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DIÁRIO DE APRENDIZAGENS

Vamos acompanhar semanalmente a jornada de Cris Takuá nas Living Schools e Veronica Pinheiro na Casa da Criança, na Escola Professor Escragnolle Dória no Rio de Janeiro. Saiba mais na página do Grupo Aprendizagens.

25/04/2024

NO TEMPO DAS CHUVAS – por Cris Takuá

 

Foto: Cris Takuá

 

O cheiro dos pingos na terra batida 

Anunciam a chegada das chuvas

Trazendo suaves brisas

Lembranças da infância 

De histórias vividas

O tempo, marcador das horas 

Dos momentos gravados

Sentidos na memória 

Me trazem sensações 

De infinita alegria 

Oh Terra!

Mãe dos seres animais e vegetais 

Oh vento!

Suspiro infinito do ventre do universo

Oh água !

Circula nas veias que percorrem 

os caminhos na imensidão do espaço

Oh fogo!

Sagrado mestre que a tudo consome, 

tudo transforma e aquece 

Salve as direções que nos guiam 

Aos olhos que nos orientam

E aos pés que nos sustentam

Nessa caminhada rumo ao infinito.

 

Foto: Cris Takuá

 

Cada dia que passa me animo mais a convidar os humanos a se tornarem selvagens, sentirem a delicada beleza de ser e estar em seu território em boa e bela forma. Amanhecer ouvindo o canto dos pássaros e anoitecer à beira do foguinho, contando histórias do dia que passou. A simplicidade que rodeia a vida de quem se permite ser parte da natureza é de uma grandeza muito encantadora.

O mundo acelerado do capitalismo, que transforma tudo em mercadoria, afastou a maioria dos humanos de sua essência e de sua alegria. Enquanto muitos se entorpecem de remédios para conseguir dormir, nas Tekoá, os Guarani, os Maxakali, os Ashaninka, os Huni Kuï e muitos outros parentes cantam para celebrar a noite. 

Desde criança me encanto com o cantarolar das chuvas que caem, limpando a terra e acalmando os pensamentos. No tempo das chuvas, tudo se torna alegria: o cházinho de erva cidreira, o bolinho assado de milho, as brincadeiras sem fim….

Como é bom ser selvagem!

Mas a sociedade capitalista insiste em querer nos colocar etiquetas, regrar nossas mentes para esquecermos que não tem dinheiro que paga a simplicidade. Por isso, sigo na minha rebeldia de acreditar que fazer comida no fogo da lenha, usar meu cachimbo para rezar e preparar remedinhos do mato para as crianças é acreditar num futuro mais feliz! 

Há tempos aprendi a desvirar o bucho de criança e isso é tão mágico! As faculdades de medicina não ensinam isso aos seus alunos, que buscam praticar a cura como profissão. Curar susto, lombriga desconfiada e tantos males que afetam as criancinhas é de uma beleza selvagem!

Assim, sigo dialogando com as chuvas, aprendendo a escutar os trovões e me direcionar nesse mundo de tantas belezas.

 

Foto: Cris Takuá

23/04/2024

CADÊ O RIO QUE ESTAVA AQUI? – por Veronica Pinheiro

 

Turma do 1º ano Roda de Leituras: A natureza que vive aqui
Foto: Professor Wagner Clayton

Os livros didáticos de história do Brasil sempre apresentaram a vida dos povos indígenas e quilombolas de forma preconceituosa. As lacunas estabelecidas, intencionalmente, nos ensino básico e superior formou, deformou e conformou gerações. Ao apagamento sistemático de produção de saberes produzido por grupos contra-hegemônicos¹, chamamos de EPISTEMICÍDIO. Quando o conhecimento científico se torna a única maneira de ler e entender a vida, fica estabelecido uma estrutura monocultural que tenta desqualificar outras formas de conhecimento. 

Ouvi, mês passado, num evento de uma universidade federal, que ”somos vira-latas”. A fala veio de uma doutoranda bem intencionada que tentava explicar que a mestiçagem estrutura toda a forma de ser e existir do brasileiro. Vira-latas são SRD, cães sem raça definida, sem origem delimitada com misturas de duas ou mais raças. Com todo amor que tenho aos vira-latas, o pensamento que compara o povo brasileiro a cães sem origem delimitada é perverso do começo ao fim.  

Começo a contar histórias indígenas e afro-pindorâmicas da seguinte forma: 

Há quinhentos anos, não existia um povo chamado de brasileiro. Quem morava aqui (Rio de Janeiro) eram outros povos. Eram nações que falavam línguas diferentes, tinham seu próprio jeito de ser e seu próprio nome. E sempre perguntam: Quem vivia aqui? 

A armadilha colonial é tão bem feita que levamos às crianças apenas as informações contidas nos livros. Fazemos isso, mesmo sabendo que os colonizadores, que tentaram identificar o nome de cada povo, criaram muitas confusões por desconhecer a língua falada ou por simplesmente preferir genericamente designar nações.

A escola onde estamos tecendo memórias está localizada próxima aos rios Acari (peixes), Irajá (cuia de mel) e Pavuna (lugar atoladiço). Os rios dão nome aos bairros. E às suas margens, além de mata ciliar, encontramos fios de memória para nossas tessituras. 

No ciclo presencial AYVU PARÁ, que aconteceu no dia 31 de maio de 2023 no Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, Carlos Papá mediou aulas com saberes profundos sobre a Nhe’ërÿ (o lugar onde os espíritos se banham, assim os Guarani chamam a Mata Atlântica). Durante os dias de encontro, a caminho do restaurante onde almoçamos, Papá me fez a seguinte pergunta: “O que você está ouvindo?” 

Era hora de almoço, um dia de semana na Barra Funda, São Paulo capital. Eu ouvia crianças indo ou voltando da escola, carros e ônibus na avenida Matarazzo, gente passando. Papá vendo que eu não entendi a pergunta, parou, olhou para a tampa de um bueiro e disse: “Você não ouve o rio? Tem um rio preso aqui dentro.”

Depois da escuta ser gentilmente conduzida, ouvi o rio. Sua voz era diferente dos rios que eu tinha acabado de ouvir em viagam no Recôncavo Baiano. Uma voz densa. Era tanta força e vida que eu fiquei ali por alguns minutos. 

Os rios sabem de muitas coisas. Certamente eles sabem da origem de muitas coisas. Nada nesse território tem origem desconhecida. A questão é: quem estamos ouvindo? Os livros didáticos trazem informações sobre pessoas indígenas e quilombolas, porém raramente indígenas e quilombolas participam da organização dos conteúdos. Mais raro ainda é encontrar parcerias que não tratem pessoas indígenas e quilombolas como objetos informantes ou interlocutores-informantes.

Sonho com o dia que poderei, como professora, colocar nas referências dos meus textos e planejamento de aula: “palavras do Rio Acari” ou “canto do beija-flor que pousou na janela da sala”.

A lei 11.645 torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio. Na prática, os livros são a referência, e as aulas são encontros para repasses de números, dados, datas e informações sobre algo desconhecido. A história e a cultura idígena e afro-diaspórica se estabelecem em presença, não em referência. O mito ou o itã são memórias vivas de povos vivos. A corporeidade é o lugar de articulações e agências de vida. O território vibra a força da vida; sendo ao mesmo tempo corpo, chão, rio, ar e todos os seres que existem naquele lugar. Por isso, insistimos em falar de escolas vivas. Escolas de presença, com memórias vivas.

Para isso, precisamos refazer percursos. Como professora, devo estar disponível aos processos de desaprendizagens. De deseducação. Preciso criar outra relação com o tempo/bimestre/cronograma/agenda. O que fala o rio Acari me importa mais que o que contam os livros. Quando as crianças me perguntam: “Qual povo vivia aqui?”

Eu respondo: “Cadê o rio que estava aqui? Algum rio passa por aqui? Porque os rios certamente sabem mais sobre esse lugar do que os livros que li.”

A pergunta rendeu: Agora temos um projeto junto a coordenadora pedagógica da unidade para a escola e comunidade escolar. Cadê o rio que estava aqui? O que os rios dizem sobre nós?

Se você ouve rios e sabe de coisas líquidas, mais ou menos torrenciais, precisamos de você para construir percursos. Para caminhar pelas águas, temos uma canoa chamada Encantada. E nela sempre cabe mais um. Aceita o convite?

 

Apresentação da sala de Leitura e o 4º ano para escola: A culpa não é da chuva
Fotos: Professor Wagner Clayton 

 

¹ Entende-se por movimentos contra-hegemônicos as práticas de resistência aos discurso de gestão dominantes que buscam contestar e escapar à disciplina da ordem do sistema capitalista. SULLIVAN, S; SPICER, A; BÖHM, S. Becoming global (un)civil society: Counter-Hegemonic Struggle and the Indymedia Network. Globalizations, 8(5), 703–717. https://doi.org/10.1080/14747731.2011.617571

18/04/2024

HISTÓRIAS QUE OS LIVROS NÃO CONTAM – por Cris Takuá

 

Foto: Roberto Romero

Sueli Maxakali, artista, cineasta, liderança, avó e coordenadora da Escola Viva Maxakali, passou anos de sua vida sonhando reencontrar o seu pai Luis Angujá, como é conhecido, do povo Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Eles se separaram há mais de 40 anos, durante a Ditadura Militar. Para esse reencontro, Sueli idealizou, junto com sua irmã Maiza, o filme Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá. Esse longa-metragem documental está em processo de finalização e contou com apoio do antropólogo e amigo Roberto Romero e de Tatiane Klein, antropóloga que estuda há anos junto aos Guarani e aos Kaiowá. Foi ela quem, em 2019, nas suas caminhadas pelo estado, encontrou Luis vivendo na Tekoha Laranjeira Nhanderu e comunicou Robertinho. A partir daí organizaram a primeira ligação telefônica entre eles. Na época lembro que Tatiane Klein me contou e me enviou um vídeo de Luis muito emocionado.

A Ditadura Militar causou profundas feridas nas memórias e violentou os corpos e os territórios, provocando prisões, trabalho forçado, torturas, envenenamentos e doenças. Houve ainda a proibição da língua materna entre os povos indígenas. No relatório da Comissão Nacional da Verdade consta que mais de 8 mil indígenas foram mortos nesse período, vítimas de torturas e tentativas de apagamentos de suas memórias. Os livros de história e de literatura estudados nas escolas brasileiras contam muito superficialmente o que realmente aconteceu durante os anos de ditadura. A maioria dos livros mostram, com muitas fotos, os exílios de artistas famosos, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas não falam absolutamente nada sobre o exílio, o genocídio e o etnocídio dos povos indígenas.

Em meados de 1960, no auge da ditadura militar brasileira, Luis Kaiowá e seu primo José Lino foram levados para vários lugares diferentes por agentes do estado brasileiro, finalmente chegando ao Posto Indígena Mariano de Oliveira, na aldeia Maxakali de Água Boa, em Minas Gerais. Lá viveram mais de 15 anos. Luís casou-se com Noêmia Maxakali e teve duas filhas, Maiza e Sueli, enquanto José Lino casou-se com Maria Diva Maxakali e teve quatro filhas. Porém, pouco mais de dois meses após o nascimento de Sueli, Luis e José Lino foram reconduzidos para o Mato Grosso do Sul e nunca mais voltaram. Luis tornou-se um renomado rezador do povo Kaiowá, enquanto José Lino faleceu poucos anos após seu retorno.

 

Foto: Tatiane Klein

Sueli e Maiza cresceram sem ter notícias do pai, mas sempre buscaram perguntar o paradeiro dele quando encontravam parentes Kaiowá. Com a chegada da notícia de Tatiane Klein sobre a localização certa onde estava vivendo Luis, Sueli, com ajuda de parceiros, organizou a viagem de encontro e a gravação de um documentário contando toda sua história. Isso estava previsto para 2019, mas com a chegada da Covid tiveram que desmarcar e aguardar.

Nesse meio tempo, em setembro de 2021, Sueli, Isael e várias famílias Maxakali resolveram retomar uma área, a Aldeia Escola Floresta, onde hoje estão. Lá cultivam o sonho de curar a terra e fortalecer a vida das crianças e jovens através de práticas educativas. Em 2022, com a diminuição nos casos de Covid, Sueli e Maiza conseguiram retomar o projeto e planejar o tão sonhado encontro. Se prepararam espiritualmente para a partida na Aldeia Escola Floresta com um grande ritual do gavião-espírito, Mõgmôka, e seguiram para o Mato Grosso Sul. Entre os dois povos, muita expectativa, emoção, histórias e memórias em meio a um processo secular de expropriação, assassinatos e devastação de seus territórios ancestrais. E mesmo com tanta violência e dor, os dois povos resistem e exibem um ritual de vida vibrante e intenso, povoado por cantos, sonhos e espíritos. 

Fotos: Roberto Romero

Profundas histórias de vida e luta não figuram nos livros de história das escolas, mas estão presentes em muitos territórios indígenas. Quem quiser saber mais sobre o encontro de Sueli e Maiza com pai, em breve o filme estará em circulação e vai contribuir muito para o entendimento do que representou a Ditadura Militar para os povos indígenas.

Agradeço a Roberto Romero e Tatiane Klein, que contribuíram com fotos e narrativas desse momento tão importante para história do povo Maxakali e Kaiowá, mas também para história do Brasil.

Compartilho o link de um outro documentário feito por Isael e Sueli que conta também as violências durante a Ditadura Militar para o povo Maxakali: GRIN-Guarda Rural Indigena (Roney Freitas e Isael Maxakali 2016) – Documentário.

