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Filmes e Flechas

IMPACT22, UM DESMERGULHO

Por 23 de dezembro de 2022outubro 23rd, 2023Nenhum Comentário

Recebi uma chamada de voz da Anna Dantes. Era final de setembro e a gente tinha se despedido um dia antes, no encerramento da vivência Mulheres, Plantas e Cura no território de Maria Silvanete, em Exu – Pernambuco. Eu estava visitando a Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri quando Anna ligou para contar que o Selvagem tinha sido convidado a participar de um festival de dança na Alemanha, mas como por volta da data da viagem os movimentos do ciclo estariam intensos, com lançamentos de livros, flecha e eventos, nem ela e nem Mada teriam como comparecer. Ambas sentiram que era o momento de convidar alguém da comunidade para representar o Selvagem e, juntas, pensaram que eu poderia ser essa pessoa.

Disse sim, antes mesmo de saber quando. Seria em novembro, pouco mais de um mês adiante. Que surpresa! Que honra! Meu coração aqueceu. Eu queria retribuir todo o amor e maravilha que o Selvagem move em mim e entregar uma fala luminosa. Queria. Logo começaram outros trajetos no corpo. A pontinha de um fio de insegurança deu as caras e foi crescendo, se enroscando, até alcançar a barriga e cutucar aquele oco onde o frio queima. Por onde ir e o que dizer virou uma grande questão.

Eu tinha acabado de vivenciar uma imersão em oralidade. Tanto Silvanete quanto Alemberg, criador da Fundação Casa Grande, tinham vertido inspiração com suas falas profundas, firmadas na experiência. A chegada desse convite agulhava justo esse lugar: será que eu seguro a onda de chegar e falar?

Mesmo sendo devota de nossa senhora do improviso e com toda a liberdade e confiança sinalizadas por Anna e Mada nas conversas que tivemos, senti que precisava organizar algo. Como eu não estava lá apenas para apresentar o meu trabalho, e sim para representar uma comunidade, comecei logo a desenhar o texto. Primeiro em casa, caminhando pela mata, com tempo e silêncio para que o precisava ser dito emergisse, se manifestasse. Mas logo viajei para o Rio para participar do Plantas Mestras, evento lindo e presencial que o Selvagem realizou em 23 de outubro de 2022.

Fui para fotografar e de lá voaria para a Alemanha, no embalo da Flecha 7 – A Fera e a Esfera, lançada ali. Faltavam ainda alguns dias para a viagem e eu já me encontrava em modo avião. Seguia muito concentrada no preparo do texto. Feliz, mas sabendo que falar em nome do Selvagem pela primeira vez, num país estranho e em outra língua seria uma montanha e tanto a subir. Troquei o sol de Copacabana pelo brilho frio do laptop algumas vezes.

Mas, afinal, para onde eu iria?
Rio > Munique > Düsseldorf > Essen – – – PACT Zollverein

Situada na cidade de Essen, na região responsável pelo desenvolvimento da indústria pesada alemã ao longo do século XX, Zollverein é o complexo industrial que movimentou a maior mina de extração de carvão da Europa. Desativada em 1986 e transformada em centro de arquitetura e design, reorientou suas atividades para o setor cultural e foi tombada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade em 2001.

Nesta paisagem pós-industrial pontuada por maquinarias enferrujadas tornadas relíquia, está a sede da PACT, centro coreográfico voltado para as artes da dança e da performance. O mais simpático entre todos os edifícios tem uma programação efervescente de residências artísticas, ensaios, apresentações e simpósios, dentre eles o IMPACT. À noite, letreiros em neon vermelho iluminam a fachada com a frase: SHIFTING GROUND.

Traduções possíveis: solo instável ou mudança de terreno

O IMPACT é um simpósio transdisciplinar que acontece ano a ano desde 2004 e que tem aproximado figuras atuantes nos campos das artes, tecnologias e ciências para discutir temas chave junto a aproximadamente 30 participantes internacionais selecionados por chamada pública. Nos últimos anos os assuntos que interessam ao IMPACT incluem questões ecológicas, digitais e pós-coloniais, assim como práticas ativistas, espaços de interação e transação digital e pesquisas e processos artísticos em colaboração. A programação se divide entre palestras, workshops e está aberta à imaginação de outros formatos de trocas.

O IMPACT22 – LOCAL FABRICS, ‘On Practices of Emergence’ giraria em torno das ‘Práticas de Emergência’ e lançaria perguntas sobre estratégias, práticas e processos que fortaleçam relações de troca em um nível local e imediatamente perceptível. Se ocuparia de pensar em recursos epistemológicos a serem cultivados e tornados visíveis, ao invés de continuarem marginalizados e excluídos.

O Selvagem – Ciclo de Estudos era um dos três convidados, junto ao Social Pleasure Center (SPC) e Boris Stevens, para conduzir as provocações e práticas dessa edição. Esse convite se deu através da conexão feita por Lia Rodrigues, que esteve na PACT apresentando Encantado, seu trabalho mais recente e que teve no Selvagem uma das matrizes de inspiração.

Foram quatro dias intensos de atividade. Os três primeiros foram dedicados às proposições dos outros convidados: Boris Stevens e a equipe do Social Pleasure Centre. Caminhadas, pedaladas, atividades somáticas, práticas em dança e outras ações comunais foram entremeadas pelas apresentações na Assembly, um espaço em que cada participante tinha dez minutos para compartilhar seu trabalho da maneira como preferisse, seguidos de outros cinco minutos para perguntas e comentários. Nas atividades externas pela cidade tudo parecia tão organizado e nítido que eu tive a impressão de passear pelas imagens dos livros de cursos de inglês: a car, a church, a dog. Quase dava para ver uma legenda flutuando sobre cada cena.

