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Escola Viva

BELOS CAMINHOS DAS ESCOLAS VIVAS

Por 7 de junho de 2024junho 19th, 2024Nenhum Comentário

Escolas Vivas: Oguatä Porã 

Belos caminhos das Escolas Vivas 

Texto de Cristine Takuá com colaboração de
Carlos Papá, João Paulo Tukano e Anita Ekman
Fotos de Cristine Takuá

 

Nos dias 30 e 31 de maio, junto aos coordenadores da Escola Viva Guarani, Carlos Papá, e da Escola Viva Tukano-Desana-Tuyuka, João Paulo Barreto, participei do workshop O Corpo-Território da Floresta Tropical: Revisitando as Coleções da Expedição Thayer e Morgan por meio de Cosmovisões e Legados da Escravidão, no Radcliffe Institut na Universidade de Harvard, nos EUA. O convite para a participação veio através da curadora Sandra Benites (Guarani Nhandeva, atualmente diretora de Artes Visuais da Funarte) e a artista, curadora e pesquisadora independente Anita Ekman que conjuntamente com  à Ilisa Barbash ( Museum Curator of Visual Anthropology, Harvard Faculty of Arts and Sciences) idealizaram a criação deste seminário preparativo para a realização de uma futura exposição. 

Dois dias antes do workshop no Radcliffe Institut, visitamos os acervos trazidos por Louis Agassiz e Charles Hartt do Brasil para Harvard, através de duas expedições. A expedição Thayer liderada pelo suíço Louis Agassiz entre anos anos de 1865 e 1866 que passou pelo Rio de Janeiro, Ceará, Manaus, subiu o Rio Negro e percorreu longos caminhos floresta adentro. E a Expedição Morgan organizada posteriormente por Charles Hartt em 1870 e 1871.

O workshop contou com um grupo interdisciplinar de artistas, historiadores de arte, curadores e cientistas brasileiros (indígenas, afro-brasileiros, mestiços) e norte-americanos para revisitar e ressignificar objetos coletados durante as expedições de Thayer e Morgan ao Brasil no século XIX e alojados em diversos arquivos da universidade de Harvard entre eles do Peabody Museum. O objetivo do encontro foi colocar em diálogo e questionamento o imaginário sobre as florestas tropicais brasileiras criado por europeus e americanos, expresso através dessas coleções. Nesse coletivo reunido pudemos contrapor isso a partir de uma perspectiva latino-americana, com as diferentes ontologias das culturas indígenas e da diáspora africana brasileira em relação à região que compartilham com uma extraordinária diversidade de plantas e animais. Este workshop abordou os debates em torno dos territórios da Amazônia e da Mata Atlântica, que abrigam o maior número de espécies vegetais do planeta. Utilizando visões de mundo dos povos da floresta, ficou centralizada a relação corpo-território na Floresta Tropical Brasileira, tanto no sentido do corpo humano e não-humano como território quanto no sentido do território / terra como um corpo vivo que respira. 

Além de destacar as diferentes cosmovisões dos povos da floresta (indígenas, mestiços e afrodescendentes) sobre seu próprio corpo-território, também analisamos, discutimos e  sentimos visualmente como funciona o acervo museológico de fósseis, peixes, cerâmicas arqueológicas, fotografias e espécimes botânicos, e de que forma essa expedição contribuiu para a mercantilização do corpo e do território da Floresta Tropical. Também refletimos como as relações Brasil-Estados Unidos do século XIX e seu legado de escravidão indígena e africana estão intrinsecamente ligados à destruição da Nhe’ëry e Amazônia.

Carlos Papá e Cristine Takuá na coleção de peixes da Universidade

 

Foram muitas as reflexões que surgiram dessas escutas e olhares.  Destaco aqui a pesquisa de Anita Ekman* que contextualiza os eixos de discussões deste workshop:

 