 

Foto: Alexandre Maxakali

16/04/2024

DESENHOS DA FALA – por Veronica Pinheiro

 

 

“Tem gente me ouvindo?
Quem tá me ouvindo bate uma palma.
Quem tá me ouvindo bate duas palmas.
Quem tá me ouvindo bate três palmas!”

Professores espalhados pelo Brasil lançam mão dessa quadrinha para obter a atenção das crianças para uma atividade. Como professora, muitas vezes me bastava que os alunos me disponibilizassem seus ouvidos, olhos e mãos. Existe uma tal régua que mede a eficiência de um professor e nas escolas a conhecemos pela alcunha de “domínio ou controle of classe”. Quanto mais quieta uma turma, mais eficiente é o regente. O professor em atividade é chamado de professor regente. O comportamento da turma e o desempenho nas avaliações são os critérios máximos para avaliar um professor. Por quê? Porque são pontos observados quantitativamente; são índices facilmente observáveis. Nunca vi secretarias ou programas educacionais medindo o quanto uma turma ou um professor está feliz no bimestre. 

A felicidade e o bem-estar não compõem os objetivos gerais ou específicos de um planejamento escolar. Quanto está feliz o professor da turma A? Qual a turma mais feliz da escola? Felicidade é subversão em espaços de formação. A escola é uma estrutura social que representa esquemas de poder e, para isso, as pessoas que ocupam esse espaço assumem papéis sociais. Para garantir sua adaptação e permanência na função, um professor adota a máscara social do regente, se apresentando publicamente muitas vezes como um indivíduo austero. Dá um trabalho danado ser gentil na escola, sabe? Alunos não reconhecem a gentileza como características de um regente. Para eles, adultos são máquinas de dizer “não”; adultos determinam onde, quando e como. 

Na prática, “uma turma boa permanece sentada em silêncio ouvindo e escrevendo”. Delicado, né? Porque um professor que tem 40 alunos em turma não consegue trabalhar se a turma não estiver sentada, né? Tudo é feito para ninguém questionar o modelo estabelecido.

Diante de toda potência dos corpos, docentes e discentes, o sistema educacional regular quer dos professores apenas voz e mãos. Dos alunos, os professores querem ouvidos, olhos e mãos. 

Atendo semanalmente 14 turmas, passo 1h40 com cada uma delas. Confesso que tenho minhas máscaras sociais. Quando percebo que tenho a atenção de uma turma retiro a máscara da regente, algumas turmas entendem o código e seguimos de boa ao som de músicas, lendo, escrevendo e observando como a natureza está presente na escola. Porém, uma turma já percebeu que componho uma personagem para dar aula. Esses meninos, mais espertos que eu, não me deixam falar, eles não me emprestam seus ouvidos. Diante do desafio, busquei os recursos que tenho para termos qualidade em nossos encontros. 

Levei argila para aula e pensei: “Quem sabe o contato com a terra crie um tempo de escuta de qualidade?” O processo de criar com argila está também associado a práticas meditativas de concentração plena. O tato, o contato, a interação com a terra podem promover um senso de comunidade e conexão entre as pessoas do grupo. Mas não deu certo com eles.

Tentei várias coisas. Algumas funcionaram parcialmente. 

Lembrei da experiência que vivi com jovens artistas Guarani na preparação do Ciclo Nhe’ërÿ em maio de 2023. Vi quando eles cantaram e dançaram diante de uma tela em branco. Antes de pintar, eles cantaram as memórias da Nhe’ërÿ e honraram a Nhanderu com danças e palavras sagradas. Quando sentiram em seus espíritos que estavam autorizados para representar a Nhe’ërÿ com desenhos, desenharam as palavras cantadas e faladas. 

Foi quando resolvi parar de ler histórias para o terceiro ano e começar a desenhar no quadro as histórias do livro. De Elias Yaguakãg, As aventuras do Menino Kawã foram desenhadas no quadro branco e, enquanto a turma ficava empenhada em reproduzir as imagens no caderno meia-pauta, eu aproveitava para contar (às vezes, ler) as histórias. Capítulo por capítulo, as palavras ganharam imagens que eram apagadas do quadro no final da aula. Percebi que as mesmas imagens ganharam lugar nos olhos, cadernos e na memória criada em aula. Um dia, esqueci o quadro desenhado e a professora de inglês da turma não entendeu os desenhos. Então eles contaram para ela sobre Kawã, o menino indígena que era protegido pela Ka’apora’ãga. A professora me procurou na hora do almoço dizendo com sorriso nos olhos: “Eles ouviram e sabem cada detalhe da história. Eles não só te ouvem, eles estão te escutando”.

Já que chamamos nossos compartilhamentos de semeadura, precisamos saber o que a terra pode dar antes de lançar a semente. Eu queria os ouvidos, mas eles são visuais. Não ia dar certo, né?

Eles escutam com os olhos!

 

Desenhos: construção coletiva da Turma 1401 com a professora Veronica

11/04/2024

PENSAMENTOS DE CRIANÇA – por Cris Takuá

 

Fotos: Alba Rodríguez Núñez

Numa manhã de céu azul e montanha iluminada, fiquei a refletir sobre a profundeza dos pensamentos que desabrocham das criancinhas. Tudo está a pensar, observar e imaginar nesse mundo de encantos e belezas.

Kauê Karai Tataendy Mindua, meu filho de 10 anos, é um pensador desde os primeiros passos de sua vida, um grande professor das sutilezas das coisas que nos rodeiam. Cuidador de galinhas e cachorros, tem um galo chamado Pirata, que ele cuida desde que nasceu e que é cego de um olho. Kauê, com muito afeto, fez curativos e hoje Pirata é um galo que comanda o terreiro com seus cantos fortes logo ao amanhecer.

Nessa caminhada junto a esse meu pequeno professor, muitos conhecimentos vou aprendendo com ele. Uma reflexão que ele me trouxe esses dias foi sobre a relação dos humanos grandes com os seres da floresta. Ele me perguntou por que as pessoas crescem e deixam de ser “delicadosos” com os outros bichinhos e plantas. Ele pensa que muitos humanos grandes perderam essa sensibilidade de escutar e conversar com os outros seres e até com os espíritos.

Foto: Alba Rodríguez Núñez

Mergulhado em suas profundas inquietações, desde criança nas caminhadas na mata, traz falas sobre tempos outros onde ele se recorda de situações e momentos da vida que a sua memória ainda alcança. 

Curioso perceber a transparência lúcida da dimensão dos pensamentos das crianças, que tecem narrativas imaginárias e se encantam com as mais pequeninas coisas.

Meus dois filhos sempre me acompanharam nas caminhadas da vida, em lutas, trabalhos e articulações. Um dia fui convidada para comentar um filme sobre rezadores, xamãs de vários lugares do mundo, que seguem com seus cantos e rezos segurando os céus e equilibrando a vida no planeta. Kauê, atencioso que sempre foi, ao chegar em casa ficou comentando sobre o que viu e ouviu naquela noite e no dia seguinte pediu pra assistir o filme de novo comigo. Foi um momento forte para nós dois, pois ficamos encantados e ao mesmo tempo profundamente tocados por aquelas realidades tão distantes, mas tão parecidas com as nossas.

Passou um tempo e o vi concentrado com suas canetinhas coloridas desenhando tudo que estava pensando das nossas conversas e daquelas realidades tão profundas.

Desenhos: Kauê

Rezar para chover, rezar para continuar nevando, rezar para seguir os rios e mares com água limpas e peixes para comer, rezar para manter a floresta viva frente a tantas violências, como mineradoras, petrolíferas e um agronegócio avassalador.

Assim seguimos dialogando e sentindo a força que emana nos quatro cantos do mundo desses rezadores e rezadoras, que seguem, cada um da sua forma, resistindo para cuidar da nossa Terra tão machucada.

Que sigamos rezando e aprendendo com a delicadeza das crianças.

🐜🐜🐜🐜🐜🐜🐜🌱🌿💚

Foto: Alba Rodríguez Núñez

09/04/2024

PISANDO SUAVEMENTE NA TERRA OU PRIMEIRO BIMESTRE ESCOLAR – por Veronica Pinheiro

 

Colagem: Lívia, 7 anos | Aula: Eu sou natureza
Foto: Veronica Pinheiro

 

Chegamos ao Complexo da Pedreira, por uma escola. Temos muitas críticas ao sistema educacional que homogeiniza pensamentos e modos. A crítica é ampla, não está direcionada a professores ou a uma secretaria de educação específica. A escola de ensino regular cumpre bem o seu papel no projeto da imposição civilizatória europeia. Essa imposição traz como consequência, para os povos afro-pindorâmicos, uma distorção de identidade, uma vez que a escola nos ensina a ver por meio dos olhos do colonizador. Já disse Leonardo Boff:

“Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.” 

Ao ignorar saberes e ciências que não estão contidos, intencionalmente, em seus manuais, a escola provoca um processo de desterritorialização de crianças dentro de favelas, quilombos e aldeias; e assim deslegitima os conhecimentos trazidos pelas crianças e famílias, obrigando alunos a adotar a língua e a linguagem do dominador. 

Já testemunhei (como aluna, professora, coordenadora pedagógica e diretora escolar) muitas violências físicas e simbólicas cometidas dentro da escola. A violência simbólica é a violência “invisível”, que subjuga e aprisiona os sujeitos. Temos muitas críticas, no entanto não podemos ignorar que, no Brasil, crianças e adolescentes urbanizados, principalmente nas periferias, estão tão vulnerabilizados que a escola pode se tornar um espaço de construções interessantes. Então… se a escola é um lugar de homogeneização e docilização de populações, ela também pode vir a ser um lugar de ruptura. 

Qual seria então o elemento disruptivo?

Cris Takuá, minha mestra, me ensina a não apostar em respostas prontas, mas na semeadura de possibilidades de transformação que sustentam mundos. Acreditamos no fortalecimento dos territórios através do acordamento de memórias recentes e memórias muito antigas. Sendo o tempo circular, o que será e o que já foi estão sensivelmente conectados. Contar histórias para acordar não é apenas para o despertamento de uma consciência sócio-histórica, mas para firmar pilares que possibilitem uma leitura de si por meio dos seus próprios olhos. 

Por esses e outros motivos, não poderíamos, porém, chegar à escola simplesmente dizendo a professores e a alunos que eles precisam pensar de outra forma. Estamos construindo diálogos, vínculos e não aplicando uma proposta esvaziada de contextos. Chegamos pisando na terra suavemente. Muitos pais de alunos estudaram quando crianças na E.M.P. Escragnolle Dória e foram alunos das professoras que dão aula a seus filhos. Algumas professoras trabalham há mais de 15 anos aqui. É fundamental ouvir essas histórias. 

Encerramos o primeiro bimestre animados. A professora do primeiro ano nos convidou para planejarmos juntos as atividades dos próximos bimestres, incluindo em seu planejamento a ideia de uma escola viva. Alguns professores estão acompanhando voluntariamente as oficinas das crianças na escola e as rodas de leituras. Outros me acharam no Instagram e chegaram ao Selvagem.

Diretoras e coordenadora pedagógica também começaram a sonhar conosco. Até o Sol, tema do ciclo de estudos Selvagem em 2024, passará a fazer oficialmente parte do Projeto Pedagógico Anual da escola – PPA. Não fizemos palestras ou reuniões para falar dos ciclos para a equipe pedagógica, o proselitismo não faz parte do pensamento Selvagem. Como se deu então as parcerias? Pela magia do encontro. O encontro é capaz de criar vínculos de vida de maneira orgânica, natural e confluente.

 

“Que possamos então nos animar
e nos animar uma vez mais,
Nhamandu pai verdadeiro primeiro!”¹


Foto: Veronica Pinheiro

 

¹A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani I. Pierre Clastres; tradução Níeia Adan Bonatti. – Campinas, SP.

04/04/2024

KA’A, ERVA-MATE – por Cris Takuá

 

Desenho: Cris Takuá


Kunhã Tatá, Doralice, foi como uma avózinha pra mim, uma professora. Ela me apresentou e me ensinou sobre a sagrada mestra da Nhe’ërÿ: a Ka’a.

Ela contava que Ka’a e Takuá eram as filhas de Nhanderu. Um dia, andando pela Terra, ele pegou um galhinho de cedro e assoprou, criando assim uma criança, que brincava e urinava por todo canto. Então nasceu um brotinho de erva mate, a Ka’á. Era uma menina e ela já cantava com takuapu. Por isso que até hoje as mulheres cantam batendo o bastão de taquara no chão.

Takuá e Ka’a foram embora com Nhanderu quando o mundo pegou fogo, a água grande veio e acabou tudo. Mas, até hoje, os Guarani têm erva mate para fazer chimarrão e taquara para o takuapu, e para trançar a palha para peneira e balaio.

Os nhe’e kuery, os espíritos que moram com Nhanderu, estão falando para os rezadores que a terra vai acabar outra vez. Antigamente já houve um período de escuridão. Não amanhecia mais, assim mesmo veio a água. 

Nessa terra onde nós estamos agora, mais cedo ou mais tarde isso também vai acontecer. Se isso não acontecer, a gente não vai aguentar mais o calor aumentando, e vai vir a chuva, e vai vir yapó há’puá tatareve’gua, barro com fogo do céu.

Nhanderu acha que o mundo já está muito velho e quer limpar a terra. 

Assim Kunhã Tatá nos contava, dando orientações de como caminhar pela Terra, saber respeitar o tempo, entendendo as direções do vento, das nuvens e dos trovões.

Para o povo Guarani, o tempo se divide em dois: Ara Ymã, o tempo velho, e o Ara Pyau, o tempo novo. Sempre que há mudanças dos tempos, costuma-se fazer a cerimônia da Ka’a para proteção e fortalecimento.

