CARTAS DE APRENDIZAGENS
Vamos acompanhar semanalmente a jornada de Cris Takuá nas Escolas Vivas e Veronica Pinheiro na Casa da Criança, na Escola Professor Escragnolle Dória no Rio de Janeiro. Saiba mais na página do Grupo Aprendizagens.
07/10/2024
CARTA A CRISTINE TAKUÁ – por Veronica Pinheiro
Saúdo sua existência,
Agradeço aos Guardiões que cuidam de você no caminho.
Leio suas palavras sempre ao amanhecer, junto ao nascer do Sol. Quase um rito. Ando concentrada como as mestras Formigas, carregando o necessário, confiando no caminho e em quem foi na frente. Suas palavras são como o abraço e os rezos de Dona Cassiana: elas me acolhem e fortalecem. Quando criança, eu tinha os pés voltados para dentro, Dona Cassiana rezava meus pés e meus tornozelos para que ficassem fortes e não vacilassem no caminho. Saiba, minha amiga, que meus pés e tornozelos vacilam menos no caminho desde sua chegada.
O caminho se faz caminhando e, no caminho feito, tenho encontrado pessoas disponíveis para pensar e construir futuros possíveis. Penso que aprendemos e ensinamos continuamente, logo todos precisam se envolver nos processos de aprendizagens, não apenas professores, pais educadores e escolas. O que um arquiteto está ensinando quando constrói uma escola? O que um médico está ensinando quando atende uma pessoa sem olhá-la nos olhos e receita um medicamento sem examiná-la? O que um restaurante está ensinando quando pede que um cliente se retire porque sua aparência está assustando os outros clientes?
A vida acontece numa teia de relações continuadas. E os humanos escolheram se relacionar com a vida de uma forma que gera muitas frustrações e entristecimentos.
Meu mestre Nego Bispo dizia: “Eu não sou humano, sou quilombola. Vivo de envolvimento e compartilhamento. Convivo com serpente, rato, morcego, sapo, peixe, flor, árvore, pedra. O humano não convive nem com ele mesmo.”
Uma vez que posso desejar não ser humana, posso também viver em abundante relação com tudo o que existe. E duas forças me animam nesse processo: a alegria e o encantamento. Ao contrário do que alguns pensam, uma pessoa alegre e encantada não é uma pessoa inocente ou alienada. Uma pessoa alegre e encantada é uma pessoa imune aos males causados pelo processo civilizatório. Por isso, brinco com as crianças, leio e conto histórias; quero que elas sejam felizes. Nas frestas das durezas implantadas pela monocultura de pensamento, estamos semeando uma escola viva, assim como as formiguinhas que pegam sementes e as enfiam em rachaduras nos galhos das árvores. Esse sistema civilizatório engessado está cheio de rachaduras, se não conseguimos derrubá-lo de uma vez, podemos enfraquecê-lo. E a melhor forma de enfraquecer a monocultura de pensamento é fortalecendo nossos territórios e toda vida que nele habita. Vamos semear escolas cosmológicas, com muitas narrativas orgânicas, verdes e amorosas.
Sonho e trabalho para que, nos próximos ciclos de aprendizagens, mais pessoas se encorajem a ser gente-formiga. Muita gente fala sobre a relação com a vida e não se relaciona nem com outros humanos. Aprendizagens se vive, né? Sonho que todos se comprometam de fato com a felicidade das crianças do nosso país e do mundo. As mestras formigas ensinam sobre cooperação: elas trabalham e se organizam coletivamente, colocando a inteligência e o esforço de cada uma em prol do coletivo. Sonho com dias em que ser formiga vai ser o bastante para muita gente.
Um abraço de formiguinha,
Veronica
07/10/2024
CARTA A VERONICA PINHEIRO – por Cristine Takuá
Saudações, Veronica,
Nesta manhã de Sol, saúdo sua existência e nossas lutas, sonhos e anseios, que vêm há muitas gerações. Nos rastros de nossas avozinhas, seguimos buscando reencantar esse mundo através de nosso trabalhinho, esse ciclo de aprendizagem que miro e vejo como uma canoinha colorida e iluminada que convida crianças, jovens e todos os seres a acordar, despertando as memórias mais profundas.
Nesses últimos meses, compartilhando com você o Diário de Aprendizagens, aprendi muito com suas caminhadas e reflexões. Eu aqui na minha Tekoa e você na escolinha em que atua ficamos sonhando um futuro mais encantado para todas as crianças. É tão maravilhosa essa possibilidade de transformação a que anseiam as escolas vivas que hoje alguns pesquisadores, professores e curiosos vêm buscando se aproximar e entender o que vem a ser essa proposta de furar a bolha da monocultura mental nos processos educativos.
Os mais velhinhos vêm há muitas gerações buscando fortalecer os seus terreiros, suas práticas através das narrativas e dos rituais, e me pego sempre a refletir sobre esse discurso do fim do mundo que pretende bloquear e frear nossos sonhos. A cada dia me sinto mais animada em seguir remando contra a maré, e permanecer caminhando lentamente, semeando na micropolítica possibilidades de metamorfosear as nossas relações.
Te agradeço
Te honro
E reafirmo minha imensa alegria em remar junto com você.
E nessa intenção de não deixar de sonhar, queria te perguntar: quais são os seus sonhos para o nosso ciclo de aprendizagem? O que mais te motiva e anima nesse momento?
Seguimos, querida, como formiguinhas trabalhando, trabalhando…
Cooperando, transformando…
Semeando e sonhando…
30/09/2024
CARTA A VERONICA PINHEIRO – por Cristine Takuá
Saudações, querida Verô.
Te escrevo num dia de chuva ouvindo os pássaros cantando felizes, mas com o pensamento longe sentindo o luto em que me encontro por perdas recentes e pelos parentes plantinhas e bichinhos, que vêm sendo queimados pelo fogo que não cessa nesse nosso Brasil, onde muitos humanos exaltam a mercadoria acima das vidas todas.
Te encontrar por esses tempos nessa caminhada que agora, juntas, estamos trilhando, me animou e me encorajou a não deixar de acreditar. Sua sensibilidade e encantamento com as crianças me fez não me sentir sozinha nos meus sonhos e anseios. Queria agradecer a sua existência e a sua força.
Eu cresci sem conhecer minhas avós e isso sempre me causou um vazio profundo, uma ausência, uma falta de alguém que me desse a direção. Quando criança, sempre que ia dormir, eu rezava pedindo pra sonhar com elas, saber como elas eram, receber algum ensinamento mesmo em sonho. Em alguns momentos da minha vida, tive o privilégio de encontrá-las em meus sonhos e foram momentos muito importantes pra mim. Mas segui sempre sentindo essa ausência.
A vida me presenteou com algumas avós-gente e avós-plantas. A avó de meus filhos, que foi minha sogra, se chamava Kunhã Tatá. Ela foi uma grande avózinha pra mim, me orientou, ensinou e mostrou caminhos.
