sempre que há mudanças dos tempos, costuma-se fazer a cerimônia da Ka’a para proteção e fortalecimento.

Agora estamos iniciando mais um Ara Ymã, tempo de concentração e resguardo. Não há uma data exata do dia em que mudam os tempos. Mas Tupã kuery, os trovões, passam avisando e os rezadores entendem o sinal e logo já orientam os tembiguai, guardiões da casa de casa, para irem colher a Ka’a.

Durante a cerimônia de consagração da Ka’a aprendemos muito, vemos muitas coisas que ela nos mostra e nos coloca no nosso lugar, nos direcionando para seguir o tempo que se inicia com sabedoria e tranquilidade.

 

Foto: Carlos Papá


**********************************


No meio da madrugada

Em meios aos cantos dos tarova

Concentrada no pilão 

Me senti esverdejar

Era a força da mestra curandeira,

Ka’a, professora dos tempos

Filha de Nhanderu 

Que lindamente eu a vi saudar

O sagrado Nhamandu Mirim, Sol,

 que lentamente estava a se levantar 

Com sua cauda irradiante 

Amarelando todo nosso lar 

opy’i, casa de rezo 

Nossa escola viva a bailar

Ensinando e aprendendo 

Assim seguimos a caminhar.

🌿🌿🌿🌱

Fotos: Cris Takuá

28/03/2024

CONSTELAÇÃO DE SABERES – por Cris Takuá

 

Foto: Vhera Poty

 

Nos processos educativos, e não só neles, mas também nas relações humanas, sinto a falta do afeto e da concentração, do cuidado e da atenção!

Com isso percebo que a instituição escolar não está fazendo sentido! Esse modelo de escola que prioriza a escrita, a leitura, os números, uma enxurrada de informações efêmeras, vazias de sentidos poéticos e práticos na vida das crianças e dos jovens.

Tenho pensado e sonhado com as Escolas Vivas, que valorizam o potencial de cada um em sua delicada essência. Que dialogam sobre valores de ser e estar nos territórios de forma bela e equilibrada. Que falam das artes, falam de cura, dos cantos e encantos dessa vida que pulsa a cada novo amanhecer.

Durante doze anos, eu fui professora na escola estadual indígena em minha comunidade. Foram anos de lutas e desafios, uma constante busca de equilibrar a dureza e a beleza nessa longa caminhada. Professora de filosofia que fui, mas também de história, sociologia e geografia, sempre gostei de desenhar, sair e caminhar com os alunos, ver a floresta, escutar e aprender para além dos livros.

E nesse percurso fiz parte de um processo muito forte de busca por direitos para garantir a formação dos professores indígenas numa licenciatura intercultural indígena.

Para isso, formamos um grupo de trabalho e, durante dois anos, ficamos dialogando, debatendo e construindo o PPP, o Projeto Político Pedagógico, para o curso. Nesse processo do GT que deu origem ao PPP da licenciatura que sonhamos, desenvolvemos o conceito da “constelação curricular”, para fugir da ideia de grade, onde todos os saberes ficam divididos, fragmentados e presos.

Pensar um céu que produz conhecimento e, a partir daí, fazer a articulação  entre saberes e fazeres será o grande diferencial dessa formação que vai trazer muito fortalecimento para os territórios indígenas de São Paulo. O curso será organizado no tempo de alternância, o tempo-universidade e o tempo-comunidade.

Após muita luta, em março deste ano foi dado início ao curso de formação pela Unifesp de Santos, momento histórico para os povos indígenas em São Paulo.

Fui convidada a dar a aula inaugural junto a Carlos Papá no primeiro dia da licenciatura. Foi um momento muito especial, pois, estando fora de sala de aula há dois anos, pude trazer uma reflexão sobre as minhas inquietações sobre a escola, a monocultura mental e os desafios que vivi nos tempos em que dei aula e, ao mesmo tempo, lutei intensamente para garantir um processo formativo que respeitasse o tempo de cada cultura. 

Durante o tempo-comunidade, cada aluno da licenciatura tem que fazer estágio com orientação de um professor, que pode também ser um líder espiritual, um conhecedor da cultura ou algum membro da escola local. Para a minha surpresa, um jovem aluno me fez a proposta de ser a orientadora dele junto a Escola Viva Guarani e o coordenador Carlos Papá. Esse momento é transformador para a educação e o fortalecimento das memórias ancestrais.

As Escolas Vivas desabrocharam como um sopro de inspiração, uma semeadura multicolorida para ativar as energias de mestres, que estão muitas vezes cansados dos desafios constantes. Esperamos que, a partir do caminhar coletivo, se animem a tecer juntos tramas de narrativas, saberes e possibilidades de sonhar mais.

Desenho: Fabiano Kuaray

21/03/2024

NHE’ËRŸ FLORESTA VIVA – por Cris Takuá

 

Foto: Edu Simões

 

Nhe’ërÿ floresta viva 

Nela habita um portal de conhecimento 

E memórias ancestrais machucadas pela monocultura mental 

Da colonização capitalista 

Que tenta transformar tudo em mercadoria 

Nhe’ërÿ morada de saberes e encantos 

Onde os espíritos se banham 

Onde a vida de muitos povos teceu formas de resistência

Com cantos e rezos sagrados 

Todos os seres que habitam na Nhe’ërÿ 

A árvore, a água, o coração em nosso corpo, 

tudo pulsa. 

Através do pulsar a gente se emociona, sente que está vivo. 

O pulsar de cada artista da floresta gera um ser, gera um pensamento. 

A floresta Nhe’ërÿ nos convida para acordar o pulsar. 