Agora estamos iniciando mais um Ara Ymã, tempo de concentração e resguardo. Não há uma data exata do dia em que mudam os tempos. Mas Tupã kuery, os trovões, passam avisando e os rezadores entendem o sinal e logo já orientam os tembiguai, guardiões da casa de casa, para irem colher a Ka’a.

Durante a cerimônia de consagração da Ka’a aprendemos muito, vemos muitas coisas que ela nos mostra e nos coloca no nosso lugar, nos direcionando para seguir o tempo que se inicia com sabedoria e tranquilidade.

 

Foto: Carlos Papá


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No meio da madrugada

Em meios aos cantos dos tarova

Concentrada no pilão 

Me senti esverdejar

Era a força da mestra curandeira,

Ka’a, professora dos tempos

Filha de Nhanderu 

Que lindamente eu a vi saudar

O sagrado Nhamandu Mirim, Sol,

 que lentamente estava a se levantar 

Com sua cauda irradiante 

Amarelando todo nosso lar 

opy’i, casa de rezo 

Nossa escola viva a bailar

Ensinando e aprendendo 

Assim seguimos a caminhar.

🌿🌿🌿🌱

Fotos: Cris Takuá

02/04/2024

TEMPO E AMOR – por Veronica Pinheiro

 

Imaginemos partículas no espaço.
Cada partícula é um ponto de energia. 

No entanto, nada existe em si só,
tudo existe porque há uma dança. 

Neste cosmos flexível,
cada corpo que irrompe
é um novo desenho e
transforma tudo ao redor.¹

Anna Dantes

 

Em minha casa, aprendi que para se educar uma criança é preciso uma comunidade.

“nada existe em si só”

Poder voltar à escola como comunidade, pertencendo e trazendo comigo a comunidade Selvagem, me coloca noutro lugar, um lugar expandido. Trabalhei como professora em escolas, durante muitos anos fui repreendida por trazer afetos e sorrisos na mesma mochila em que trazia os livros. Nasci e fui educada em comunidade. Aprendi em casa a amar com as mãos; trabalhávamos cantando e cuidando uns dos outros. Meu avô Antônio ensinou a meu pai que o canto espanta os medos e protege a casa. O cuidado com as crianças era compartilhado. Compartilhada também era a água, a comida, as dores e as alegrias.

Uma vez ouvi que eu era feliz demais pra quem trabalhava como professora em escola pública. A observação veio de uma outra professora. Na ocasião, ela estava responsável por organizar o quadro de horário e os tempos de aula de todos os professores. Naquele ano, eu conseguia cumprir toda minha carga horária em três dias por semana. No entanto, após o observado, fui colocada para trabalhar cinco dias por semana de 7h às 17h. A punição era passar mais tempo na escola. Repleta de tempos vagos, aproveitei para conhecer melhor meu local de trabalho. Foi assim que eu aprendi a observar alunos, funcionários e todas as vidas que compunham uma unidade escolar. Ali nasceu uma companhia de teatro com os alunos do 6° ano, fruto de tempos vagos preenchidos com poemas e canções.

Na tentativa de punir afetos, recorreram ao tempo. Porém, na seara de Iroko, o tempo não é castigo. Tempo é força. Iroko é a própria representação da dimensão do tempo, pouco conhecido dos seres vivos e mortos, nascidos ou por nascer. Guardião da ancestralidade, Iroko rege os tempos e fortalece os vínculos entre o passado e o presente. Iroko é a primeira árvore que se fez plantar na Terra. Para os que descendem dos bantos, equivale ao Inquice Kitembu: o vento transformador e a árvore o corpo do tempo.

Volto à sala de aula em outros tempos, volto com uma comunidade aquilombada, prenha de seres e sonhos. São tempos de dança. Tempos de afetos largos. Afetos acolhidos. Vejo na Escola Municipal Professor Escragnólle Dória que, aos poucos, crianças, funcionários, professores e equipe diretiva se permitem entrar nessa nossa dança Selvagem.  Ousamos despertar memórias guardadas pelo tempo. Estamos escrevendo bilhetes ao vento transformador; a pedreira onde se localiza a escola já foi conhecida como o “Morro da Ventania”. Através da arte, criamos diálogos sensíveis na tentativa de acordar nos seres urbanizados que somos a natureza que também somos.

Nesse universo que se chama escola, minha comunidade Selvagem dança expandindo vida. Afetando e sendo afetada. Minha comunidade me respalda.

“Enquanto o universo se expande, o amor aglutina.”²

Foto: Veronica Pinheiro

 

 

NOTAS:
1 e 2 Caderno Selvagem – Flecha 6, Tempo e amor
https://selvagemciclo.com.br/2023/wp-content/uploads/2023/10/CADERNO49_FLECHA_6.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=PeMBCABxXCQ&t=620s&ab_channel=SELVAGEMciclodeestudossobreavida

28/03/2024

CONSTELAÇÃO DE SABERES – por Cris Takuá

 

Foto: Vhera Poty

 

Nos processos educativos, e não só neles, mas também nas relações humanas, sinto a falta do afeto e da concentração, do cuidado e da atenção!

Com isso percebo que a instituição escolar não está fazendo sentido! Esse modelo de escola que prioriza a escrita, a leitura, os números, uma enxurrada de informações efêmeras, vazias de sentidos poéticos e práticos na vida das crianças e dos jovens.

Tenho pensado e sonhado com as Escolas Vivas, que valorizam o potencial de cada um em sua delicada essência. Que dialogam sobre valores de ser e estar nos territórios de forma bela e equilibrada. Que falam das artes, falam de cura, dos cantos e encantos dessa vida que pulsa a cada novo amanhecer.

Durante doze anos, eu fui professora na escola estadual indígena em minha comunidade. Foram anos de lutas e desafios, uma constante busca de equilibrar a dureza e a beleza nessa longa caminhada. Professora de filosofia que fui, mas também de história, sociologia e geografia, sempre gostei de desenhar, sair e caminhar com os alunos, ver a floresta, escutar e aprender para além dos livros.

E nesse percurso fiz parte de um processo muito forte de busca por direitos para garantir a formação dos professores indígenas numa licenciatura intercultural indígena.

Para isso, formamos um grupo de trabalho e, durante dois anos, ficamos dialogando, debatendo e construindo o PPP, o Projeto Político Pedagógico, para o curso. Nesse processo do GT que deu origem ao PPP da licenciatura que sonhamos, desenvolvemos o conceito da “constelação curricular”, para fugir da ideia de grade, onde todos os saberes ficam divididos, fragmentados e presos.

Pensar um céu que produz conhecimento e, a partir daí, fazer a articulação  entre saberes e fazeres será o grande diferencial dessa formação que vai trazer muito fortalecimento para os territórios indígenas de São Paulo. O curso será organizado no tempo de alternância, o tempo-universidade e o tempo-comunidade.

Após muita luta, em março deste ano foi dado início ao curso de formação pela Unifesp de Santos, momento histórico para os povos indígenas em São Paulo.

Fui convidada a dar a aula inaugural junto a Carlos Papá no primeiro dia da licenciatura. Foi um momento muito especial, pois, estando fora de sala de aula há dois anos, pude trazer uma reflexão sobre as minhas inquietações sobre a escola, a monocultura mental e os desafios que vivi nos tempos em que dei aula e, ao mesmo tempo, lutei intensamente para garantir um processo formativo que respeitasse o tempo de cada cultura. 

Durante o tempo-comunidade, cada aluno da licenciatura tem que fazer estágio com orientação de um professor, que pode também ser um líder espiritual, um conhecedor da cultura ou algum membro da escola local. Para a minha surpresa, um jovem aluno me fez a proposta de ser a orientadora dele junto a Escola Viva Guarani e o coordenador Carlos Papá. Esse momento é transformador para a educação e o fortalecimento das memórias ancestrais.

As Escolas Vivas desabrocharam como um sopro de inspiração, uma semeadura multicolorida para ativar as energias de mestres, que estão muitas vezes cansados dos desafios constantes. Esperamos que, a partir do caminhar coletivo, se animem a tecer juntos tramas de narrativas, saberes e possibilidades de sonhar mais.

Desenho: Fabiano Kuaray

26/03/2024

“NA FLORESTA, EU CONSIGO FECHAR OS OLHOS” – por Veronica Pinheiro

 

Desenho colorido por Manuella 10 anos

 

Oficina 1 – O sol e floresta

Quando conectamos os seres urbanos que somos com a natureza que também somos, pegamos o caminho de volta pra casa. Voltar é um movimento tão importante quanto ir. É comum na educação falarmos de “progresso”, “avanço” e “desenvolvimento”. Parece que a vida é um movimento só de ida.


“Investir no seu desenvolvimento, com um olhar atento para o processo de aprendizagem de todo e de cada aluno é fundamental para construir trajetórias de avanço”¹. Desenvolver para avançar, Secretaria de Educação Carioca.


Numa proposta contracolonial de ensino, dizemos que desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Afirmamos que nosso caminho é de envolvimentos

Na busca de práticas de envolvimento, nossas oficinas de Aprendizagens Vivas evocam saberes e fazeres presentes no cotidiano e na memória. Entendemos que a corporeidade é o lugar de registros e agência, onde se articulam e se transmitem mundos. Pensamos em oficinas sinestésicas (sons, aromas, texturas, sabores e saberes), que, a partir da expressão artística, buscam possibilitar um espaço de envolvimento, criatividade e despertamento de memórias. 

De onde venho, dizem que arte é a conversa das almas; por isso, cantamos enquanto trabalhamos e dançamos enquanto lutamos. A arte e sua potência de convocação de um corpo coletivo pode, pela liberação dos sentidos, romper espaço e tempo. Romper espaço e tempo na tentativa de conectar seres urbanizados que somos com a natureza que também somos. 

Nossa primeira oficina na escola aconteceu em dia de operação policial na comunidade. Fazenda Botafogo é uma região conhecida pelos altos índices de roubos de cargas e tráfico  de drogas e animais silvestres. Romper com tempo e espaço era tudo o que eu queria naquele dia 14 de março. Começamos falando do sol e da selva. No dia anterior, nós tínhamos andado pela parte de trás do quintal da escola para ficar embaixo das árvores e ver de onde vinha a argila. Muitos não sabiam o que era argila, vários não sabiam do que era feita a argila. Ryan explica pra turma: 

– Argila é a massinha de terra.

Distribuídas argilas de muitas cores aos alunos, pedi que eles ouvissem a história com a argila nas mãos e que tentassem modelar com os olhos fechados. As mãos precisariam seguir o que a música falava. A oficina foi realizada com turmas do 2° ano do ensino fundamental (crianças com 7 anos de idade), as mesmas turmas que apresentam dificuldades em sentar para ouvir minhas aulas. 

Duas semanas antes, eu havia tentado uma atividade que pedia para que fechassem os olhos e quase nenhuma criança da turma conseguira; o incômodo entre elas foi tamanho que pesquisei sobre o tal medo do olho fechado. “Nictofobia, medo irracional do escuro”. No caso das crianças da escola, o medo do escuro não é irracional; desde pequenos são ensinados a estar atentos e vigilantes. Os perigos são reais.

No dia da oficina, no entanto, sentados e com a argila nas mãos, caminhávamos em pensamento pela floresta. Enquanto as almas conversavam, ouvi a seguinte frase: 

– Na floresta, eu consigo fechar os olhos. 

Depois disso, não lembro de muita coisa.

Foto: Professor Wagner Clayton

 

¹Coordenadoria de Ensino Fundamental Habilidades Curriculares 1º Bimestre 2024 Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura do Rio de Janeiro

21/03/2024

NHE’ËRŸ FLORESTA VIVA – por Cris Takuá

 

Foto: Edu Simões

 

Nhe’ërÿ floresta viva 

Nela habita um portal de conhecimento 

E memórias ancestrais machucadas pela monocultura mental 

Da colonização capitalista 

Que tenta transformar tudo em mercadoria 

Nhe’ërÿ morada de saberes e encantos 

Onde os espíritos se banham 

Onde a vida de muitos povos teceu formas de resistência

Com cantos e rezos sagrados 

Todos os seres que habitam na Nhe’ërÿ 

A árvore, a água, o coração em nosso corpo, 

tudo pulsa. 

Através do pulsar a gente se emociona, sente que está vivo. 

O pulsar de cada artista da floresta gera um ser, gera um pensamento. 

A floresta Nhe’ërÿ nos convida para acordar o pulsar. 

Nós estamos sempre aprendendo, 

a cada dia estamos aprendendo uns com os outros.

Juntos, mesmo à distância, estamos pulsando numa mesma energia 

De espalhar sementes, diante desse desequilíbrio, do sofrimento da terra. 

É esta cosmovisão e poética da vida que nos guia

E nos fortalece a cada novo dia.

Rezadores seguem entoando as boas e belas palavras para acordar 

Despertar 

Animar 

E acalmar os espíritos que nos rodeiam.

A cada novo amanhecer o Sol, Nhamandu Tenonde

Segue a nos iluminar e aquecer 

Honrando as criancinhas

Que, com sua pureza e delicadeza, seguem insistindo em nos reensinar a praticar o Bem Viver.

 

Fotos: Carlos Papá

19/03/2024

APAGA QUE TÁ FEIO! – por Veronica Pinheiro


Sala de leitura, livro 3

Leia os trechos a seguir em voz alta:

“E não era muito inteligente também. Ele tinha construído a casa de palha. Dá para acreditar? Quero dizer, quem tem a cabeça no lugar não constrói uma casa de palha.”

“Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

“Esse era um pouco mais esperto, mas não muito. Tinha construído a casa com lenha.”