Aos 24 anos, conheci uma medicina sagrada que me mostrou muitos caminhos, me fez olhar para dentro de mim mesma. Essa medicina, feita de um cipó e uma folha, se tornou minha professora, e comecei a estudar com ela. Ao longo desses anos, ela me mostrou minhas avós e começou a me ensinar um saber sagrado de que uma das minhas avós, a mãe de meu pai, era mestra: a arte de partejar. E, assim, essa medicina foi me mostrando como as criancinhas nascem. No início, não entendi por que ela estava me mostrando aquilo, mas, um tempinho depois, compreendi, quando tive a honra de fazer o primeiro parto, e depois outro e outro… Sigo aprendendo…
A Araucária, esse ser tão antigo, um dia também se apresentou a mim como sendo minha avó. Me disse, numa longa noite de concentração espiritual, que eu não precisava mais sentir essa ausência que me acompanhou por toda a infância, pois ela era uma avózinha pra mim.
O tempo é o grande mestre da vida. Saber respeitar e entender suas delicadezas é uma ensenhança para quem se permite ter paciência. O cuidado e o afeto caminham juntos nesse processo de busca por entendimento. E, aos poucos, vão se revelando e nos direcionando para onde desejamos chegar.
Para mim, está sendo muito importante acompanhar seus passos, ler seus pensamentos e inquietações, poder aprender com você e compartilhar o que sinto, faço e penso. Juntas seguiremos remando essa canoinha que sonha em transformar, semear e ativar/animar mentes e corações.
Sou profundamente grata por ter o privilégio de caminhar junto nesse propósito selvagem de conceber a vida, num mundo onde o excesso de informação e a robotização humana seguem alucinadamente entorpecendo as mentes, adoecendo os corpos e silenciando os sonhos.
Vou encerrando essa carta num dia de muita concentração, após ter passado a noite toda na Opy, a grande sala de aula da Escola Viva Guarani. Entre rezos e meditações, amanheci sentindo os galos chamando o Sol, os pássaros comemorando o seu reluzir e as criancinhas acordando felizes após uma longa noite de sonhos compartilhados à luz e à magia do fogo.
Somos sementes, minha irmã, e seguiremos juntas a cada novo raiar de Sol.
Saúdo sua existência e as que nos antecederam.
Arte: Jeisson Castillo
30/09/2024
CARTA A CRISTINE TAKUÁ – por Veronica Pinheiro
Olá, querida Cris.
A vida, por aqui, ficou muito mais feliz desde que conheci você. Ter você por perto nessa jornada é um grande presente.
Na escola, estamos bem. Parece que entramos num novo ciclo, um tempo de vida. Mesmo cansados, estamos mais felizes do que no início do ano. Passei os últimos dias pensando nas palavras da mestra Creuza Krahô sobre os resguardos e os tempos. Essas palavras chegaram no exato momento em que eu reconheço que preciso voltar a me relacionar, com sabedoria, com os resguardos de tempos e com o Tempo.
Nesses movimentos de acordamento de memórias, minhas memórias e as memórias de meu povo tecem diálogos profundos comigo e com as crianças.
O lugar mais sagrado que encontrei nesses últimos tempos é ao lado das crianças. A intersecção dos tempos se dá sobre elas.
Lá em casa, o Tempo tem nome e corpo: Iroko. Tempo é força. Iroko é a própria representação da dimensão do tempo, pouco conhecido dos seres vivos e mortos, nascidos ou por nascer. Guardião da ancestralidade, Iroko rege os tempos e fortalece os vínculos entre o passado e o presente. Iroko é a primeira árvore que se fez plantar na Terra. Dona Cassiana, a anciã que me rezava quando criança, dizia que a árvore é o corpo do tempo. Ando pensando em tempos e árvores.
Quase não há árvores no caminho que faço da minha casa até a escola. Tiraram as árvores e, consequentemente, deixamos de ver o corpo do tempo. E, se não o vemos, começamos a esquecê-lo. Esquecendo, perdemos a relação de cuidado com ele.
Foi por você que conheci o Xamoi Alcindo Wherá Tupã. Ele afirmava que desaprendemos a ouvir as árvores. Nessa correspondência, quero apresentar a você as árvores que me guardam no caminho à escola. Dos perigos e precariedades, já falei em outros textos, quero falar das árvores.
Quando você chegar no marco de Costa Barros, colado à linha do trem, avistará o canto mais verde de todo o caminho. Esse canto verde é uma encosta habitada por algumas pessoas, muitas árvores, pássaros e gambás. Há um quintal no alto, visível a todos que passam, repleto de frutíferas, onde um Abacateiro jovem guarda a entrada.
Seguindo pela estrada de Botafogo no sentido metrô, minha amiga, Mungubas e Oitis lhe acompanharão fazendo um lindo corredor verde. Haverá perigo no chão, coisas que podem lhe assustar os olhos, mas tente olhar as árvores. Você passará por Aroeiras cheirosas, Lucenas e Amendoeiras Sete-Copas jovens e adultas. Quando à sua esquerda avistar uma Gameleira Anciã, sorria para ela, ela ficará feliz ao te ver. Para o povo de axé, a Gameleira é Iroko que faz ponte entre o Ayê, a terra, e o Orum, o céu. Ela é a árvore-corpo do tempo.
Ao avistá-la, olhe para a direita, suba a esquina cercada de Boldos perfumados. O Algodoeiro lhe receberá na porta da escola. Estaremos lá, as crianças e eu.
Que você possa vir em bom tempo.
Aguardamos sua vinda com barro nas mãos e verde nos olhos,
Verô
27/09/2024
QUAIS CÓDIGOS DECIFRAMOS? – por Cristine Takuá
Foto: Cris Takuá
A natureza dá sentido à vida e, nela, tudo tem seu equilíbrio. É como uma imensa teia, onde tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está para acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que, com sua delicadeza e sabedoria, vão nos guiando e nos ensinando como bem viver, que em Guarani se fala: Teko Porã. É um conceito filosófico, político, social e espiritual que expressa exatamente essa grande Teia, onde vivemos em harmonia e respeito.
Foto: Carlos Papá
Carlos Papá fala que, desde criança, os Guarani aprendem os códigos para poder caminhar e viver na floresta.
“Eu andava pelas florestas para poder decifrar os códigos, porque, a cada dia, quando se passa na mesma floresta, mesmo que seja um lugar por onde você já passou, ele já mudou. Neste lugar onde você passou não tinha formiga, aí, no outro dia, você passa por lá e têm formigas ou um besouro. Então, você tem que analisar… As paisagens mudam, né?
Por exemplo: você faz um quadro, você pinta uma árvore, aí você pensa assim: ‘Acho que faltou uma lagarta na folha. Acho que vou fazer uma lagarta na folha. Só que aí só vou fazer amanhã, hoje não vai dar, porque eu estou cansado ou com sono, aí eu vou fazer amanhã a lagarta. Ou uma borboleta voando’. Mas você deixa tudo pra amanhã.