A origem da palavra Floresta nos mostrou claramente que o imaginário global sobre o que são as florestas e a natureza foi criado por homens europeus. “Floresta”, no português, ou “Forest” em inglês (do latim Forestis), deriva de foris (“fora”), radical comum também à palavra “forasteiro”. Esta noção de uma Mata que não ocupa o centro, que é parte de uma natureza considerada “exterior”, foi enraizada no imaginário global pelos forasteiros europeus e norte-americanos, que, ao conceber a floresta como uma paisagem a ser “desbravada”, uma “Terra Nullis” (terra que não pertence à ninguém), uma “Mata virgem” (intocada pela mão do homem e portanto “improdutiva” e passível de ser “estuprada”), determinaram a colonização deste corpo-território e consequentemente a maneira pela qual ainda hoje este bioma segue sendo percebido e ocupado. Está justamente na raiz desta forma de pensar o que é (e para que serve) a floresta, o principal legado do Mundo Atlântico. Em outras palavras, foi principalmente baseado nas expedições empreendidas por homens europeus e da América do Norte para as florestas brasileiras (Amazônia e Mata Atlântica) no séc. XIX e início do séc. XX que o hemisfério norte forjou a base do pensamento hegemônico global acerca de paradigmas como: natureza/cultura, tecnologia/meio ambiente, natural/artificial, humano/não-humano, vivo/inanimado, constituindo suas próprias teorias para explicar a complexidade da diversidade de formas de vida no planeta.” 

Por isso foi tão importante e impactante para nós visitar os acervos da Expedição Thayer, liderada pelo criacionista (e professor de Harvard) Louis Agassiz em 1865, que formou diversas coleções para Harvard, entre elas a maior coleção de peixes do séc. XIX , coleção de fósseis e a polêmica coleção de daguerreótipos de indígenas, africanos e mestiços, criada na intenção de provar a superioridade caucasiana e que Charles Darwin e sua Teoria da Evolução estavam errados.

Para Anita Ekman:

A visita às florestas brasileiras por Wallace (Amazônia brasileira) e Darwin (Mata Atlântica) contribuiu expressivamente para a formulação da teoria da Evolução das Espécies, que segue sendo, ainda hoje, a maneira como o Ocidente compreende a diversidade da vida no planeta Terra. Darwin, ao contrário de Agassiz, era contrário à escravidão e não acreditava na superioridade racial. No entanto, estava convicto que os homens seriam biologicamente superiores às mulheres.


Pescando entre pedras, Pedra de Itapuca, Itapuca, Brazil, 1865, de Jacques Burkhardt,
MCZ library, Universidade de Harvard.



Charles Hartt, geólogo canadense naturalizado americano, que foi aluno e sucessor de Agassiz, veio ao Brasil com a expedição Thayer e alguns anos depois coordenou a expedição Morgan, sendo o primeiro a descrever e a levar “objetos” para compor coleções dos museus das universidades dos Estados Unidos (Peabody Museum de Harvard, o qual visitamos, e Universidade de Cornell). Entre eles, o fragmento de cerâmica mais antigo encontrado até o momento nas Américas (no Sambaqui de Taperinha, Pará), datado em 7.600 anos Antes do Presente e armazenado no Peabody Museum de Harvard.

Charles Hartt foi o primeiro a descrever a cerâmica da Ilha do Marajó na Amazônia, criando as primeiras coleções de cerâmica Marajoara para as universidades americanas. Hartt, que antes era criacionista e depois passou a defender a teoria da evolução. Apesar de apontar para o fundamental papel das artistas mulheres indígenas, ele o fez para enfim concluir que as mulheres europeias eram superiores às artistas indígenas, pois eram capazes de representar a natureza com maior perfeição na decoração dos objetos.

O que Charles Hart fora incapaz de perceber, e que os museus que guardam esses artefatos até o momento tampouco puderam reconhecer e promover como deveriam, é que na labiríntica e intrincada poesia visual inscrita na cerâmica Marajoara está plasmada a cosmovisão, o conhecimento dos povos originários desta que é a região mais biodiversa do planeta Terra. O Brasil concentra, principalmente em suas florestas tropicais (Amazônia e Mata Atlântica), a maior diversidade de espécies vegetais da Terra (43% das espécies são endêmicas, ou seja, existem apenas no território brasileiro). E essa imensa riqueza é resultado de um intenso e milenar manejo dos povos indígenas que contribuíram para o enriquecimento da biodiversidade desses biomas. Pois como comprovam os estudos arqueológicos recentes, 60% da Amazônia é antropogênica, ou seja, foi milenarmente manejada por mãos e mentes indígenas.