“Então fui até a casa do próximo vizinho. Esse sujeito era irmão do Primeiro e do Segundo Porquinho. Devia ser o crânio da família. A casa dele era de tijolos.”¹


Será que a história dos três porquinhos ocorreu daquele jeito mesmo? E se o lobo resolvesse contar a coisa toda do seu ponto de vista? 

O lobo contou e ficou pior. Publicado pela Companhia das Letrinhas, o livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, é um livro infantil que compõe o acervo das salas de leitura das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. Só na escola em que trabalho são 32 exemplares. Uma turma de Ensino Fundamental 1 tem em média 32 crianças, portanto se trata de uma obra recomendada para ser lida em classe. Além disso, em 2013 e 2014, o texto foi colocado nos cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação carioca, suprimindo alguns trechos que classificam como ignorantes os sujeitos que constroem casas de palha ou lenha. Porém, nas duas edições do material pedagógico destinadas às crianças do 4º ano do EF aparece o trecho “Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

The book A verdadeira história dos três porquinhos deveria ser um texto para inocentar o Lobo Mau. A intenção descrita no livro é trazer ao conhecimento do leitor que o lobo foi vítima de armação. No formato de um diário, o lobo fala sua versão da estória; e fico triste que ninguém tenha sinalizado: apaga esse trecho, tá feio. Pelo contrário, o desabafo do lobo foi escrito, revisado, publicado e distribuído para crianças do ensino fundamental.

Gostaria de trazer novamente uma informação que aparece no diário da primeira semana: a Pedreira, favela onde está localizada a escola em que dou aula, possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Ao caminhar pela estrada principal do bairro vemos muitas casas de lenha. 

Foto da Estrada de Botafogo. Acervo Pessoal Lenon Suhett, Pesquisa Geografia e Comunidade Escolar
(Lenon e Veronica foram diretores de escola juntos de 2019 a 2021)

A verdadeira história dos três porquinhos fere diretamente as crianças, a comunidade e as populações tradicionais que, manifestando abundância, conhecimentos ancestrais e relação com a terra, constroem suas casas com palha, lenha e terra. 

Carter G. Woodson fala que o sistema educacional eurocentrado está a serviço da deseducação do negro estadunidense e convoca a população negra a desenvolver e executar um programa próprio. Ler o diário de um lobo me fez lembrar do professor Woodson e pensar que precisamos de práticas educacionais decoloniais efetivas e não instagramáveis. 

Foto de casa na Aldeia Guarani Rio Silveira. Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

Ao longo do trimestre, vamos construir nossa casinha com bambu, palha e argila. As crianças precisam saber que o que o lobo chama de “pouco inteligente” chamamos de conhecimento tradicional, bioconstrução, e que é preciso saber muita coisa para se levantar uma casa sem comprar nada. Povos indígenas e quilombolas conhecem muito sobre solo, plantas, sabem onde o sol nasce e onde fica a lua em relação à casa construída; e tudo isso é sobre relacionamento. Recontaremos histórias, ativaremos fazeres, saberes e memórias.

Que o sol nos ajude nessa caminhada. 

O lobo já deixou escrito o que ele pensa. Não esperemos nada dele.

Casa no quilombo São José. O quilombo São José existe há cerca de 150 anos e está localizado na cidade de Valença (RJ).
É uma comunidade de descendentes de pessoas escravizadas que vieram da Angola e do Congo, atualmente cerca de 200 quilombolas
moram no local e suas casas são feitas de adobe, pau-a-pique e telhado de palha.
Foto: Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

 

¹SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.

14/03/2024

O QUE SEGURA OS CÉUS? – por Cris Takuá

As palmeiras nativas da Nhe’ërÿ sustentam os céus desde a origem de criação do mundo e dos seres que nele habitam. O céu azul que hoje existe reflete as folhagens das palmeiras azuis que, no início do mundo, fizeram essa transição entre os mundos que habitamos.

Existem muitas palmeiras que, com sua beleza, suas palhas, frutinhos e sombras, vêm encantando e sustentando a vida aqui em meio à floresta. 

Em fevereiro, organizamos na Escola Viva Guarani uma oficina para produzir junto dos jovens os desenhos de algumas espécies de palmeiras para compor a exposição Mba’é Ka’á, o que tem na mata: Barbosa Rodrigues entre plantas e pajés, que acontece entre 08 de março e 08 de setembro, no museu do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. 

Coordenada por Carlos Papá, a oficina proporcionou uma leitura e observação atenta do livro Sertum Palmarum Brasiliensis, de J. Barbosa Rodrigues, e também caminhadas na floresta da Aldeia Rio Silveira, para ver e reconhecer as palmeiras que estão ao nosso redor.

Foram dias de muita animação e escutas, através das histórias contadas por Papá sobre a importância das palmeiras para o equilíbrio da mata e para a sustentação dos céus que habitamos desde o início do escuro originário.

Algumas crianças, acompanhando seus pais, criaram também desenhos que refletiam suas percepções das palmeiras que observaram e, juntos, criamos uma linda apresentação de 10 espécies.

 

As palmeiras azuis 

São seres espirituais 

De um mundo cosmológico 

Que nos mostram os portais

Entre os mundos.

Na floresta existem seres nativos 

Jataí, Jussara, Jerivá 

Guaricanga, Brejaúba, Butiá 

Jejy ró- amargo, Tuku, Indaiá

Espécies de palmitos 

Palmeiras

Que alimentam e encantam 

Sombreiam nosso caminhar 

Cobrem casas 

E revestem a floresta

De um esverdear profundo.

Nhe’ërÿ terra das palmeiras 

Que seguem sustentando nosso caminhar 

Nessa terra

……..Cristine Takuá……..


Desenhos produzidos na oficina Guarani, 2024

12/03/2024

AQUELA TIA ALI VAI CONVERSAR COM VOCÊ – por Veronica Pinheiro

 

Massinha: Pérola, 06 anos


Na primeira semana de aula, minha função era acolher os que choravam. Achei graça. Depois entendi o tamanho da responsabilidade. Meus pequenos companheiros falavam de uma tal dor na barriga e, além das lágrimas, traziam nos olhos o desamparo. 

Ao recebê-los, eu dizia que ficaria ali o tempo que fosse necessário. Perguntava onde o medo estava. E as mãozinhas iam direto para a barriga. É fome? Para alívio do meu coração, as respostas foram todas negativas. Surgia então a última pergunta: eu acho que vi medo nos seus olhos; você tem medo de quê?

De maneira geral, o processo de escolarização desterritorializa dentro do território. Deixa a identidade da criança em segundo plano, determina o que é importante ou não para se saber, determina o que comer, como se vestir, distância o sagrado e impõe novos modos de vida. O tal do conhecimento universal, os conhecimentos básicos e o ensino fundamental norteiam os currículos. Aos poucos, um indivíduo vira uma classe; aos poucos, os corpos são docilizados. E quando menos esperamos… todos os desenhos são pintados dentro da linha.

São tantos os complicadores sociais que a escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana, invadindo aldeias, quilombos e periferias como braço do Estado. A escola apresenta o mundo às crianças. E para muitos, em muitos lugares, é a única instituição habilitada para transmitir conhecimento. No entanto, se existe um pensamento que norteia, se o mesmo está a serviço do colonialismo para sujeição dos sujeitos e adormecimento das memórias… deve haver um pensamento que suleia.

Sugiro que busquemos sulear os modos de se estar na escola. Criemos ambientes seguros para professores e crianças pintarem fora das linhas que contornam os desenhos. Aceitemos o bagunceiro e seu corpo insubmisso. Penso que, durante o processo de suleamento, as memórias de vida e princípios de sustentação dos territórios serão despertados. Sulear é pluriversalizar os modos de existir e se relacionar com a vida. 

De certa forma, aquelas crianças, que choraram na primeira semana de aula, sabiam que precisariam deixar, além da casa, um tanto de si pra fora dos muros da escola. Sei que alguém vai dizer: Mas algumas crianças vão sorrindo! É, eu sei, e essas me preocupam mais.

07/03/2024

RESISTIR PARA SOBREVIVER – por Cristine Takuá

Os jovens estão buscando encontrar a essência de sua missão, deixada por Nhanderu no momento do parto, quando chegam a esse mundo de imperfeição. Ao longo dos tempos, muitos estão se esquecendo deste compromisso que foi destinado a cada um e, ao crescer e se desenvolver, vão trilhando uma maneira triste de viver, o caminho do Teko vai (a má e feia forma de ser e estar no território), diferente do Teko Porã, que é o Bem Viver, a boa e bela forma de caminhar, de estar em equilíbrio na vida. 

Com isso a depressão, a preguiça, o suicídio e formas descompassadas de se colocar no mundo têm aumentado muito entre jovens indígenas. Reflexo de uma histórica trama de violências inconstitucionais e de feridas nas relações humanas. Se desfazer desses emaranhados de desequilíbrios depende muito de uma teia de afeto e cuidado.

Foto: Vherá Poty

As casas de reza são espaços coletivos de cura e convivência, são escolas ancestrais em que, através das práticas e da presença dos rezadores e das rezadoras, vamos reaprendendo a nos colocar no mundo, a lidar com as dores e desafios. As plantinhas, mestras do caminho profundo, nos ensinam a nos equilibrar entre a beleza e a dureza da vida, e assim desacelerar as duras e pesadas pegadas que muitos vêm deixando na Terra.

Nhamandu Mirim, o Sol sagrado, todas as manhãs se levanta para nos iluminar e para que tenhamos força e coragem. 

Assim seguimos….

 

Depois da tormenta vem a calmaria 

Depois da tempestade o arco íris brota 

No entardecer

Sinais de mudanças e transformações

Sinalizam o renascimento da matéria

Espíritos cantantes voam na lua cheia

Espalhando mensagens de amor

A pequenos seres pensantes

A vida é feita de escolhas 

Sendo cada caminho modelado 

Por nossos anseios 

Cada destino direcionado 

Pelos seres sagrados

Momentos de tormentas nos revelam

Que há a necessidade de metamorfosear

Nossa relações, nossos passos 

Nessa jornada da Vida

Não basta engrandecer a matéria 

Temos que remodelar a alma

Cuidar com zelo e carinho 

Para ultrapassar as barreiras 

Do desconhecido 

E mergulhar no universo multicolorido

Da sábia ensenhança 

Que habita para além das aparências

Do sorriso de criança.

Busco o silêncio 

Das profundas cantigas 

Um suspiro pra alma

Um descanso pra mente 

Pra seguir os caminhos dos sonhos meus…

……..Cristine Takuá……..

Foto: Alexandre Maxakali

05/03/2024

A CAMINHO DA PEDREIRA – por Veronica Pinheiro

 

Chegamos à Pedreira. Um complexo com o menor IDH da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Chegamos ao antigo Morro da Ventania, onde o vento corria solto e falava alto. Dizem que quando o vento assobiava na Pedreira, nada mais se ouvia. O Morro da Pedreira está localizado no Bairro de Fazenda Botafogo, entre Pavuna, Costa Barros e Acari. Curiosamente, o vento não fala mais naquele lugar. Os escombros de uma antiga senzala, um cemitério de escravos, alguns troncos de tortura e uma pedreira desativada são as camadas mais recentes sob o solo desse caminho que começamos a trilhar. 

Uma antiga linha de trem cortava a mata densa da fazenda Botafogo. O trem expresso transportava, na década de 1970, pessoas à procura de trabalho e de um novo lar. Estas histórias ainda são ouvidas no território: “Cheguei na Pedreira em 04 de setembro de 1970. Até aqui, eu morei em outros lugares. Vim do Espírito Santo, mas sou de Minas Gerais. Vim com marido e seis filhos”, diz dona Geralda, uma das primeiras moradoras do complexo da Pedreira.

Mapa da Pedreira – João, 6 anos

O trem transformou o lugar onde o vento cantava numa intersecção de corpos-territórios. Corpos em trânsito confluíram, se fortaleceram e construíram uma comunidade. “Quando a gente confluencia, não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende”, diz Nego Bispo em seu livro A terra dá, a terra quer (Ubu Editora, 2023). A confluência é uma força que amplia. Esta força trouxe o Selvagem até aqui. Uma confluência solar: Sol, vento, pedreira, memórias guardadas na terra e trazida nos corpos. A corporeidade é um lugar de registros e agência, nela se articulam e se transmitem mundos.  

Nosso caminho na Pedreira é junto à Escola Municipal Professor Escragnolle Dória, para nós, Casa das Crianças. Acreditamos na confluência dos corpos –  discentes, docentes, plantas, cores, vento, Sol. Em 2024, iniciamos um percurso sobre aprendizagens vivas dentro de uma escola. A sala de leituras da escola será nosso núcleo de irradiação Selvagem. Lá receberemos 439 crianças por semana e 19 professores por mês. Serão 200 dias letivos; 8 oficinas de artes (para crianças e professores) e um grande encontro festivo no final do ano. Na mediação desse movimento, estarei como professora das rodas de leituras e como coordenadora das atividades de artes. Em 10 dias de aula, já passamos por tantas coisas: de medo de bate-bola no bailinho de carnaval a medo de bala perdida durante o turno escolar. Já lemos 2 livros, choramos, sorrimos e brincamos também.

Nesse percurso Selvagem, compartilharemos com crianças e professores reflexões para a construção de uma escola viva. Compartilhamos uma outra forma de ser e estar no mundo, lembrando que a vida e o bem viver devem fazer parte do cotidiano escolar. Não estamos a serviço da educação. Para além de cumprir uma diretriz nacional¹, subimos a pedreira  ativando memórias, saberes e fazeres. Um percurso solar para sentir, ouvir, criar e brincar. Seguiremos por aqui semeando palavras, mudas e mundos. Guiados pelos ventos, estamos sob a luz do Sol, a serviço da vida.