Foto: Carlos Papá
E aí é a mesma coisa com a natureza. Quando você está num lugar, fica em silêncio.Talvez não tenha pássaro ou água escorrendo. Aí você olha, fixa bem, marca bem o jeito que era. Aí você volta pra casa, no dia seguinte, ou três ou quatro dias depois, você volta para o mesmo lugar de novo, analisa tudo. Está diferente, porque talvez tenha chovido ou agora tenha um pássaro, um tucano ou um grilo. Ou talvez tenha uma borboleta voando, uma borboleta sem estar. Então mudou a paisagem, não é a mesma coisa.
Eu fazia essa leitura: por que mudou? E a luz do Sol que bateu neste dia em que eu estava vendo. Essa luz que bateu estava clara. Depois de três dias, a luz não era a mesma coisa, porque o Sol estava meio escondido, as nuvens estavam baixas. Então, as coisas mudam. E aí você vê o grilo ali namorando ou o grilo ali. Você olha para o grilo e fixa aquele tempo daquele jeito. Aí, no outro dia, você volta lá de novo: o grilo não está mais lá e o tempo está maravilhoso, tem tempo bom. Só que o grilo não está mais lá.
Então, eu comecei a perceber os códigos das coisas que estão ali. Quer dizer, se você vê um tempo ruim, o grilo está ali de forma ao contrário, oposta, assim ou assim, na sua direção. Esses são os códigos que você tem para perceber que o tempo amanhã vai mudar, vai continuar igual, se vai fazer frio ou vai chover. Então, o grilo parece uma bússola que tem uma indicação… Então, você vai guardar isso na memória: quando o grilo está assim, é porque no dia seguinte vai dar tempo bom. Então, o grilo está se preparando pra ir pra cima, porque amanhã haverá um tempo bom e é o jeito dele comer uma folha nova. Então, ele está indo. Agora, se está assim, é porque no dia seguinte vai fazer muito frio e ele está indo para um lugar que nem é no chão e nem pra cima, está no lugar que tem menos corrente de ar frio. Então, ele está procurando lugar para se esconder, para ter menos corrente de ar, porque em cima é muita corrente de ar frio e embaixo também, porque embaixo o chão é muito frio. E aí, fica meio que no meio, para que não tenha uma corrente de ar frio.
Então, tudo isso a gente tem que estar percebendo, decifrando os códigos para saber caminhar e viver bem.”
Fotos: Cris Takuá
Aos poucos vamos crescendo e aprendendo os códigos que nos revelam os caminhos que vamos seguir. Porém, na escola, somos direcionados a aprender sinais e códigos que são desconectados da vida. Um monte de teorias de letras e números que acabam nos afastando do sentido real e natural dessa convivência, que nos é ancestral dentro da memória que habita em nosso interior.
Quais os códigos que conseguimos decifrar hoje? Quem alcança o entendimento das mensagens que trazem os Tupã, deuses do trovão? Quem entende os sinais das Jataí, as abelhinhas sensíveis nativas da Nhe’ëry? Quem dialoga com as formigas, quando estão num longo carreirão carregando folhas, muitas vezes maiores que elas mesmas, em direção a um lugar seguro? Quem sente e observa o caminhar das nuvens? Os sopros dos ventos? As ondas do mar que vão e vêm num equilíbrio muito próprio delas?
Sinto que é necessário nos reconectarmos com esses sinais da vida selvagem, que nos mostram exatamente o sentido de nossa existência. Séculos e séculos da razão humana ignoraram a sabedoria dos códigos da floresta.
Convoco e convido a todos e todas a se tornarem selvagens, se permitirem sentir, escutar e enxergar esses sinais que todos os dias pulsam ao nosso redor.
Foto: Carlos Papá
23/09/2024
A SABEDORIA DOS SÍMBOLOS AFRICANOS – por Veronica Pinheiro
Adinkras: oficina de pintura e criação de jogos de cooperação
“Quem sabe de onde veio não se perde no caminho.” Todas as vezes que meu pai me levava à rua repetia esse provérbio. Ele me treinava para reparar no caminho. “Não se distraia no trajeto.” Ao chegar no lugar desejado, eu era perguntada sobre o que tinha visto e se eu saberia voltar. Quando eu falava sobre a cor de um muro ou que tinha visto um pipoqueiro, meu pai falava que eu deveria prestar atenção em coisas permanentes, como uma grande árvore ou um comércio de itens de primeira necessidade. Deveria também prestar atenção no formato do muro, no desenho das grades e não somente nas cores, porque as cores poderiam mudar e o pipoqueiro poderia não estar lá na volta.
Fotos: Veronica Pinheiro
Minha avó nasceu livre, em 1910. Mas a mãe de minha avó nasceu num tempo em que pessoas eram vendidas no Brasil como mercadoria. Nossas histórias eram um quebra-cabeças incompleto. Cada informação era preciosa: rezas, ritos, rodas, receitas. Meu pai sabia que era importante observar as grades, eu e ele achávamos que o motivo era o fato de que quase ninguém mudava as fachadas, porque as ferragens das fachadas eram muito caras. Meu pai e eu perdemos algumas informações importantes ao olhar as grades: elas poderiam conter símbolos africanos com mensagens importantes. Muitos africanos que vieram para o Brasil eram exímios ferreiros. Os africanos escravizados traziam consigo conhecimentos e tecnologias. Dentre os saberes estava o conhecimento da metalurgia do ferro na África Ocidental, conhecimento que influenciou de forma relevante as relações sociais e econômicas dessa população na diáspora. Isso ninguém conta para as crianças!
As tecnologias trazidas no corpo se articulavam com as memórias sagradas de relação com a vida. O ferro, por exemplo, não era um recurso natural, mas um ser guardado por Gu, um ancestral muito antigo. Gu, o deus ferreiro, ensinou os homens a forjar o ferro. Os ensinamentos de Gu expandiram as formas do povo Fon, reino de Daomé, no Benin, a se relacionar com a terra e com a vida. No Brasil, Gu aparece como Ogum – representante da coragem, da tecnologia, do trabalho árduo, da caça, da agricultura, do ferro e, se for preciso, da guerra. Os conhecimentos e a relação com a metalurgia eram orgânicos, sagrados e estruturantes de uma cosmologia. Porém, o eurocolonialismo, que nunca respeitou a vida e a existência dos seres, além de sequestrar e escravizar pessoas africanas, viu nessa relação mais uma forma de enriquecer e ferir a Terra com a extração do ouro.
Rodeia… Rodeia… Rodeia, meu Santo Antônio.
Essa volta é para falar da sabedoria dos símbolos presentes nos Adinkras, comunicação gráfica, trazidos de Gana. Agora que escrevo percebo o quanto rodeio para falar de um assunto. Não sei como isso funciona para as crianças. Mas ainda não aprendi a ser de outra forma.
O território que hoje conhecemos como Gana foi uma região conhecida como Costa da Mina (Togo, Nigéria, Benin e Gana), os africanos escravizados trazidos dessa região pertenciam aos povos Fanti, Ashanti, Ewe, Fon, Egbe, Yourubás e Ibos. Eles ficaram conhecidos no Brasil como “negros de mina”. Homens de sabedoria e conhecimento tão relevantes que se comunicavam com seus parentes através dos símbolos nas fachadas das casas e nas peças criadas com ferro. Até hoje encontramos os símbolos Adinkras nas grades de portas e janelas no Rio de Janeiro. Para além de uma opção estética dos ferreiros, os símbolos comunicavam que ninguém estava sozinho no caminho. “Preste atenção no caminho.”