Nós estamos sempre aprendendo, 

a cada dia estamos aprendendo uns com os outros.

Juntos, mesmo à distância, estamos pulsando numa mesma energia 

De espalhar sementes, diante desse desequilíbrio, do sofrimento da terra. 

É esta cosmovisão e poética da vida que nos guia

E nos fortalece a cada novo dia.

Rezadores seguem entoando as boas e belas palavras para acordar 

Despertar 

Animar 

E acalmar os espíritos que nos rodeiam.

A cada novo amanhecer o Sol, Nhamandu Tenonde

Segue a nos iluminar e aquecer 

Honrando as criancinhas

Que, com sua pureza e delicadeza, seguem insistindo em nos reensinar a praticar o Bem Viver.

 

Fotos: Carlos Papá

14/03/2024

O QUE SEGURA OS CÉUS? – por Cris Takuá

As palmeiras nativas da Nhe’ërÿ sustentam os céus desde a origem de criação do mundo e dos seres que nele habitam. O céu azul que hoje existe reflete as folhagens das palmeiras azuis que, no início do mundo, fizeram essa transição entre os mundos que habitamos.

Existem muitas palmeiras que, com sua beleza, suas palhas, frutinhos e sombras, vêm encantando e sustentando a vida aqui em meio à floresta. 

Em fevereiro, organizamos na Escola Viva Guarani uma oficina para produzir junto dos jovens os desenhos de algumas espécies de palmeiras para compor a exposição Mba’é Ka’á, o que tem na mata: Barbosa Rodrigues entre plantas e pajés, que acontece entre 08 de março e 08 de setembro, no museu do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. 

Coordenada por Carlos Papá, a oficina proporcionou uma leitura e observação atenta do livro Sertum Palmarum Brasiliensis, de J. Barbosa Rodrigues, e também caminhadas na floresta da Aldeia Rio Silveira, para ver e reconhecer as palmeiras que estão ao nosso redor.

Foram dias de muita animação e escutas, através das histórias contadas por Papá sobre a importância das palmeiras para o equilíbrio da mata e para a sustentação dos céus que habitamos desde o início do escuro originário.

Algumas crianças, acompanhando seus pais, criaram também desenhos que refletiam suas percepções das palmeiras que observaram e, juntos, criamos uma linda apresentação de 10 espécies.

 

As palmeiras azuis 

São seres espirituais 

De um mundo cosmológico 

Que nos mostram os portais

Entre os mundos.

Na floresta existem seres nativos 

Jataí, Jussara, Jerivá 

Guaricanga, Brejaúba, Butiá 

Jejy ró- amargo, Tuku, Indaiá

Espécies de palmitos 

Palmeiras

Que alimentam e encantam 

Sombreiam nosso caminhar 

Cobrem casas 

E revestem a floresta

De um esverdear profundo.

Nhe’ërÿ terra das palmeiras 

Que seguem sustentando nosso caminhar 

Nessa terra

……..Cristine Takuá……..


Desenhos produzidos na oficina Guarani, 2024

07/03/2024

RESISTIR PARA SOBREVIVER – por Cristine Takuá

Os jovens estão buscando encontrar a essência de sua missão, deixada por Nhanderu no momento do parto, quando chegam a esse mundo de imperfeição. Ao longo dos tempos, muitos estão se esquecendo deste compromisso que foi destinado a cada um e, ao crescer e se desenvolver, vão trilhando uma maneira triste de viver, o caminho do Teko vai (a má e feia forma de ser e estar no território), diferente do Teko Porã, que é o Bem Viver, a boa e bela forma de caminhar, de estar em equilíbrio na vida. 

Com isso a depressão, a preguiça, o suicídio e formas descompassadas de se colocar no mundo têm aumentado muito entre jovens indígenas. Reflexo de uma histórica trama de violências inconstitucionais e de feridas nas relações humanas. Se desfazer desses emaranhados de desequilíbrios depende muito de uma teia de afeto e cuidado.

Foto: Vherá Poty

As casas de reza são espaços coletivos de cura e convivência, são escolas ancestrais em que, através das práticas e da presença dos rezadores e das rezadoras, vamos reaprendendo a nos colocar no mundo, a lidar com as dores e desafios. As plantinhas, mestras do caminho profundo, nos ensinam a nos equilibrar entre a beleza e a dureza da vida, e assim desacelerar as duras e pesadas pegadas que muitos vêm deixando na Terra.

Nhamandu Mirim, o Sol sagrado, todas as manhãs se levanta para nos iluminar e para que tenhamos força e coragem. 

Assim seguimos….

 

Depois da tormenta vem a calmaria 

Depois da tempestade o arco íris brota 

No entardecer

Sinais de mudanças e transformações

Sinalizam o renascimento da matéria

Espíritos cantantes voam na lua cheia

Espalhando mensagens de amor

A pequenos seres pensantes

A vida é feita de escolhas 

Sendo cada caminho modelado 

Por nossos anseios 

Cada destino direcionado 

Pelos seres sagrados

Momentos de tormentas nos revelam

Que há a necessidade de metamorfosear

Nossa relações, nossos passos 

Nessa jornada da Vida

Não basta engrandecer a matéria 

Temos que remodelar a alma

Cuidar com zelo e carinho 

Para ultrapassar as barreiras 

Do desconhecido 

E mergulhar no universo multicolorido

Da sábia ensenhança 

Que habita para além das aparências

Do sorriso de criança.

Busco o silêncio 

Das profundas cantigas 

Um suspiro pra alma

Um descanso pra mente 

Pra seguir os caminhos dos sonhos meus…

……..Cristine Takuá……..

Foto: Alexandre Maxakali