 

¹ The Lei nº 11.645, de 10 março de 2008 torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores, as licenciaturas.

23/04/2024

CADÊ O RIO QUE ESTAVA AQUI? – por Veronica Pinheiro

 

Turma do 1º ano Roda de Leituras: A natureza que vive aqui
Foto: Professor Wagner Clayton

Os livros didáticos de história do Brasil sempre apresentaram a vida dos povos indígenas e quilombolas de forma preconceituosa. As lacunas estabelecidas, intencionalmente, nos ensino básico e superior formou, deformou e conformou gerações. Ao apagamento sistemático de produção de saberes produzido por grupos contra-hegemônicos¹, chamamos de EPISTEMICÍDIO. Quando o conhecimento científico se torna a única maneira de ler e entender a vida, fica estabelecido uma estrutura monocultural que tenta desqualificar outras formas de conhecimento. 

Ouvi, mês passado, num evento de uma universidade federal, que ”somos vira-latas”. A fala veio de uma doutoranda bem intencionada que tentava explicar que a mestiçagem estrutura toda a forma de ser e existir do brasileiro. Vira-latas são SRD, cães sem raça definida, sem origem delimitada com misturas de duas ou mais raças. Com todo amor que tenho aos vira-latas, o pensamento que compara o povo brasileiro a cães sem origem delimitada é perverso do começo ao fim.  

Começo a contar histórias indígenas e afro-pindorâmicas da seguinte forma: 

Há quinhentos anos, não existia um povo chamado de brasileiro. Quem morava aqui (Rio de Janeiro) eram outros povos. Eram nações que falavam línguas diferentes, tinham seu próprio jeito de ser e seu próprio nome. E sempre perguntam: Quem vivia aqui? 

A armadilha colonial é tão bem feita que levamos às crianças apenas as informações contidas nos livros. Fazemos isso, mesmo sabendo que os colonizadores, que tentaram identificar o nome de cada povo, criaram muitas confusões por desconhecer a língua falada ou por simplesmente preferir genericamente designar nações.

A escola onde estamos tecendo memórias está localizada próxima aos rios Acari (peixes), Irajá (cuia de mel) e Pavuna (lugar atoladiço). Os rios dão nome aos bairros. E às suas margens, além de mata ciliar, encontramos fios de memória para nossas tessituras. 

No ciclo presencial AYVU PARÁ, que aconteceu no dia 31 de maio de 2023 no Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, Carlos Papá mediou aulas com saberes profundos sobre a Nhe’ërÿ (o lugar onde os espíritos se banham, assim os Guarani chamam a Mata Atlântica). Durante os dias de encontro, a caminho do restaurante onde almoçamos, Papá me fez a seguinte pergunta: “O que você está ouvindo?” 

Era hora de almoço, um dia de semana na Barra Funda, São Paulo capital. Eu ouvia crianças indo ou voltando da escola, carros e ônibus na avenida Matarazzo, gente passando. Papá vendo que eu não entendi a pergunta, parou, olhou para a tampa de um bueiro e disse: “Você não ouve o rio? Tem um rio preso aqui dentro.”

Depois da escuta ser gentilmente conduzida, ouvi o rio. Sua voz era diferente dos rios que eu tinha acabado de ouvir em viagam no Recôncavo Baiano. Uma voz densa. Era tanta força e vida que eu fiquei ali por alguns minutos. 

Os rios sabem de muitas coisas. Certamente eles sabem da origem de muitas coisas. Nada nesse território tem origem desconhecida. A questão é: quem estamos ouvindo? Os livros didáticos trazem informações sobre pessoas indígenas e quilombolas, porém raramente indígenas e quilombolas participam da organização dos conteúdos. Mais raro ainda é encontrar parcerias que não tratem pessoas indígenas e quilombolas como objetos informantes ou interlocutores-informantes.

Sonho com o dia que poderei, como professora, colocar nas referências dos meus textos e planejamento de aula: “palavras do Rio Acari” ou “canto do beija-flor que pousou na janela da sala”.

A lei 11.645 torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio. Na prática, os livros são a referência, e as aulas são encontros para repasses de números, dados, datas e informações sobre algo desconhecido. A história e a cultura idígena e afro-diaspórica se estabelecem em presença, não em referência. O mito ou o itã são memórias vivas de povos vivos. A corporeidade é o lugar de articulações e agências de vida. O território vibra a força da vida; sendo ao mesmo tempo corpo, chão, rio, ar e todos os seres que existem naquele lugar. Por isso, insistimos em falar de escolas vivas. Escolas de presença, com memórias vivas.

Para isso, precisamos refazer percursos. Como professora, devo estar disponível aos processos de desaprendizagens. De deseducação. Preciso criar outra relação com o tempo/bimestre/cronograma/agenda. O que fala o rio Acari me importa mais que o que contam os livros. Quando as crianças me perguntam: “Qual povo vivia aqui?”

Eu respondo: “Cadê o rio que estava aqui? Algum rio passa por aqui? Porque os rios certamente sabem mais sobre esse lugar do que os livros que li.”

A pergunta rendeu: Agora temos um projeto junto a coordenadora pedagógica da unidade para a escola e comunidade escolar. Cadê o rio que estava aqui? O que os rios dizem sobre nós?

Se você ouve rios e sabe de coisas líquidas, mais ou menos torrenciais, precisamos de você para construir percursos. Para caminhar pelas águas, temos uma canoa chamada Encantada. E nela sempre cabe mais um. Aceita o convite?

 

Apresentação da sala de Leitura e o 4º ano para escola: A culpa não é da chuva
Fotos: Professor Wagner Clayton 

 

¹ Entende-se por movimentos contra-hegemônicos as práticas de resistência aos discurso de gestão dominantes que buscam contestar e escapar à disciplina da ordem do sistema capitalista. SULLIVAN, S; SPICER, A; BÖHM, S. Becoming global (un)civil society: Counter-Hegemonic Struggle and the Indymedia Network. Globalizations, 8(5), 703–717. https://doi.org/10.1080/14747731.2011.617571

16/04/2024

DESENHOS DA FALA – por Veronica Pinheiro

 

 

“Tem gente me ouvindo?
Quem tá me ouvindo bate uma palma.
Quem tá me ouvindo bate duas palmas.
Quem tá me ouvindo bate três palmas!”

Professores espalhados pelo Brasil lançam mão dessa quadrinha para obter a atenção das crianças para uma atividade. Como professora, muitas vezes me bastava que os alunos me disponibilizassem seus ouvidos, olhos e mãos. Existe uma tal régua que mede a eficiência de um professor e nas escolas a conhecemos pela alcunha de “domínio ou controle of classe”. Quanto mais quieta uma turma, mais eficiente é o regente. O professor em atividade é chamado de professor regente. O comportamento da turma e o desempenho nas avaliações são os critérios máximos para avaliar um professor. Por quê? Porque são pontos observados quantitativamente; são índices facilmente observáveis. Nunca vi secretarias ou programas educacionais medindo o quanto uma turma ou um professor está feliz no bimestre. 

A felicidade e o bem-estar não compõem os objetivos gerais ou específicos de um planejamento escolar. Quanto está feliz o professor da turma A? Qual a turma mais feliz da escola? Felicidade é subversão em espaços de formação. A escola é uma estrutura social que representa esquemas de poder e, para isso, as pessoas que ocupam esse espaço assumem papéis sociais. Para garantir sua adaptação e permanência na função, um professor adota a máscara social do regente, se apresentando publicamente muitas vezes como um indivíduo austero. Dá um trabalho danado ser gentil na escola, sabe? Alunos não reconhecem a gentileza como características de um regente. Para eles, adultos são máquinas de dizer “não”; adultos determinam onde, quando e como. 

Na prática, “uma turma boa permanece sentada em silêncio ouvindo e escrevendo”. Delicado, né? Porque um professor que tem 40 alunos em turma não consegue trabalhar se a turma não estiver sentada, né? Tudo é feito para ninguém questionar o modelo estabelecido.

Diante de toda potência dos corpos, docentes e discentes, o sistema educacional regular quer dos professores apenas voz e mãos. Dos alunos, os professores querem ouvidos, olhos e mãos. 

Atendo semanalmente 14 turmas, passo 1h40 com cada uma delas. Confesso que tenho minhas máscaras sociais. Quando percebo que tenho a atenção de uma turma retiro a máscara da regente, algumas turmas entendem o código e seguimos de boa ao som de músicas, lendo, escrevendo e observando como a natureza está presente na escola. Porém, uma turma já percebeu que componho uma personagem para dar aula. Esses meninos, mais espertos que eu, não me deixam falar, eles não me emprestam seus ouvidos. Diante do desafio, busquei os recursos que tenho para termos qualidade em nossos encontros. 

Levei argila para aula e pensei: “Quem sabe o contato com a terra crie um tempo de escuta de qualidade?” O processo de criar com argila está também associado a práticas meditativas de concentração plena. O tato, o contato, a interação com a terra podem promover um senso de comunidade e conexão entre as pessoas do grupo. Mas não deu certo com eles.

Tentei várias coisas. Algumas funcionaram parcialmente. 

Lembrei da experiência que vivi com jovens artistas Guarani na preparação do Ciclo Nhe’ërÿ em maio de 2023. Vi quando eles cantaram e dançaram diante de uma tela em branco. Antes de pintar, eles cantaram as memórias da Nhe’ërÿ e honraram a Nhanderu com danças e palavras sagradas. Quando sentiram em seus espíritos que estavam autorizados para representar a Nhe’ërÿ com desenhos, desenharam as palavras cantadas e faladas. 

Foi quando resolvi parar de ler histórias para o terceiro ano e começar a desenhar no quadro as histórias do livro. De Elias Yaguakãg, As aventuras do Menino Kawã foram desenhadas no quadro branco e, enquanto a turma ficava empenhada em reproduzir as imagens no caderno meia-pauta, eu aproveitava para contar (às vezes, ler) as histórias. Capítulo por capítulo, as palavras ganharam imagens que eram apagadas do quadro no final da aula. Percebi que as mesmas imagens ganharam lugar nos olhos, cadernos e na memória criada em aula. Um dia, esqueci o quadro desenhado e a professora de inglês da turma não entendeu os desenhos. Então eles contaram para ela sobre Kawã, o menino indígena que era protegido pela Ka’apora’ãga. A professora me procurou na hora do almoço dizendo com sorriso nos olhos: “Eles ouviram e sabem cada detalhe da história. Eles não só te ouvem, eles estão te escutando”.

Já que chamamos nossos compartilhamentos de semeadura, precisamos saber o que a terra pode dar antes de lançar a semente. Eu queria os ouvidos, mas eles são visuais. Não ia dar certo, né?

Eles escutam com os olhos!

 

Desenhos: construção coletiva da Turma 1401 com a professora Veronica

09/04/2024

PISANDO SUAVEMENTE NA TERRA OU PRIMEIRO BIMESTRE ESCOLAR – por Veronica Pinheiro

 

Colagem: Lívia, 7 anos | Aula: Eu sou natureza
Foto: Veronica Pinheiro

 

Chegamos ao Complexo da Pedreira, por uma escola. Temos muitas críticas ao sistema educacional que homogeiniza pensamentos e modos. A crítica é ampla, não está direcionada a professores ou a uma secretaria de educação específica. A escola de ensino regular cumpre bem o seu papel no projeto da imposição civilizatória europeia. Essa imposição traz como consequência, para os povos afro-pindorâmicos, uma distorção de identidade, uma vez que a escola nos ensina a ver por meio dos olhos do colonizador. Já disse Leonardo Boff:

“Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.” 

Ao ignorar saberes e ciências que não estão contidos, intencionalmente, em seus manuais, a escola provoca um processo de desterritorialização de crianças dentro de favelas, quilombos e aldeias; e assim deslegitima os conhecimentos trazidos pelas crianças e famílias, obrigando alunos a adotar a língua e a linguagem do dominador. 

Já testemunhei (como aluna, professora, coordenadora pedagógica e diretora escolar) muitas violências físicas e simbólicas cometidas dentro da escola. A violência simbólica é a violência “invisível”, que subjuga e aprisiona os sujeitos. Temos muitas críticas, no entanto não podemos ignorar que, no Brasil, crianças e adolescentes urbanizados, principalmente nas periferias, estão tão vulnerabilizados que a escola pode se tornar um espaço de construções interessantes. Então… se a escola é um lugar de homogeneização e docilização de populações, ela também pode vir a ser um lugar de ruptura. 

Qual seria então o elemento disruptivo?

Cris Takuá, minha mestra, me ensina a não apostar em respostas prontas, mas na semeadura de possibilidades de transformação que sustentam mundos. Acreditamos no fortalecimento dos territórios através do acordamento de memórias recentes e memórias muito antigas. Sendo o tempo circular, o que será e o que já foi estão sensivelmente conectados. Contar histórias para acordar não é apenas para o despertamento de uma consciência sócio-histórica, mas para firmar pilares que possibilitem uma leitura de si por meio dos seus próprios olhos. 

Por esses e outros motivos, não poderíamos, porém, chegar à escola simplesmente dizendo a professores e a alunos que eles precisam pensar de outra forma. Estamos construindo diálogos, vínculos e não aplicando uma proposta esvaziada de contextos. Chegamos pisando na terra suavemente. Muitos pais de alunos estudaram quando crianças na E.M.P. Escragnolle Dória e foram alunos das professoras que dão aula a seus filhos. Algumas professoras trabalham há mais de 15 anos aqui. É fundamental ouvir essas histórias. 