Fotos: Veronica Pinheiro
Na oficina de pintura e criação de jogos colaborativos, convidei as crianças a prestar atenção nas grades. Elas não podem fotografar o território por questões de segurança. Mas eu fotografei alguns portões da rua onde moro, mostrei para elas e elas me disseram que viram esses símbolos no caminho. Falei para elas que os símbolos comunicam memórias de um povo antigo, que deu origem ao nosso povo. Lemos o livro Quanto de África tem no dia de Alguém. Relemos Os tesouros de Monifa. E as convidei a reparar no tanto de mensagens de vida que nos cercam. A vida se comunica o tempo todo, a gente que desaprendeu a entender. Mas se desaprendemos, podemos reaprender.
Fotos: Veronica Pinheiro
Curiosamente, o Adinkra com que as crianças mais se identificaram é o Sankofa. Curiosamente, Sankofa é o símbolo mais presente nas grades das portas e janelas. O pássaro que olha para trás é também representado graficamente por formas que lembram a representação do coração. Sankofa resume a ideia de futuro ancestral. O provérbio que o acompanha diz: “Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás”. Sankofa é símbolo da sabedoria de aprender com o passado para construir o futuro. E essa mensagem está no caminho desde que os irmãos ferreiros chegaram ao Brasil.
“Preste atenção no caminho. Você precisa saber voltar.”, dizia meu pai.
A escola de ensino regular ensina a olhar para frente, para o futuro. Mas o tal futuro da humanidade tem assustado as crianças. Por isso, convido meus pequenos companheiros a olhar para o passado. Não o passado da escravidão. Mas o passado cosmológico, que insiste em se comunicar conosco. O passado da tecnologia das relações de envolvimento com a vida.
Lembrei de Cris Takuá, minha mestra e seus ensinamentos. Acho que estamos acordando memórias por aqui.
20/09/2024
A ESCOLA VIVE EM MIM – por Cristine Takuá
Foto: Cris Takuá
Nessa última semana que passou, aconteceram fatos muito fortes e de profundas reflexões em minha caminhada.
Há dois anos e meio, me desinseri da escola estadual da minha comunidade por me sentir um corpo estranho em meio a ordem, obediência, disciplina, grade curricular e tantas prisões, que estavam me perturbando os sonhos. Ao sair desabrocharam as Escolas Vivas, essa semeadura tão potente e animadora que venho coordenando junto com Carlos Papá, Sueli e Isael Maxakali, Dua Busë e Netë Huni Kuin, Francy e Francisco Baniwa e João Paulo Tukano e Carla Wisu.
Remando essa canoinha de acordamento de memórias com afeto e cuidado, venho percebendo o quanto a “escola”, esse ser complexo e cheio de possibilidades, continua me atravessando e inspirando os meus passos na vida.
Impulsionando diálogos e trocas de experiências, vivenciei na Escola Viva Guarani, dias atrás, a visita da sala do quinto ano da escola infantil da minha comunidade, a sala do Kauê.
Por que as crianças perguntam tanto?
Fotos: Cris Takuá
Recebemos as crianças e a professora que, com muita curiosidade, vieram buscar saber mais das plantinhas que curam. Eu e Papá as levamos para caminhar e coletar algumas plantas usadas na medicina tradicional Guarani. Depois conversamos sobre cada uma delas. Papá brincando, mas falando com seriedade, foi perguntando a eles os nomes das plantinhas. Alguns sabiam o nome em Guarani, outros, o nome em português. E assim Papá foi explicando as plantinhas uma a uma, os nomes e suas qualidades, como e para quê são usadas.
Foi uma atividade muito interessante e as crianças ficavam fazendo perguntas sobre as plantas, sobre seus usos e também sobre o nosso corpo e os momentos de resguardo, de dieta e de luto.
Uma menina perguntou: “Por que temos que cortar os cabelos quando ficamos menstruadas pela primeira vez?”. A partir dessa pergunta, surgiu toda uma conversa sobre o tempo do resguardo e a importância desse momento de recolhimento para a menina que está virando mulher. Esses ensinamentos são muito sagrados e preciosos para a vida.
Foto: Djeguaka
Foi muito bonito e emocionante ver as crianças perguntando, tão animadas e atentas, escutando sobre esses saberes tão sensíveis e necessários.
Depois fomos visitar as abelhinhas e conversamos sobre a importância da cera de abelha para os rituais de nomeação das criancinhas, que acontecem em todo início de ano.
No dia seguinte a esse encontro, tínhamos um compromisso em Santos, para acompanhar a aula da Licenciatura Intercultural Indígena, que está fazendo a formação dos professores indígenas de São Paulo. Nesse dia foram trabalhadas atividades relacionadas à ação e aos saberes indígenas na escola. O tema foram os jogos educativos. Cada grupo apresentou sua pesquisa e as possibilidades de, em sala de aula, trazer essas brincadeiras para as crianças. Foi muito bonito e alegre o encontro com os 40 professores, alunos da Licenciatura da Unifesp.
Foto: Carlos Papá
Mas, nesse dia, antes de ir para Santos, Papá se sentiu inspirado a ir visitar a sua madrinha Rete, que fez o seu parto há 54 anos. Lá fomos, numa outra comunidade a três horas e meia da nossa casa. Foi um encontro muito lindo e cheio de recordações. Ela disse que estava aguardando ele, já pressentia que ele estava por vir. Ela nos contou muitas histórias sobre o parto, sobre a vida e as caminhadas dela enquanto mulher, rezadora e parteira.
Foto: Djeguaka
No dia seguinte, após essas caminhadas de aprendizagens, recebemos um encontro dos professores que atuam na escola aqui da nossa comunidade. Eram dez professores: três dos anos iniciais e sete dos anos finais do ensino médio. Esse encontro foi para dialogar sobre a retomada da “Ação Saberes Indígenas na Escola”, para a produção de material didático bilíngue. Há dez anos, eu havia coordenado essa ação quando estava na escola estadual, mas poucos professores participavam; Carlos Papá era o mestre dos saberes, que orientava sobre as narrativas, sobre a língua Guarani e os saberes tradicionais.
Esse encontro foi um momento de muita reflexão pra mim, pois percebi que eu saí da escola, mas a escola não saiu de mim e segue me motivando a animar os outros a não desistirem de sonhar e lutar por seus ideais.
Nesse mesmo dia tivemos a notícia da partida de um grande mestre e professor que encantou. Xamoi Alcindo Wherá Tupã foi um guardião do fogo, rezador e conhecedor das palavras e dos saberes profundos. Falamos sobre ele para o grupo de professores.
Finalizamos esse dia na Opy, na verdadeira Escola, rezando, cantando e meditando até o amanhecer do dia.
Assim seguimos animando e remando essa canoinha da transformação, as Escolas Vivas…..