João Paulo Barreto, Carlos Papá e Cristine Takuá junto a foto de Tatanka Iyotanka (“Touro Sentado”),
chefe do povo indígena sioux

É fundamental rever a história dessas coleções arqueológicas dos povos indígenas do Brasil, que encontram-se em diversas instituições dos Estados Unidos como o Peabody Museum em Harvard, trazendo à tona a visão das mulheres indígenas das florestas brasileiras através de obras de arte criadas por artistas indígenas e seus parceiros. Isso permite criar uma reflexão importante: que a História dos Estados Unidos e principalmente a acumulação do capital não estão desvinculados da história de devastação e da constante ameaça de destruição desses territórios e culturas. Reconhecer que a Floresta e os povos indígenas não fazem parte de uma distante realidade do outro lado do continente, e que são na verdade parte fundante da história do capitalismo global como um todo, é um importante passo para construirmos estratégias mais eficazes de colaboração para a preservação desses territórios e dessas culturas – o que significa dizer, na busca pela continuidade da diversidade da vida no planeta, que o útero Terra seja cuidado, que possa continuar a gerar vida.”

 

Durante toda essa troca e compartilhamento de sensações e memórias, Carlos Papá e João Paulo puderam identificar espécies de peixes que não existem mais nas florestas. Também se encontraram com “objetos” de cerâmica, instrumentos musicais e peças cerimoniais que não são mais vistos nas comunidades. A esses “objetos”, senti de chamar de pensamentos, pois cada ser feito de barro, como a cerâmica, o instrumento musical Trukano, feito de madeira, e tantos outros que vimos nessa visita, me fez sentir forte a presença dos muitos pensamentos ancestrais envolvidos em sua criação. Pensamentos que moldam, tecem, esculpem e transformam a natureza em arte. São territórios ancestrais que conectam pensamentos.

Caminhamos e fizemos observações sobre cada um desses seres/pensamentos que visitamos no “palácio dos mortos”, como João Paulo chamou os museus. Ele falou muito emocionado da importância de acordar as memórias e de todo o processo de violência que seu povo passou e que fez muitos saberes serem silenciados, como do Trukano, um tambor cerimonial, feito de tronco de árvore e que hoje não é mais encontrado nas comunidades Tukano. Foram muitos momentos de trocas e falas de Carlos Papá e João Paulo, que nos trouxeram profundas reflexões sobre o fortalecimento do trabalho junto às Escolas Vivas. Eu apresentei o catálogo da exposição Viva Viva Escola Viva para mostrar um pouco dessa construção e aproximar aqueles cientistas de Harvard dos cientistas da floresta. 


João Paulo Barreto ao lado do Trukano, tambor cerimonial do povo Tukano


Nessa profunda caminhada, pudemos compartilhar das nossas inquietações e contribuir para um processo de releitura desses acervos. Atentamos para a urgente necessidade de se repensar a história e ciência ocidentais e aprender a respeitar as epistemologias ancestrais dos povos indígenas.

A articulação para essa viagem se deu por Sandra Benites, que foi convidada em 2021 pelo escritor da biografia de Louis Agassiz Christoph Irmscher junto com Anita Ekman para discutir o capítulo escrito por ele (Chapter 7 – “Mr. Agassiz’s ‘Photographic Saloon.’” ) sobre as fotografias realizadas em Manaus na expedição Thayer.

A discussão foi transmitida através de uma live: Race, Representation, and Agassiz’s Brazilian Fantasy .

Agradeço por essa construção coletiva e pela oportunidade de representarmos as Escolas Vivas e compartilhar saberes e reflexões. Aguyjevete!

 

 

*  Parte da pesquisa de Anita Ekman escrita em Julho de 2022 para o projeto conceitual de exposição Womb of the Earth idealizado por Sandra Benites e Anita Ekman para o IAIA MOCNA Museum a pedido de Alexandra Mollof.

 

 

Cristine Takuá é uma escritora, artesã, teórica decolonial, ativista e professora indígena brasileira da etnia Maxakali. É formada em Filosofia pela Unesp e foi professora por doze anos na Escola Estadual Indígena Txeru Ba’e Kuai’. Atualmente é coordenadora das Escolas Vivas e integrante do Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida. 




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