Encerramos o primeiro bimestre animados. A professora do primeiro ano nos convidou para planejarmos juntos as atividades dos próximos bimestres, incluindo em seu planejamento a ideia de uma escola viva. Alguns professores estão acompanhando voluntariamente as oficinas das crianças na escola e as rodas de leituras. Outros me acharam no Instagram e chegaram ao Selvagem.

Diretoras e coordenadora pedagógica também começaram a sonhar conosco. Até o Sol, tema do ciclo de estudos Selvagem em 2024, passará a fazer oficialmente parte do Projeto Pedagógico Anual da escola – PPA. Não fizemos palestras ou reuniões para falar dos ciclos para a equipe pedagógica, o proselitismo não faz parte do pensamento Selvagem. Como se deu então as parcerias? Pela magia do encontro. O encontro é capaz de criar vínculos de vida de maneira orgânica, natural e confluente.

 

“Que possamos então nos animar
e nos animar uma vez mais,
Nhamandu pai verdadeiro primeiro!”¹


Foto: Veronica Pinheiro

 

¹A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani I. Pierre Clastres; tradução Níeia Adan Bonatti. – Campinas, SP.

02/04/2024

TEMPO E AMOR – por Veronica Pinheiro

 

Imaginemos partículas no espaço.
Cada partícula é um ponto de energia. 

No entanto, nada existe em si só,
tudo existe porque há uma dança. 

Neste cosmos flexível,
cada corpo que irrompe
é um novo desenho e
transforma tudo ao redor.¹

Anna Dantes

 

Em minha casa, aprendi que para se educar uma criança é preciso uma comunidade.

“nada existe em si só”

Poder voltar à escola como comunidade, pertencendo e trazendo comigo a comunidade Selvagem, me coloca noutro lugar, um lugar expandido. Trabalhei como professora em escolas, durante muitos anos fui repreendida por trazer afetos e sorrisos na mesma mochila em que trazia os livros. Nasci e fui educada em comunidade. Aprendi em casa a amar com as mãos; trabalhávamos cantando e cuidando uns dos outros. Meu avô Antônio ensinou a meu pai que o canto espanta os medos e protege a casa. O cuidado com as crianças era compartilhado. Compartilhada também era a água, a comida, as dores e as alegrias.

Uma vez ouvi que eu era feliz demais pra quem trabalhava como professora em escola pública. A observação veio de uma outra professora. Na ocasião, ela estava responsável por organizar o quadro de horário e os tempos de aula de todos os professores. Naquele ano, eu conseguia cumprir toda minha carga horária em três dias por semana. No entanto, após o observado, fui colocada para trabalhar cinco dias por semana de 7h às 17h. A punição era passar mais tempo na escola. Repleta de tempos vagos, aproveitei para conhecer melhor meu local de trabalho. Foi assim que eu aprendi a observar alunos, funcionários e todas as vidas que compunham uma unidade escolar. Ali nasceu uma companhia de teatro com os alunos do 6° ano, fruto de tempos vagos preenchidos com poemas e canções.

Na tentativa de punir afetos, recorreram ao tempo. Porém, na seara de Iroko, o tempo não é castigo. Tempo é força. Iroko é a própria representação da dimensão do tempo, pouco conhecido dos seres vivos e mortos, nascidos ou por nascer. Guardião da ancestralidade, Iroko rege os tempos e fortalece os vínculos entre o passado e o presente. Iroko é a primeira árvore que se fez plantar na Terra. Para os que descendem dos bantos, equivale ao Inquice Kitembu: o vento transformador e a árvore o corpo do tempo.

Volto à sala de aula em outros tempos, volto com uma comunidade aquilombada, prenha de seres e sonhos. São tempos de dança. Tempos de afetos largos. Afetos acolhidos. Vejo na Escola Municipal Professor Escragnólle Dória que, aos poucos, crianças, funcionários, professores e equipe diretiva se permitem entrar nessa nossa dança Selvagem.  Ousamos despertar memórias guardadas pelo tempo. Estamos escrevendo bilhetes ao vento transformador; a pedreira onde se localiza a escola já foi conhecida como o “Morro da Ventania”. Através da arte, criamos diálogos sensíveis na tentativa de acordar nos seres urbanizados que somos a natureza que também somos.

Nesse universo que se chama escola, minha comunidade Selvagem dança expandindo vida. Afetando e sendo afetada. Minha comunidade me respalda.

“Enquanto o universo se expande, o amor aglutina.”²

Foto: Veronica Pinheiro

 

 

NOTAS:
1 e 2 Caderno Selvagem – Flecha 6, Tempo e amor
https://selvagemciclo.com.br/2023/wp-content/uploads/2023/10/CADERNO49_FLECHA_6.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=PeMBCABxXCQ&t=620s&ab_channel=SELVAGEMciclodeestudossobreavida

26/03/2024

“NA FLORESTA, EU CONSIGO FECHAR OS OLHOS” – por Veronica Pinheiro

 

Desenho colorido por Manuella 10 anos

 

Oficina 1 – O sol e floresta

Quando conectamos os seres urbanos que somos com a natureza que também somos, pegamos o caminho de volta pra casa. Voltar é um movimento tão importante quanto ir. É comum na educação falarmos de “progresso”, “avanço” e “desenvolvimento”. Parece que a vida é um movimento só de ida.


“Investir no seu desenvolvimento, com um olhar atento para o processo de aprendizagem de todo e de cada aluno é fundamental para construir trajetórias de avanço”¹. Desenvolver para avançar, Secretaria de Educação Carioca.


Numa proposta contracolonial de ensino, dizemos que desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Afirmamos que nosso caminho é de envolvimentos

Na busca de práticas de envolvimento, nossas oficinas de Aprendizagens Vivas evocam saberes e fazeres presentes no cotidiano e na memória. Entendemos que a corporeidade é o lugar de registros e agência, onde se articulam e se transmitem mundos. Pensamos em oficinas sinestésicas (sons, aromas, texturas, sabores e saberes), que, a partir da expressão artística, buscam possibilitar um espaço de envolvimento, criatividade e despertamento de memórias. 

De onde venho, dizem que arte é a conversa das almas; por isso, cantamos enquanto trabalhamos e dançamos enquanto lutamos. A arte e sua potência de convocação de um corpo coletivo pode, pela liberação dos sentidos, romper espaço e tempo. Romper espaço e tempo na tentativa de conectar seres urbanizados que somos com a natureza que também somos. 

Nossa primeira oficina na escola aconteceu em dia de operação policial na comunidade. Fazenda Botafogo é uma região conhecida pelos altos índices de roubos de cargas e tráfico  de drogas e animais silvestres. Romper com tempo e espaço era tudo o que eu queria naquele dia 14 de março. Começamos falando do sol e da selva. No dia anterior, nós tínhamos andado pela parte de trás do quintal da escola para ficar embaixo das árvores e ver de onde vinha a argila. Muitos não sabiam o que era argila, vários não sabiam do que era feita a argila. Ryan explica pra turma: 

– Argila é a massinha de terra.

Distribuídas argilas de muitas cores aos alunos, pedi que eles ouvissem a história com a argila nas mãos e que tentassem modelar com os olhos fechados. As mãos precisariam seguir o que a música falava. A oficina foi realizada com turmas do 2° ano do ensino fundamental (crianças com 7 anos de idade), as mesmas turmas que apresentam dificuldades em sentar para ouvir minhas aulas. 

Duas semanas antes, eu havia tentado uma atividade que pedia para que fechassem os olhos e quase nenhuma criança da turma conseguira; o incômodo entre elas foi tamanho que pesquisei sobre o tal medo do olho fechado. “Nictofobia, medo irracional do escuro”. No caso das crianças da escola, o medo do escuro não é irracional; desde pequenos são ensinados a estar atentos e vigilantes. Os perigos são reais.

No dia da oficina, no entanto, sentados e com a argila nas mãos, caminhávamos em pensamento pela floresta. Enquanto as almas conversavam, ouvi a seguinte frase: 

– Na floresta, eu consigo fechar os olhos. 

Depois disso, não lembro de muita coisa.

Foto: Professor Wagner Clayton

 

¹Coordenadoria de Ensino Fundamental Habilidades Curriculares 1º Bimestre 2024 Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura do Rio de Janeiro

19/03/2024

APAGA QUE TÁ FEIO! – por Veronica Pinheiro


Sala de leitura, livro 3

Leia os trechos a seguir em voz alta:

“E não era muito inteligente também. Ele tinha construído a casa de palha. Dá para acreditar? Quero dizer, quem tem a cabeça no lugar não constrói uma casa de palha.”

“Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

“Esse era um pouco mais esperto, mas não muito. Tinha construído a casa com lenha.”

“Então fui até a casa do próximo vizinho. Esse sujeito era irmão do Primeiro e do Segundo Porquinho. Devia ser o crânio da família. A casa dele era de tijolos.”¹


Será que a história dos três porquinhos ocorreu daquele jeito mesmo? E se o lobo resolvesse contar a coisa toda do seu ponto de vista? 

O lobo contou e ficou pior. Publicado pela Companhia das Letrinhas, o livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, é um livro infantil que compõe o acervo das salas de leitura das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. Só na escola em que trabalho são 32 exemplares. Uma turma de Ensino Fundamental 1 tem em média 32 crianças, portanto se trata de uma obra recomendada para ser lida em classe. Além disso, em 2013 e 2014, o texto foi colocado nos cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação carioca, suprimindo alguns trechos que classificam como ignorantes os sujeitos que constroem casas de palha ou lenha. Porém, nas duas edições do material pedagógico destinadas às crianças do 4º ano do EF aparece o trecho “Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

The book A verdadeira história dos três porquinhos deveria ser um texto para inocentar o Lobo Mau. A intenção descrita no livro é trazer ao conhecimento do leitor que o lobo foi vítima de armação. No formato de um diário, o lobo fala sua versão da estória; e fico triste que ninguém tenha sinalizado: apaga esse trecho, tá feio. Pelo contrário, o desabafo do lobo foi escrito, revisado, publicado e distribuído para crianças do ensino fundamental.

Gostaria de trazer novamente uma informação que aparece no diário da primeira semana: a Pedreira, favela onde está localizada a escola em que dou aula, possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Ao caminhar pela estrada principal do bairro vemos muitas casas de lenha. 

Foto da Estrada de Botafogo. Acervo Pessoal Lenon Suhett, Pesquisa Geografia e Comunidade Escolar
(Lenon e Veronica foram diretores de escola juntos de 2019 a 2021)

A verdadeira história dos três porquinhos fere diretamente as crianças, a comunidade e as populações tradicionais que, manifestando abundância, conhecimentos ancestrais e relação com a terra, constroem suas casas com palha, lenha e terra. 

Carter G. Woodson fala que o sistema educacional eurocentrado está a serviço da deseducação do negro estadunidense e convoca a população negra a desenvolver e executar um programa próprio. Ler o diário de um lobo me fez lembrar do professor Woodson e pensar que precisamos de práticas educacionais decoloniais efetivas e não instagramáveis. 

Foto de casa na Aldeia Guarani Rio Silveira. Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

Ao longo do trimestre, vamos construir nossa casinha com bambu, palha e argila. As crianças precisam saber que o que o lobo chama de “pouco inteligente” chamamos de conhecimento tradicional, bioconstrução, e que é preciso saber muita coisa para se levantar uma casa sem comprar nada. Povos indígenas e quilombolas conhecem muito sobre solo, plantas, sabem onde o sol nasce e onde fica a lua em relação à casa construída; e tudo isso é sobre relacionamento. Recontaremos histórias, ativaremos fazeres, saberes e memórias.

Que o sol nos ajude nessa caminhada. 

O lobo já deixou escrito o que ele pensa. Não esperemos nada dele.

Casa no quilombo São José. O quilombo São José existe há cerca de 150 anos e está localizado na cidade de Valença (RJ).
É uma comunidade de descendentes de escravos que vieram da Angola e do Congo, atualmente cerca de 200 quilombolas
moram no local e suas casas são feitas de adobe, pau-a-pique e telhado de palha.
Foto: Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

 

¹SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.

12/03/2024

AQUELA TIA ALI VAI CONVERSAR COM VOCÊ – por Veronica Pinheiro

 

Massinha: Pérola, 06 anos


Na primeira semana de aula, minha função era acolher os que choravam. Achei graça. Depois entendi o tamanho da responsabilidade. Meus pequenos companheiros falavam de uma tal dor na barriga e, além das lágrimas, traziam nos olhos o desamparo. 

Ao recebê-los, eu dizia que ficaria ali o tempo que fosse necessário. Perguntava onde o medo estava. E as mãozinhas iam direto para a barriga. É fome? Para alívio do meu coração, as respostas foram todas negativas. Surgia então a última pergunta: eu acho que vi medo nos seus olhos; você tem medo de quê?

De maneira geral, o processo de escolarização desterritorializa dentro do território. Deixa a identidade da criança em segundo plano, determina o que é importante ou não para se saber, determina o que comer, como se vestir, distância o sagrado e impõe novos modos de vida. O tal do conhecimento universal, os conhecimentos básicos e o ensino fundamental norteiam os currículos. Aos poucos, um indivíduo vira uma classe; aos poucos, os corpos são docilizados. E quando menos esperamos… todos os desenhos são pintados dentro da linha.

São tantos os complicadores sociais que a escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana, invadindo aldeias, quilombos e periferias como braço do Estado. A escola apresenta o mundo às crianças. E para muitos, em muitos lugares, é a única instituição habilitada para transmitir conhecimento. No entanto, se existe um pensamento que norteia, se o mesmo está a serviço do colonialismo para sujeição dos sujeitos e adormecimento das memórias… deve haver um pensamento que suleia.