Foto tirada do documentário: “Whera Tupã e o Fogo Sagrado”
16/09/2024
A BELEZA DA RESPOSTA DAS CRIANÇAS – por Veronica Pinheiro
Ọkàn ríran ju ojú lọ
O coração pode ver muito mais profundamente do que os olhos
A educação se dá nas relações cotidianas, para além dos muros da escola. Em sala de aula, os gestos, as atitudes, o tom de voz e o olhar são tão importantes, ou mais, quanto os conteúdos curriculares. As informações contidas nos gestos educam, acolhem, esperançam. O currículo forma para uma vida hipotética, futura, prepara para provas que talvez um dia um aluno venha a fazer. Os gestos educam para o presente, dilatando através da relação a complexidade do registro que busca compreender tudo o que acontece no ambiente e no próprio corpo. Lydia Hortélio diz, e eu concordo:
“Ninguém nasceu pra fazer vestibular. A gente nasceu pra ser gente, para se expressar em plenitude, liberdade, em inteireza com todos os talentos que o ser humano tem.”
Em tempos de emergências, penso em como alinhar gestos e conteúdos. Em tempos de emergências, como tornar a escola de ensino regular um lugar onde crianças e professores possam ser gente, se expressando em plenitude e liberdade? Meu querido mestre Nego Bispo falava que, nessa guerra das denominações, precisamos aprender o jogo de contrariar as palavras coloniais como modo de enfraquecê-las. Enfraquecer o que disseram sobre nós e buscar na ancestralidade entendimento e profundidade do que somos. A escola como lugar de ensinamento de denominações separa quem ensina e quem aprende, como se um “discente” só pudesse ser aluno e um “docente” só pudesse ser professor.
O termo “discente” tem sua origem no latim, deriva do termo “discens”, que é o particípio presente do verbo “discere”, que significa “aprender”. E “docente” tem origem no latim “docens”, que é o particípio presente do verbo “docere”, que significa “ensinar”. Na dinâmica da vida cotidiana, somos compartilhantes. Ensino e aprendizagem é relação de vida. Compartilhar é muito mais do que representar papéis sociais: não há imobilidade nas relações de compartilhamento. Ensinamos e aprendemos mutuamente, continuamente. À medida que os meses passam, a relação com as crianças na favela da Pedreira me mostra que a beleza da resposta das crianças está reestruturando a forma como eu me relaciono com elas e com a vida. As crianças me acolhem em seus braços curtos com cartinhas, desenhos e palavras faladas. Elas me ensinam a respirar em meio à fumaça capitalista que sufoca a vida.
“Tia, seus brincos são legais.”
“Tem gente que acha meus brincos estranhos.”
“Gente adulta, né? A gente acha lindo. Tem mensagem, né?”
“Todos os brincos dela têm mensagem. Os de natureza, os de aldeia, os de concha.”
“É sério que vocês ficam olhando meus brincos? E como vocês sabem que têm mensagem?”
“Porque a gente sentiu.”
“Eu não senti nada”, disse Alessandro. “É só uma folha.”
“Sim. É aya.”
Por conta de meus brincos, essa semana, falamos sobre Adinkras. Os Adinkras, símbolos gráficos originários da cultura Akan, de Gana, são um exemplo de como as formas de comunicação e registro não precisam se submeter à linguagem escrita convencional. Esses símbolos guardam filosofias, memórias, histórias, funcionando como um tipo de escrita visual repleta de conhecimento e identidade cultural. Nosso imaginário, construído pela educação colonialista, nos condicionou a pensar que a oralidade era o único pilar de registro para transmissão de conhecimentos em África, mas não é. Existem diversidades de escritas africanas e ameríndias.
Os Adinkras são escritas para serem lidas com o coração e não com os olhos. O sufixo “kra” é traduzido como alma. Esses símbolos estão relacionados à comunicação com antepassados. Adinkra é como um adeus à alma. O termo “dinkra” significa “se despedir” ou “dar adeus”. Nele, quem fica diz a quem foi que pode ir em paz, porque aprendeu os ensinamentos com o coração e sabe o que fazer para continuar seguindo. “Aya” é um símbolo Adinkra que representa uma folha de samambaia. A palavra também significa “Eu não tenho medo de você”. Simboliza resistência, força física. Ele é associado à ideia de superar dificuldades e se adaptar às adversidades.
“Tia, pra quem você está dizendo que não tem medo?”
“Não entendi.”
“Aya significa eu não tenho medo de você. ‘Você’ é quem? De quem você não tem medo? E precisa usar o brinco pra dizer que não tem medo?”
Não ousei responder de primeira. Dada a pausa, Ester continuou:
“Tia, todo mundo tem medo, mas, quando crescer, passa!”
13/09/2024
EMBAÚBA, FIBRA MÁGICA E MÃE DO TEMPO – por Cristine Takuá
Desenho: Isael Maxakali
O povo Guarani nomeia a embaúba de amba’y, o povo Maxakali de tuthi: ela é uma planta mágica e muito sagrada para muitos povos. Há dias estou envolvida com seus encantos, observando suas formas, seus saberes e potências. Dias atrás recebemos a visita dos coordenadores da Escola Viva Maxakali, Isael e Sueli, junto com a tia Juraci e os netinhos. Caminhamos pela floresta, coletamos mudas de embaúba e tiramos sua fibra que, além de ser matéria-prima para tecer, também é usada em cerimônias espirituais. As mulheres Maxakali sempre andam com um macinho de linhas de embaúba para rezar seus filhos, caso sintam algum desconforto físico ou espiritual.
Sueli Maxakali disse que a embaúba, tuthi, é a fibra-mãe porque ela é mágica, e pode fazer com que as mulheres se transformem em sucuris. Ela também pode produzir abelhas, realizar caças e tecer caminhos que chegam até as aldeias celestes. É muito forte a relação das mulheres com esta planta-espírito, e seus saberes são repassados há muitas gerações através do canto. Quando fomos na mata para cortar e tirar sua fibra, houve toda uma preparação com cantos e pedidos de licença para iniciar o trabalho. Não só no momento de extração da fibra, mas em todas as etapas da produção: ao raspar, tirar a linha, secar, enrolar o fio com saliva, há uma relação e uma conexão com os povos-espíritos, os yãmĩyxop. E, através dessas relações com essas árvores-mães em cada fio entrelaçado, vão se tecendo, com os cantos, história e memórias ancestrais.
Fotos: Carlos Papá
Há uma narrativa que conta como, engolindo uma linha de embaúba feita pela mãe, uma mulher ancestral se transformou em sucuri. Essa é a história de kãyãtut, a mulher que vira “cobra-mãe” ou “cobra grande”, por meio de uma linha de embaúba, e se vinga do marido que se recusava a cuidar dela durante o resguardo menstrual. Em vez de cuidar de sua esposa e preparar sua comida, ele preferiu ir caçar antas. A esposa, enfurecida, pediu para sua mãe fazer uma linha de embaúba bastante grossa e comprida e se embrenhou na mata. Na floresta, ela enfiou a linha em seu corpo, fazendo-a entrar pelo ânus e sair pela boca. Amarrou a extremidade superior numa árvore e a esticou até se transformar – ela mesma – em sucuri. Ao virar cobra, a mulher atraiu o marido imitando a voz das antas e, quando ele chegou até ela, o cercou, o prendeu e o engoliu. Em seguida, submergiu nas águas profundas de uma lagoa. Quando ela saiu da água, o marido, ainda vivo dentro dela, cortou a pele da sua barriga com um caco de pedra e saiu voando, pois tinha se transformado em pássaro. A mulher-cobra, ferida profundamente, se agitou contra as árvores até morrer.