Na Assembly eu fiquei para o último dia das apresentações; era melhor que eu fizesse minha fala depois de exibirmos uma das flechas e conversarmos via zoom com a Anna, pois assim todos já teriam ao menos um primeiro contato com o Selvagem.

Na noite do quarto dia exibimos a Flecha 1 – A Serpente e a Canoa e embarcamos em uma conversa com a Anna. Uma das potências do Selvagem é ser um meio, um ambiente e não uma plataforma ou algo que se possa definir ou qualificar pelas categorias de alguns sistemas, entre eles o da arte. O Selvagem parece ter vida própria, como um espírito que sabe existir em muitas formas, todas aliadas ao respeito e à lembrança de que há outros mundos nesse mundo. Esse apreço por se manter invisível e incapturável pode provocar reações e algumas projeções, como aconteceu. Isso, para mim, evidenciou diferenças entre pensares e pulsares e fez imaginar qual seria um bom formato para que o trabalho se apresentasse em sua grandeza. Também houve alguns descompassos técnicos, a exemplo da voz da Anna ter sido eclipsada pela tradução, o que afetou a experiência de recepção e troca e pode ser revisto em outras oportunidades. A oralidade importa muito.

Vim para casa com algumas questões. Questões que eu talvez não seja capaz de responder agora, mas que escrevo para ecoar: como a arte pode abrir caminhos para o entendimento de que há muitos mundos nesse mundo sem precisar se manifestar através de formatos já estabelecidos? Qual o papel do Selvagem nesses lugares? Como desestabilizar o senso comum colonial que tinge os modos de prestar atenção e encarar o outro sem escorregar nas armadilhas do confronto direto? Como encantar encontros e instituições para que eles sejam incubadoras de sonhos e transformações? Sigo imaginando e sentindo que o atrito entre mundos é um convite para construirmos pontes feitas de tempo, abertura e escuta, principalmente.

Pendulei, mas não cedi à gravidade que me induzia a desviar da rota até então tecida em átomos de amor para apresentar o que parecia já ter espaço para ser visto: ações concretas, estudos de caso, relatórios de atividades. Segui inclinada a falar a partir de um campo sensível. Usei os dez minutos que me cabiam para contar da minha experiência como integrante da comunidade Selvagem, como artista que tem seu trabalho preenchido e ampliado pelo contato com as pessoas e conteúdos ativados e também como alguém que estuda no e com o ciclo. ‘EM ESTADO DE DANÇA’, a versão estendida do texto lido, acaba de ser publicada como um Caderno Selvagem.


Hoje, 18 de dezembro, faz um mês que voltei de viagem. Estou em casa, em Florianópolis e chove forte lá fora. O solo está instável, e isso não é uma metáfora. Há deslizamentos e inundações pela cidade. Há rios soterrados que reclamam seus fluxos em direção ao mar. O que partilho aqui aconteceu entre duas lunações em escorpião. Quem sabe por isso escolhi oferecer uma mirada de dentro, uma mirada memória, um desmergulho. Penso que IMPACT talvez não seja um nome à toa. Para mim, em particular, foi uma experiência de impacto fazer essa viagem e viver tamanho deslocamento através do Selvagem.

A floresta ensina a pisar firme e suave. Cruzar o oceano para falar de um trabalho orientado pela escuta dos saberes sutis e regeneração amorosa da vida em um lugar que exala a memória de um tempo marcado pela modernização e funcionalismo, em que os olhos ficam turvos ao mirar para o alto e tentar ver onde terminam as chaminés monumentais e turvam dobrado ao saber que elas são menores do que os túneis que furam a terra foi uma travessia de muitas densidades e temperaturas.

Mesmo com o esforço consciente em criar um ambiente aberto, relaxado e flexível, há algumas pontuações que, espero eu, sejam construtivas não apenas à organização desse evento, mas que ajudem a desenhar próximos encontros que instaurem outros modos de estar junto, ver, viver, sentir e saber. A restrição do tempo e a falta de espaço na programação para o cultivo de alianças humanas e mais que humanas; tempo para que as coisas simplesmente emergissem. Festivais de arte são cansativos porque reproduzem os ritmos eufóricos do extrativismo colonial e capitalista, mesmo quando se ocupam de questões voltadas ao transe planetário que vivemos. Tempo livre não é tempo perdido.E dizer sem pudor que, se há real vontade por parte das instituições artísticas que organizam encontros e residências internacionais em terem artistas de fora do eixo colonial ocupando esses espaços, é preciso que se comprometam em construir alternativas para que essas pessoas possam se comunicar em suas próprias línguas, sem que isso tenha que ser solicitado.

Entre as preciosidades ficam os novos elos e reconhecimentos entre gentes que, desde muitos cantos e realidades, catalisam mudanças visíveis e invisíveis com arte. Mudanças ~ dança das mudas ~ como intuímos juntas com Silvanete. Já não são mais sementes. Pós impacto, outra postura floresce. Saio inspirada a imaginar caminhos radicais e coletivos para os fluxos artísticos que o Selvagem tem movido e cada vez mais confiante de que é a serpente cósmica quem conduz essas e outras viagens.

Mariana Rotili

Fotos: Dirk Rose

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