Sugiro que busquemos sulear os modos de se estar na escola. Criemos ambientes seguros para professores e crianças pintarem fora das linhas que contornam os desenhos. Aceitemos o bagunceiro e seu corpo insubmisso. Penso que, durante o processo de suleamento, as memórias de vida e princípios de sustentação dos territórios serão despertados. Sulear é pluriversalizar os modos de existir e se relacionar com a vida. 

De certa forma, aquelas crianças, que choraram na primeira semana de aula, sabiam que precisariam deixar, além da casa, um tanto de si pra fora dos muros da escola. Sei que alguém vai dizer: Mas algumas crianças vão sorrindo! É, eu sei, e essas me preocupam mais.

05/03/2024

A CAMINHO DA PEDREIRA – por Veronica Pinheiro

 

Chegamos à Pedreira. Um complexo com o menor IDH da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Chegamos ao antigo Morro da Ventania, onde o vento corria solto e falava alto. Dizem que quando o vento assobiava na Pedreira, nada mais se ouvia. O Morro da Pedreira está localizado no Bairro de Fazenda Botafogo, entre Pavuna, Costa Barros e Acari. Curiosamente, o vento não fala mais naquele lugar. Os escombros de uma antiga senzala, um cemitério de escravos, alguns troncos de tortura e uma pedreira desativada são as camadas mais recentes sob o solo desse caminho que começamos a trilhar. 

Uma antiga linha de trem cortava a mata densa da fazenda Botafogo. O trem expresso transportava, na década de 1970, pessoas à procura de trabalho e de um novo lar. Estas histórias ainda são ouvidas no território: “Cheguei na Pedreira em 04 de setembro de 1970. Até aqui, eu morei em outros lugares. Vim do Espírito Santo, mas sou de Minas Gerais. Vim com marido e seis filhos”, diz dona Geralda, uma das primeiras moradoras do complexo da Pedreira.

Mapa da Pedreira – João, 6 anos

O trem transformou o lugar onde o vento cantava numa intersecção de corpos-territórios. Corpos em trânsito confluíram, se fortaleceram e construíram uma comunidade. “Quando a gente confluencia, não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende”, diz Nego Bispo em seu livro A terra dá, a terra quer (Ubu Editora, 2023). A confluência é uma força que amplia. Esta força trouxe o Selvagem até aqui. Uma confluência solar: Sol, vento, pedreira, memórias guardadas na terra e trazida nos corpos. A corporeidade é um lugar de registros e agência, nela se articulam e se transmitem mundos.  

Nosso caminho na Pedreira é junto à Escola Municipal Professor Escragnolle Dória, para nós, Casa das Crianças. Acreditamos na confluência dos corpos –  discentes, docentes, plantas, cores, vento, Sol. Em 2024, iniciamos um percurso sobre aprendizagens vivas dentro de uma escola. A sala de leituras da escola será nosso núcleo de irradiação Selvagem. Lá receberemos 439 crianças por semana e 19 professores por mês. Serão 200 dias letivos; 8 oficinas de artes (para crianças e professores) e um grande encontro festivo no final do ano. Na mediação desse movimento, estarei como professora das rodas de leituras e como coordenadora das atividades de artes. Em 10 dias de aula, já passamos por tantas coisas: de medo de bate-bola no bailinho de carnaval a medo de bala perdida durante o turno escolar. Já lemos 2 livros, choramos, sorrimos e brincamos também.

Nesse percurso Selvagem, compartilharemos com crianças e professores reflexões para a construção de uma escola viva. Compartilhamos uma outra forma de ser e estar no mundo, lembrando que a vida e o bem viver devem fazer parte do cotidiano escolar. Não estamos a serviço da educação. Para além de cumprir uma diretriz nacional¹, subimos a pedreira  ativando memórias, saberes e fazeres. Um percurso solar para sentir, ouvir, criar e brincar. Seguiremos por aqui semeando palavras, mudas e mundos. Guiados pelos ventos, estamos sob a luz do Sol, a serviço da vida.

 

¹ The Lei nº 11.645, de 10 março de 2008 torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores, as licenciaturas.

25/04/2024

NO TEMPO DAS CHUVAS – por Cris Takuá

 

Foto: Cris Takuá

 

O cheiro dos pingos na terra batida 

Anunciam a chegada das chuvas

Trazendo suaves brisas

Lembranças da infância 

De histórias vividas

O tempo, marcador das horas 

Dos momentos gravados

Sentidos na memória 

Me trazem sensações 

De infinita alegria 

Oh Terra!

Mãe dos seres animais e vegetais 

Oh vento!

Suspiro infinito do ventre do universo

Oh água !

Circula nas veias que percorrem 

os caminhos na imensidão do espaço

Oh fogo!

Sagrado mestre que a tudo consome, 

tudo transforma e aquece 

Salve as direções que nos guiam 

Aos olhos que nos orientam

E aos pés que nos sustentam

Nessa caminhada rumo ao infinito.

 

Foto: Cris Takuá

 

Cada dia que passa me animo mais a convidar os humanos a se tornarem selvagens, sentirem a delicada beleza de ser e estar em seu território em boa e bela forma. Amanhecer ouvindo o canto dos pássaros e anoitecer à beira do foguinho, contando histórias do dia que passou. A simplicidade que rodeia a vida de quem se permite ser parte da natureza é de uma grandeza muito encantadora.

O mundo acelerado do capitalismo, que transforma tudo em mercadoria, afastou a maioria dos humanos de sua essência e de sua alegria. Enquanto muitos se entorpecem de remédios para conseguir dormir, nas Tekoá, os Guarani, os Maxakali, os Ashaninka, os Huni Kuï e muitos outros parentes cantam para celebrar a noite. 

Desde criança me encanto com o cantarolar das chuvas que caem, limpando a terra e acalmando os pensamentos. No tempo das chuvas, tudo se torna alegria: o cházinho de erva cidreira, o bolinho assado de milho, as brincadeiras sem fim….

Como é bom ser selvagem!

Mas a sociedade capitalista insiste em querer nos colocar etiquetas, regrar nossas mentes para esquecermos que não tem dinheiro que paga a simplicidade. Por isso, sigo na minha rebeldia de acreditar que fazer comida no fogo da lenha, usar meu cachimbo para rezar e preparar remedinhos do mato para as crianças é acreditar num futuro mais feliz! 

Há tempos aprendi a desvirar o bucho de criança e isso é tão mágico! As faculdades de medicina não ensinam isso aos seus alunos, que buscam praticar a cura como profissão. Curar susto, lombriga desconfiada e tantos males que afetam as criancinhas é de uma beleza selvagem!

Assim, sigo dialogando com as chuvas, aprendendo a escutar os trovões e me direcionar nesse mundo de tantas belezas.

 

Foto: Cris Takuá

18/04/2024

HISTÓRIAS QUE OS LIVROS NÃO CONTAM – por Cris Takuá

 

Foto: Roberto Romero

Sueli Maxakali, artista, cineasta, liderança, avó e coordenadora da Escola Viva Maxakali, passou anos de sua vida sonhando reencontrar o seu pai Luis Angujá, como é conhecido, do povo Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Eles se separaram há mais de 40 anos, durante a Ditadura Militar. Para esse reencontro, Sueli idealizou, junto com sua irmã Maiza, o filme Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá. Esse longa-metragem documental está em processo de finalização e contou com apoio do antropólogo e amigo Roberto Romero e de Tatiane Klein, antropóloga que estuda há anos junto aos Guarani e aos Kaiowá. Foi ela quem, em 2019, nas suas caminhadas pelo estado, encontrou Luis vivendo na Tekoha Laranjeira Nhanderu e comunicou Robertinho. A partir daí organizaram a primeira ligação telefônica entre eles. Na época lembro que Tatiane Klein me contou e me enviou um vídeo de Luis muito emocionado.

A Ditadura Militar causou profundas feridas nas memórias e violentou os corpos e os territórios, provocando prisões, trabalho forçado, torturas, envenenamentos e doenças. Houve ainda a proibição da língua materna entre os povos indígenas. No relatório da Comissão Nacional da Verdade consta que mais de 8 mil indígenas foram mortos nesse período, vítimas de torturas e tentativas de apagamentos de suas memórias. Os livros de história e de literatura estudados nas escolas brasileiras contam muito superficialmente o que realmente aconteceu durante os anos de ditadura. A maioria dos livros mostram, com muitas fotos, os exílios de artistas famosos, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas não falam absolutamente nada sobre o exílio, o genocídio e o etnocídio dos povos indígenas.

Em meados de 1960, no auge da ditadura militar brasileira, Luis Kaiowá e seu primo José Lino foram levados para vários lugares diferentes por agentes do estado brasileiro, finalmente chegando ao Posto Indígena Mariano de Oliveira, na aldeia Maxakali de Água Boa, em Minas Gerais. Lá viveram mais de 15 anos. Luís casou-se com Noêmia Maxakali e teve duas filhas, Maiza e Sueli, enquanto José Lino casou-se com Maria Diva Maxakali e teve quatro filhas. Porém, pouco mais de dois meses após o nascimento de Sueli, Luis e José Lino foram reconduzidos para o Mato Grosso do Sul e nunca mais voltaram. Luis tornou-se um renomado rezador do povo Kaiowá, enquanto José Lino faleceu poucos anos após seu retorno.

 

Foto: Tatiane Klein

Sueli e Maiza cresceram sem ter notícias do pai, mas sempre buscaram perguntar o paradeiro dele quando encontravam parentes Kaiowá. Com a chegada da notícia de Tatiane Klein sobre a localização certa onde estava vivendo Luis, Sueli, com ajuda de parceiros, organizou a viagem de encontro e a gravação de um documentário contando toda sua história. Isso estava previsto para 2019, mas com a chegada da Covid tiveram que desmarcar e aguardar.

Nesse meio tempo, em setembro de 2021, Sueli, Isael e várias famílias Maxakali resolveram retomar uma área, a Aldeia Escola Floresta, onde hoje estão. Lá cultivam o sonho de curar a terra e fortalecer a vida das crianças e jovens através de práticas educativas. Em 2022, com a diminuição nos casos de Covid, Sueli e Maiza conseguiram retomar o projeto e planejar o tão sonhado encontro. Se prepararam espiritualmente para a partida na Aldeia Escola Floresta com um grande ritual do gavião-espírito, Mõgmôka, e seguiram para o Mato Grosso Sul. Entre os dois povos, muita expectativa, emoção, histórias e memórias em meio a um processo secular de expropriação, assassinatos e devastação de seus territórios ancestrais. E mesmo com tanta violência e dor, os dois povos resistem e exibem um ritual de vida vibrante e intenso, povoado por cantos, sonhos e espíritos. 

Fotos: Roberto Romero

Profundas histórias de vida e luta não figuram nos livros de história das escolas, mas estão presentes em muitos territórios indígenas. Quem quiser saber mais sobre o encontro de Sueli e Maiza com pai, em breve o filme estará em circulação e vai contribuir muito para o entendimento do que representou a Ditadura Militar para os povos indígenas.

Agradeço a Roberto Romero e Tatiane Klein, que contribuíram com fotos e narrativas desse momento tão importante para história do povo Maxakali e Kaiowá, mas também para história do Brasil.

Compartilho o link de um outro documentário feito por Isael e Sueli que conta também as violências durante a Ditadura Militar para o povo Maxakali: GRIN-Guarda Rural Indigena (Roney Freitas e Isael Maxakali 2016) – Documentário.

 

Foto: Alexandre Maxakali

11/04/2024

PENSAMENTOS DE CRIANÇA – por Cris Takuá

 

Fotos: Alba Rodríguez Núñez

Numa manhã de céu azul e montanha iluminada, fiquei a refletir sobre a profundeza dos pensamentos que desabrocham das criancinhas. Tudo está a pensar, observar e imaginar nesse mundo de encantos e belezas.

Kauê Karai Tataendy Mindua, meu filho de 10 anos, é um pensador desde os primeiros passos de sua vida, um grande professor das sutilezas das coisas que nos rodeiam. Cuidador de galinhas e cachorros, tem um galo chamado Pirata, que ele cuida desde que nasceu e que é cego de um olho. Kauê, com muito afeto, fez curativos e hoje Pirata é um galo que comanda o terreiro com seus cantos fortes logo ao amanhecer.

Nessa caminhada junto a esse meu pequeno professor, muitos conhecimentos vou aprendendo com ele. Uma reflexão que ele me trouxe esses dias foi sobre a relação dos humanos grandes com os seres da floresta. Ele me perguntou por que as pessoas crescem e deixam de ser “delicadosos” com os outros bichinhos e plantas. Ele pensa que muitos humanos grandes perderam essa sensibilidade de escutar e conversar com os outros seres e até com os espíritos.

Foto: Alba Rodríguez Núñez

Mergulhado em suas profundas inquietações, desde criança nas caminhadas na mata, traz falas sobre tempos outros onde ele se recorda de situações e momentos da vida que a sua memória ainda alcança. 

Curioso perceber a transparência lúcida da dimensão dos pensamentos das crianças, que tecem narrativas imaginárias e se encantam com as mais pequeninas coisas.

Meus dois filhos sempre me acompanharam nas caminhadas da vida, em lutas, trabalhos e articulações. Um dia fui convidada para comentar um filme sobre rezadores, xamãs de vários lugares do mundo, que seguem com seus cantos e rezos segurando os céus e equilibrando a vida no planeta. Kauê, atencioso que sempre foi, ao chegar em casa ficou comentando sobre o que viu e ouviu naquela noite e no dia seguinte pediu pra assistir o filme de novo comigo. Foi um momento forte para nós dois, pois ficamos encantados e ao mesmo tempo profundamente tocados por aquelas realidades tão distantes, mas tão parecidas com as nossas.