Foto: Cris Takuá
São muitas as narrativas que trazem a embaúba como parte de memórias muito antigas. Tanto os humanos quanto os animais, como aves, formigas e preguiças, honram e exaltam sua existência.
Hoje, me preparando para finalizar o diário desta semana, logo de manhã encontrei uma preguiça toda tranquila na floresta. Lembrei de Sueli e Isael e de todos os meus parentes Maxakali, que sonham com a floresta viva de novo. Mandei uma foto.
Logo em seguida Isael me respondeu cantando para preguiça, e assim também fiz.
Fiquei escutando o canto-rezo de Isael com a preguiça, que gosta tanto das embaúbas e veio logo cedo dar um salve e alegrar nosso amanhecer….
Um pouquinho depois, Isael me envia um desenho que ele fez da embaúba e da preguiça.
Assim seguimos nossas conexões nas Escolas Vivas, cantando, sonhando e caminhando lentamente….
Fotos: Cris Takuá
09/09/2024
SEMEAR PALAVRAS – por Veronica Pinheiro
Oficina de papel-semente, poesia e plantio de sementes
Conversa sobre sonhos e sobre bocas que devoram o mundo
Foto: Wagner Lúcio
“Tia, rúcula é planta ou árvore?
“Rúcula é planta de comer. Você quer plantar semente de rúcula?”
“Sim, eu quero. Rúcula é nome bonito. Tem nome de mulher. Tipo Úrsula. Mas começa com ‘R’ de “Rafaela” e ‘R’ de ‘Rita’.”
“É! Rúcula é nome bonito. Você quer plantar a semente de rúcula porque você quer plantar a palavra ‘Rúcula’?”
“Não. Quero plantar a palavra ‘Saudade’ com ‘s’ de ‘Sofia’. Mas não quero uma árvore. Quero que a palavra saudade seja só uma plantinha.”
Alice e eu sentimos saudades. Ela chora todos os dias no final da aula com medo de ser esquecida na escola. Ela chega sorrindo. Almoça. Brinca. Estuda. Conversa. Mas, quando, às 17h, os responsáveis começam a chegar e as crianças são chamadas pelo nome para ir embora da escola, Alice chora. A menina, todos os dias, se justifica como se estivesse incomodando. O choro de Alice não incomoda a ninguém. As outras crianças da escola, professores, funcionários e diretoras acolhem Alice e suas lágrimas. Ela chora de saudade. A mãe de Alice se encantou ano passado. A menina sente medo de ficar só.
Alice e eu temos um segredo, ela pode pegar qualquer brinquedo meu e levar pra casa quando quiser para se distrair e dar gargalhadas de olhos fechados. Alice tem olhos pequenos e, quando gargalha, é quase impossível ver seus olhos. Os olhos de Alice falam mais que sua boca. No entanto, no dia de plantar sementes ela resolveu falar. E falar muito.
A oficina Semear Palavras teve 4 encontros. Passamos um mês juntando numa caixa na sala de leitura todas as folhas de papel descartadas na escola. No primeiro encontro, compartilhamos com as crianças as histórias das árvores que são mastigadas por bocas comedoras de árvores para virar papel. No Brasil, as árvores mais utilizadas para produção de papel são o eucalipto e o pinus. Essas árvores são de crescimento rápido. Por que precisam de árvores que crescem rápido? As crianças respondem:
“Porque a gente usa papel demais e a fábrica tem pressa.” Arthur, 8 anos.
Todas as árvores possuem em suas células uma substância chamada de celulose – é a partir da polpa de celulose que o papel é fabricado. O monocultivo dessas duas árvores vem tomando espaço no campo brasileiro. Pinus e eucalipto são consideradas árvores exóticas, porque não são nativas do Brasil, ou seja, não fazem parte do bioma em que vem sendo plantado. Os que representam as empresas chamam a monocultura de “floresta plantada”. Essa é a informação que chega às escolas de maneira geral e oficial. Por outro lado, ambientalistas e entidades de luta pela terra preferem chamar as plantações de “deserto verde” e reafirmam que as monoculturas não podem ser consideradas “florestas”, devido à pequena biodiversidade em seu interior. Além disso, as comunidades tradicionais e de pequenos agricultores, a partir da relação direta com a terra, defendem o ponto de vista de que as plantações dessas espécies em escala industrial podem gerar drásticos impactos hidrológicos. As monoculturas de eucalipto e pinus contribuem para a diminuição do fluxo de rios e córregos.
Essa conversa começou com um papel retirado da lixeira. O papel voltou ao caderno, à loja, à fábrica, à árvore plantada. Terminamos o primeiro encontro nos perguntando se precisávamos de tanto papel assim.
A escola que conhecemos é uma invenção ocidental que defende interesses específicos. O modelo de escola praticado é incoerente com o discurso de preservação e cuidado com a natureza que superficialmente tentamos aplicar. Uma escola sem papel, seria possível? Será que uma escola que faz seu próprio papel iria desperdiçar tantas folhas? Quando criança, eu deixava o copo com leite quase pela metade, minha mãe dizia que eu só fazia aquilo porque não sabia o tanto de trabalho que dava para ter leite no copo.
Foto: Sabrina Amarante
No segundo encontro, começamos a preparar o papel descartado para ser liquidificado. O papel foi picado pelas crianças e colocado de molho em água por 24 horas. “Ué, tia, a gente não vai plantar hoje?” Passei o dia respondendo a essa pergunta. De maneira geral, falamos como uma coisa é feita e partimos para uma atividade conclusiva. Pular etapas dá às crianças a impressão de que nós, humanos, não precisamos esperar. Para liquidificar o papel precisamos esperar o próximo encontro. Entre um encontro e outro e outro, Alice se mostrava mais interessada na ideia de plantar papel-semente.
Seguimos as etapas de preparação do papel. Liquidificar, enformar, adicionar sementes, secar. A escola de ensino regular se tornou o lugar em que se aprende com olhos e ouvidos. O restante do corpo quase sempre está fora do processo. O corpo produz pensamento e memórias complexas. Deixar o corpo construir respostas aos desafios sem dizer o tempo inteiro o que uma criança precisa fazer é permitir que ela confie em si própria. Algumas folhas ficaram muito grossas e não secaram bem. Um grupo de crianças não dividiram bem a quantidade de semente, o que resultou em papéis-semente sem sementes. Ao fazer esse papel, você pode escolher a semente das plantas que quiser; nós tínhamos sementes de goiaba, rúcula, agrião, margaridas, cenoura, tomate e salsa.