Passou um tempo e o vi concentrado com suas canetinhas coloridas desenhando tudo que estava pensando das nossas conversas e daquelas realidades tão profundas.

Desenhos: Kauê

Rezar para chover, rezar para continuar nevando, rezar para seguir os rios e mares com água limpas e peixes para comer, rezar para manter a floresta viva frente a tantas violências, como mineradoras, petrolíferas e um agronegócio avassalador.

Assim seguimos dialogando e sentindo a força que emana nos quatro cantos do mundo desses rezadores e rezadoras, que seguem, cada um da sua forma, resistindo para cuidar da nossa Terra tão machucada.

Que sigamos rezando e aprendendo com a delicadeza das crianças.

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Foto: Alba Rodríguez Núñez

04/04/2024

KA’A, ERVA-MATE – por Cris Takuá

 

Desenho: Cris Takuá


Kunhã Tatá, Doralice, foi como uma avózinha pra mim, uma professora. Ela me apresentou e me ensinou sobre a sagrada mestra da Nhe’ërÿ: a Ka’a.

Ela contava que Ka’a e Takuá eram as filhas de Nhanderu. Um dia, andando pela Terra, ele pegou um galhinho de cedro e assoprou, criando assim uma criança, que brincava e urinava por todo canto. Então nasceu um brotinho de erva mate, a Ka’á. Era uma menina e ela já cantava com takuapu. Por isso que até hoje as mulheres cantam batendo o bastão de taquara no chão.

Takuá e Ka’a foram embora com Nhanderu quando o mundo pegou fogo, a água grande veio e acabou tudo. Mas, até hoje, os Guarani têm erva mate para fazer chimarrão e taquara para o takuapu, e para trançar a palha para peneira e balaio.

Os nhe’e kuery, os espíritos que moram com Nhanderu, estão falando para os rezadores que a terra vai acabar outra vez. Antigamente já houve um período de escuridão. Não amanhecia mais, assim mesmo veio a água. 

Nessa terra onde nós estamos agora, mais cedo ou mais tarde isso também vai acontecer. Se isso não acontecer, a gente não vai aguentar mais o calor aumentando, e vai vir a chuva, e vai vir yapó há’puá tatareve’gua, barro com fogo do céu.

Nhanderu acha que o mundo já está muito velho e quer limpar a terra. 

Assim Kunhã Tatá nos contava, dando orientações de como caminhar pela Terra, saber respeitar o tempo, entendendo as direções do vento, das nuvens e dos trovões.

Para o povo Guarani, o tempo se divide em dois: Ara Ymã, o tempo velho, e o Ara Pyau, o tempo novo. Sempre que há mudanças dos tempos, costuma-se fazer a cerimônia da Ka’a para proteção e fortalecimento.

Agora estamos iniciando mais um Ara Ymã, tempo de concentração e resguardo. Não há uma data exata do dia em que mudam os tempos. Mas Tupã kuery, os trovões, passam avisando e os rezadores entendem o sinal e logo já orientam os tembiguai, guardiões da casa de casa, para irem colher a Ka’a.

Durante a cerimônia de consagração da Ka’a aprendemos muito, vemos muitas coisas que ela nos mostra e nos coloca no nosso lugar, nos direcionando para seguir o tempo que se inicia com sabedoria e tranquilidade.

 

Foto: Carlos Papá


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No meio da madrugada

Em meios aos cantos dos tarova

Concentrada no pilão 

Me senti esverdejar

Era a força da mestra curandeira,

Ka’a, professora dos tempos

Filha de Nhanderu 

Que lindamente eu a vi saudar

O sagrado Nhamandu Mirim, Sol,

 que lentamente estava a se levantar 

Com sua cauda irradiante 

Amarelando todo nosso lar 

opy’i, casa de rezo 

Nossa escola viva a bailar

Ensinando e aprendendo 

Assim seguimos a caminhar.

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Fotos: Cris Takuá

28/03/2024

CONSTELAÇÃO DE SABERES – por Cris Takuá

 

Foto: Vhera Poty

 

Nos processos educativos, e não só neles, mas também nas relações humanas, sinto a falta do afeto e da concentração, do cuidado e da atenção!

Com isso percebo que a instituição escolar não está fazendo sentido! Esse modelo de escola que prioriza a escrita, a leitura, os números, uma enxurrada de informações efêmeras, vazias de sentidos poéticos e práticos na vida das crianças e dos jovens.

Tenho pensado e sonhado com as Escolas Vivas, que valorizam o potencial de cada um em sua delicada essência. Que dialogam sobre valores de ser e estar nos territórios de forma bela e equilibrada. Que falam das artes, falam de cura, dos cantos e encantos dessa vida que pulsa a cada novo amanhecer.

Durante doze anos, eu fui professora na escola estadual indígena em minha comunidade. Foram anos de lutas e desafios, uma constante busca de equilibrar a dureza e a beleza nessa longa caminhada. Professora de filosofia que fui, mas também de história, sociologia e geografia, sempre gostei de desenhar, sair e caminhar com os alunos, ver a floresta, escutar e aprender para além dos livros.

E nesse percurso fiz parte de um processo muito forte de busca por direitos para garantir a formação dos professores indígenas numa licenciatura intercultural indígena.

Para isso, formamos um grupo de trabalho e, durante dois anos, ficamos dialogando, debatendo e construindo o PPP, o Projeto Político Pedagógico, para o curso. Nesse processo do GT que deu origem ao PPP da licenciatura que sonhamos, desenvolvemos o conceito da “constelação curricular”, para fugir da ideia de grade, onde todos os saberes ficam divididos, fragmentados e presos.

Pensar um céu que produz conhecimento e, a partir daí, fazer a articulação  entre saberes e fazeres será o grande diferencial dessa formação que vai trazer muito fortalecimento para os territórios indígenas de São Paulo. O curso será organizado no tempo de alternância, o tempo-universidade e o tempo-comunidade.

Após muita luta, em março deste ano foi dado início ao curso de formação pela Unifesp de Santos, momento histórico para os povos indígenas em São Paulo.

Fui convidada a dar a aula inaugural junto a Carlos Papá no primeiro dia da licenciatura. Foi um momento muito especial, pois, estando fora de sala de aula há dois anos, pude trazer uma reflexão sobre as minhas inquietações sobre a escola, a monocultura mental e os desafios que vivi nos tempos em que dei aula e, ao mesmo tempo, lutei intensamente para garantir um processo formativo que respeitasse o tempo de cada cultura. 

Durante o tempo-comunidade, cada aluno da licenciatura tem que fazer estágio com orientação de um professor, que pode também ser um líder espiritual, um conhecedor da cultura ou algum membro da escola local. Para a minha surpresa, um jovem aluno me fez a proposta de ser a orientadora dele junto a Escola Viva Guarani e o coordenador Carlos Papá. Esse momento é transformador para a educação e o fortalecimento das memórias ancestrais.

As Escolas Vivas desabrocharam como um sopro de inspiração, uma semeadura multicolorida para ativar as energias de mestres, que estão muitas vezes cansados dos desafios constantes. Esperamos que, a partir do caminhar coletivo, se animem a tecer juntos tramas de narrativas, saberes e possibilidades de sonhar mais.

Desenho: Fabiano Kuaray

21/03/2024

NHE’ËRŸ FLORESTA VIVA – por Cris Takuá

 

Foto: Edu Simões

 

Nhe’ërÿ floresta viva 

Nela habita um portal de conhecimento 

E memórias ancestrais machucadas pela monocultura mental 

Da colonização capitalista 

Que tenta transformar tudo em mercadoria 

Nhe’ërÿ morada de saberes e encantos 

Onde os espíritos se banham 

Onde a vida de muitos povos teceu formas de resistência

Com cantos e rezos sagrados 

Todos os seres que habitam na Nhe’ërÿ 

A árvore, a água, o coração em nosso corpo, 

tudo pulsa. 

Através do pulsar a gente se emociona, sente que está vivo. 

O pulsar de cada artista da floresta gera um ser, gera um pensamento. 

A floresta Nhe’ërÿ nos convida para acordar o pulsar. 

Nós estamos sempre aprendendo, 

a cada dia estamos aprendendo uns com os outros.

Juntos, mesmo à distância, estamos pulsando numa mesma energia 

De espalhar sementes, diante desse desequilíbrio, do sofrimento da terra. 

É esta cosmovisão e poética da vida que nos guia

E nos fortalece a cada novo dia.

Rezadores seguem entoando as boas e belas palavras para acordar 

Despertar 

Animar 

E acalmar os espíritos que nos rodeiam.

A cada novo amanhecer o Sol, Nhamandu Tenonde

Segue a nos iluminar e aquecer 

Honrando as criancinhas

Que, com sua pureza e delicadeza, seguem insistindo em nos reensinar a praticar o Bem Viver.

 

Fotos: Carlos Papá

14/03/2024

O QUE SEGURA OS CÉUS? – por Cris Takuá

As palmeiras nativas da Nhe’ërÿ sustentam os céus desde a origem de criação do mundo e dos seres que nele habitam. O céu azul que hoje existe reflete as folhagens das palmeiras azuis que, no início do mundo, fizeram essa transição entre os mundos que habitamos.

Existem muitas palmeiras que, com sua beleza, suas palhas, frutinhos e sombras, vêm encantando e sustentando a vida aqui em meio à floresta. 

Em fevereiro, organizamos na Escola Viva Guarani uma oficina para produzir junto dos jovens os desenhos de algumas espécies de palmeiras para compor a exposição Mba’é Ka’á, o que tem na mata: Barbosa Rodrigues entre plantas e pajés, que acontece entre 08 de março e 08 de setembro, no museu do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. 

Coordenada por Carlos Papá, a oficina proporcionou uma leitura e observação atenta do livro Sertum Palmarum Brasiliensis, de J. Barbosa Rodrigues, e também caminhadas na floresta da Aldeia Rio Silveira, para ver e reconhecer as palmeiras que estão ao nosso redor.

Foram dias de muita animação e escutas, através das histórias contadas por Papá sobre a importância das palmeiras para o equilíbrio da mata e para a sustentação dos céus que habitamos desde o início do escuro originário.

Algumas crianças, acompanhando seus pais, criaram também desenhos que refletiam suas percepções das palmeiras que observaram e, juntos, criamos uma linda apresentação de 10 espécies.

 

As palmeiras azuis 

São seres espirituais 

De um mundo cosmológico 

Que nos mostram os portais

Entre os mundos.

Na floresta existem seres nativos 

Jataí, Jussara, Jerivá 

Guaricanga, Brejaúba, Butiá 

Jejy ró- amargo, Tuku, Indaiá

Espécies de palmitos 

Palmeiras

Que alimentam e encantam 

Sombreiam nosso caminhar 

Cobrem casas 

E revestem a floresta

De um esverdear profundo.

Nhe’ërÿ terra das palmeiras 

Que seguem sustentando nosso caminhar 

Nessa terra

……..Cristine Takuá……..


Desenhos produzidos na oficina Guarani, 2024

07/03/2024

RESISTIR PARA SOBREVIVER – por Cristine Takuá

Os jovens estão buscando encontrar a essência de sua missão, deixada por Nhanderu no momento do parto, quando chegam a esse mundo de imperfeição. Ao longo dos tempos, muitos estão se esquecendo deste compromisso que foi destinado a cada um e, ao crescer e se desenvolver, vão trilhando uma maneira triste de viver, o caminho do Teko vai (a má e feia forma de ser e estar no território), diferente do Teko Porã, que é o Bem Viver, a boa e bela forma de caminhar, de estar em equilíbrio na vida. 

Com isso a depressão, a preguiça, o suicídio e formas descompassadas de se colocar no mundo têm aumentado muito entre jovens indígenas. Reflexo de uma histórica trama de violências inconstitucionais e de feridas nas relações humanas. Se desfazer desses emaranhados de desequilíbrios depende muito de uma teia de afeto e cuidado.

Foto: Vherá Poty

As casas de reza são espaços coletivos de cura e convivência, são escolas ancestrais em que, através das práticas e da presença dos rezadores e das rezadoras, vamos reaprendendo a nos colocar no mundo, a lidar com as dores e desafios. As plantinhas, mestras do caminho profundo, nos ensinam a nos equilibrar entre a beleza e a dureza da vida, e assim desacelerar as duras e pesadas pegadas que muitos vêm deixando na Terra.

Nhamandu Mirim, o Sol sagrado, todas as manhãs se levanta para nos iluminar e para que tenhamos força e coragem. 

Assim seguimos….

 

Depois da tormenta vem a calmaria 

Depois da tempestade o arco íris brota 

No entardecer

Sinais de mudanças e transformações

Sinalizam o renascimento da matéria

Espíritos cantantes voam na lua cheia

Espalhando mensagens de amor

A pequenos seres pensantes

A vida é feita de escolhas 

Sendo cada caminho modelado 

Por nossos anseios 

Cada destino direcionado 

Pelos seres sagrados

Momentos de tormentas nos revelam

Que há a necessidade de metamorfosear

Nossa relações, nossos passos 

Nessa jornada da Vida

Não basta engrandecer a matéria 

Temos que remodelar a alma

Cuidar com zelo e carinho 

Para ultrapassar as barreiras 

Do desconhecido 

E mergulhar no universo multicolorido

Da sábia ensenhança 

Que habita para além das aparências

Do sorriso de criança.

Busco o silêncio 

Das profundas cantigas 

Um suspiro pra alma

Um descanso pra mente 

Pra seguir os caminhos dos sonhos meus…

……..Cristine Takuá……..

Foto: Alexandre Maxakali