Depois de pronto, você pode usar o papel-semente para convites, papel de carta, presentes, confete biodegradável, cartões de visita… Na escola, com as crianças, escrevemos poesias, sonhos e palavras bonitas nos papéis com tintas de terra. A terra do quintal da escola e dos barrancos de Costa Barros são as mesmas das tintas de nossos desenhos. Distribuimos os papéis-semente entre as crianças. A maioria escreveu “PAZ para pedreira”. Repetidas vezes li a palavra floresta, amor e dinheiro. Entendo o motivo da palavra dinheiro aparecer muitas vezes. Ter o que comer e viver com dignidade ainda é sonho de muita criança. Entre muitas palavras pintadas e desenhos escritos, Alice se preocupa com o tamanho da planta que ela vai semear.
As palavras, textos e desenhos foram plantados em vasos e nos quintais, na escola e nas casas. Quem tem quintal em casa levou semente que vira árvore. Quem gosta de flores levou semente de margaridas. Cenoura e tomate também foram sementes muito escolhidas. Alice foi a única que escolheu a semente pelo nome. Ela achou “rúcula” um nome bonito. O papel que um dia foi árvore, agora guardava sementes que voltariam pra terra pelas mãos das crianças. Reciclar, desenhar e pintar era só a estrada. Queria mesmo falar de semear, semear sonhos com palavras e gestos. Queria na verdade dizer que precisamos cuidar do nosso imaginário (daquilo que sonhamos e desejamos) como se cuida de uma semente. Cuidar da semente até que ela germine, cresça, vire árvore. Depois, cuidar da árvore para que ninguém a derrube. Semear palavra é assunto sério, de onde venho palavra é o desabrochar da voz do falar antigo. Sendo a força do falar antigo, o fundamento dinâmico da vida.
Foto: Professora Míriam Ribeiro
O percurso Aprendizagens Selvagem é um percurso de envolvimentos. É impossível se envolver com um lugar sem se envolver com as histórias daquele lugar e com as pessoas que vivem ali. O envolvimento não é dizer o que o outro deve fazer, mas se disponibilizar a refazer juntos possibilidades e caminhos. Quando nos disponibilizamos a ouvir, o outro vai falar das coisas que estão ocupando muito espaço no peito. E são justamente essas coisas, que ocupam muito espaço, que dão sentido à vida, porque a vida é feita pelo que abunda.
Que sejamos, então, abundantes e semeadores de boas e belas palavras.
06/09/2024
QUINTAIS MEDICINAIS E A BUSCA PELO BEM VIVER – por Cristine Takuá
Desenho: Fabiano Kuaray
Cultivo medicinas sagradas
Para nossa família se curar
O coração se alegrar
E a mente se libertar
Dos preconceitos
Dessa humanidade imperfeita
Da desunião dos
Que não sabem Amar.
Vamos seguindo
Vamos seguindo …
Caminhando sempre
Devagar
Um dia, com firmeza
A sabedoria
Podemos encontrar
Os quintais medicinais e os viveiros de plantas que curam são caminhos de encontro com as possibilidades de viver de uma boa e bela forma nos territórios em que habitamos. Existem muitas plantas, seres sagrados e grandes mestres de conhecimento. Elas nos curam, nos alegram e nos alimentam, e permitem que nos coloquemos no nosso lugar, no equilíbrio que necessitamos para caminhar tranquilamente.
Há muitas e muitas gerações, avózinhas dialogam com as plantas e nos curam dos males do dia a dia, seja uma dor de barriga, febre, dor de cabeça ou ansiedade, mal olhado e susto. Tudo curamos com as plantinhas. Desde criança, me encanto com um quintal todo florido. Dentro da beleza e das cores das plantinhas, não havia flor que não fosse remédio.
Me lembro de males que me afetaram na minha infância e que afetam meus filhos em suas infâncias. Todos foram curados com plantas. Sigo neste estudo de aprendizagem, observando e, às vezes, sonhando, buscando olhar na direção em que elas me orientam. Foi dessa forma que aprendi que as dores da alma se curam com nossas mestras, as plantinhas mágicas e protetoras.
Há uma sensível delicadeza nesse processo de diálogo que busquei praticar em sala de aula de filosofia. Caminhando com os alunos, reconhecendo e pesquisando as histórias e usos de algumas plantas da Nhe’ërÿ.
Já há alguns anos, venho convidando jovens a praticar o estudo com plantas de visão, que mostram os caminhos e as direções, revelando memórias e ativando possibilidades de transformação para encontrar o Bem Viver.
Assim, vou seguindo e sonhando com as Escolas Vivas, florindo através da cura da Terra e do corpo, buscando um sentido para a vida e para nossa luta diária.
Fotos: Carlos Papá
02/09/2024
POR QUE ESCOLA? – por Veronica Pinheiro
“O boneco da tia é mais bonito porque ela brinca de argila há mais tempo”.
José, 7 anos
Semana passada meu pai me perguntou por que eu sempre volto a trabalhar em escola. Tomamos um café no final da tarde. Tentei dizer pra ele o que vou tentar dizer aqui.
A escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana no Brasil: como braço do Estado, ela se faz presente em periferias, aldeias e quilombos. São 47,3 milhões de crianças e adolescentes matriculados em 2023 no país, segundo o Censo Escolar. O diálogo com a educação básica é urgente, uma vez que mais de vinte por cento da população total do Brasil está vinculada a uma unidade escolar. Mais urgente ainda se torna porque a população escolar é composta pela camada mais vulnerável da sociedade: as crianças. E esse diálogo não é exclusivo para pais e educadores. Economistas, artistas, físicos, astrônomos, músicos… toda sociedade deveria estar comprometida com os rumos da educação e das infâncias. As crianças são as mais vulneráveis às crises climáticas e a todas as crises sociais existentes. Mudar o rumo das infâncias de nosso país é a única maneira de possibilitar futuro.
Há um provérbio que diz:
“Nós não herdamos o mundo de nossos antepassados, nós o pegamos emprestado dos nossos filhos.”¹
Os livros didáticos ainda falam de energia hidrelétrica sem falar dos impactos causados pelas hidrelétricas na vida. Sempre lembro de Ailton Krenak falando que a natureza não é “um recurso natural”, um almoxarifado de onde tiramos coisas. Essa informação precisa chegar às escolas. Os adultos, como entes da natureza, precisam tecer diálogos com as crianças. Um diálogo entre seres vivos. O sistema colonialista está a serviço de um pensamento estruturado, universalista, opressor e ele sabe exatamente o que está fazendo. A ele não interessa criar perspectivas reais de futuro. O Estado que regulamenta a educação no Brasil é o mesmo que sabe que, a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes sofrem situações de exploração sexual no país. O Estado a serviço do colonialismo está morto. Cabe a nós, vivos, tecer diálogos sobre a vida. As estruturas atendem agendas; a escola atende pessoas. E por atender diretamente as pessoas, necessita de vida.
Nós, que brincamos há mais tempo por aqui, podemos e devemos compartilhar com as crianças caminhos possíveis para construir “bonecos” e futuros. Li, numa revista de educação, que, nos Estados Unidos, os mesmos arquitetos que projetaram prisões projetaram escolas. As escolas em que estudei tranquilamente poderiam servir de locação para filmes ambientados em presídios: tinham muros altos, grades em escadas, grades em corredores e grades nos pavilhões. Chamávamos de “Carandiru” o anexo ao prédio onde cursei o Ensino Médio .
No Brasil, apenas 34,5% das escolas municipais possuem área verde². As escolas são puro cimento; sem luz natural; sem ventilação natural. Se seguirmos a lógica do pensamento do menino José, de 07 anos, os arquitetos, pessoas que brincam há muito tempo de projetar, poderiam projetar escolas mais bonitas e propor às instituições, de forma técnica, projetos que respeitam a vida das crianças e a natureza. Uma arquitetura para o bem viver das crianças e da comunidade escolar. Verdejar, arvorecer, ativar e acordar memórias é trabalho para uma comunidade. Uma professora com 35 crianças não consegue quebrar cimento para plantar árvore. Por isso, volto à escola com o Grupo Aprendizagens Selvagem. Volto com uma comunidade.
Ainda estamos discutindo coisas que já deveriam estar sendo praticadas. Nós, que estamos aqui brincando há mais tempo, temos essa mania de ficar discutindo as coisas ao invés de praticá-las. Mania de quem foi escolarizado pelo colonialismo.
O colonialismo “etariza”, segrega e diz que escola é coisa de professor e aluno. Se pegamos o mundo emprestado de nossos filhos, e eles estão na escola, é lá que devemos estar também, aprendendo com quem nos emprestou, aprendendo como devolver o que pegamos emprestado. Estar junto confluindo com as crianças não deve ser uma metáfora. A interação e a reciprocidade estão presentes em todos os fenômenos naturais. O contato é necessário para a manutenção da vida. Vivemos porque a vida tem uma teia sensível e super elaborada de contato e cooperação³.
Nesse ponto, unimos o pensamento de Nego Bispo ao do menino José: se a vida é circular e ela rende no compartilhamento, a experiência confluencia na condição de suporte da geração neta.
Resumindo a resposta, posso esperar que a mão que adestra ensine a ser livre.
_______
¹ Provérbio atribuído a indígenas originários do que hoje chamamos América do Norte.
² Dependência física existente à escola. Área verde, espaço de domínio escolar dotado de vegetação ou gramado, livre de impermeabilização, que desempenhe função educativa, ecológica, paisagística ou recreativa, propiciando a melhoria da qualidade estética, funcional e ambiental da escola, sendo recomendado seu uso pedagógico com o desenvolvimento de projetos de educação ambiental, como horta, jardim, pomar, viveiro de mudas de planta e canteiros ornamentais.
³“…a simbiose é ‘simplesmente a convivência com contato físico de organismos de espécies diferentes. Parceiros na simbiose, companheiros na simbiontes subsistem literalmente tocando um ao outro ou mesmo um dentro do outro, no mesmo lugar e no mesmo tempo.”
Margulis, Lynn. Planeta Simbiótico – um novo olhar para a evolução. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2022.
30/08/2024
A FORÇA E SABEDORIA DO FOGO – por Cris Takuá
Foto: Carlos Papá
Da origem do fogo
“Antigamente, quando os Guarani ainda não conheciam o fogo, acabavam comendo cru todas as coisas que os antigos caçavam, frutas que colhiam e precisavam assar. Eles passavam muita dificuldade por não conhecer o fogo.
Então, um dia, um Guarani Mbya viu um abutre voar lá no alto e pensou: “Eu acho que vou ter que conversar com alguém. Como que eu posso fazer para cozinhar as coisas ou até mesmo me esquentar quando faz frio. Como posso resolver? Alguém nesse mundo deve saber. Bom, vou começar pelo abutre”.
O abutre voava lá no alto e o Guarani estava só esperando a oportunidade. Um dia, o abutre estava tomando Sol pousado no chão, então o Guarani Mbya chegou bem devagarinho. Devagarinho, perguntou assim:
“Tomando Solzinho, tomando Sol?”
O abutre falou: “E o que você anda fazendo? Você vai se esquentar também?” Ele respondeu: “Sim, eu vou me esquentar também”.
Aí sentou ali do lado. O abutre começou a ter uma curiosidade e perguntou pra ele:
“E você, o que anda fazendo?”
Aí ele: “Ah, eu estou tentando descobrir como fazer fogo, porque o Sol esquenta. Quando o Sol está quente, todos nós nos aquecemos, mas quando não tem Sol, quando está frio, a gente sofre muito. Então, eu queria descobrir como fazer fogo. E aí eu queria saber: quem será que é o guardião do fogo? Eu quero saber também qual é o animal deste mundo, qual é a ave deste mundo, que é o guardião do fogo?”
Aí o abutre olhou bem assim e falou: “Ah, o guardião do fogo sou eu”.
O Guarani falou: “É mesmo?”
“É, quando não tem o Sol, quando o Sol não vem ao mundo, nós nos aquecemos com fogo”, disse o abutre.
“É mesmo?”, perguntou o Guarani.
“O nosso criador falou que, se eu entregar esse fogo para alguém um dia, eu voaria mais alto que todos, eu conseguiria voar mais alto do que as nuvens”, disse o abutre. “Nunca pensei em dar para alguém o fogo, porque até hoje eu voo baixo. Eu não consigo voar lá em cima.”
O Guarani Mbya respondeu: “Ah, então você falou com a pessoa certa! Eu estou querendo fazer fogo, eu quero lidar com fogo, quero dominar o fogo, quero poder cozinhar os alimentos”.
Aí disse o abutre: “Ah sim, podemos combinar então. Eu quero voar mais para cima, quero conhecer um pouco mais as nuvens lá em cima. E também, eu gostaria muito de comer as folhas de tabaco, as folhas de tabaco plantadas”.
O Guarani Mbya respondeu: “Ah, então você falou com a pessoa certa, eu vou plantar tabaco. A hora que estiver pronto, você vem comer as folhas. Assim fica combinado”.
Foto: Cris Takuá
Aí no outro dia, o Guarani Mbya pegou as sementes de tabaco e começou a fazer sua roça. Plantou tabaco, e plantou bastante mesmo. Cuidou com o maior carinho e, quando a folha ficou bonita, toda vistosa no ponto do colher, o Guarani Mbya chamou de longe: “Está pronto! Agora pode vir!”
Aí o abutre chegou e falou assim: “Muito obrigado! Então, fazemos nosso acordo. Amanhã eu venho com o pessoal e, no outro dia, depois que a gente for embora, você vai pegar o fogo. Esse é nosso acordo. E aí a gente vai deixar um instrumento também para você. Quando você precisar fazer seu fogo, você vai ter que fazer esse instrumento. É como seu arco: você vai pegar uma vareta firme e fazer o furo na outra madeira. Com esse arco, você vai achar uma maneira mais fácil de rodar, girar a madeira. Por conta da temperatura alta na ponta da madeira, pega o fogo. Assim você vai aprender, vai praticando”.
O Guarani Mbya viu muitos abutres na roça dele, comendo as folhas. Alguns abutres até levavam as folhas de tabaco. Tinha até filhotes, muitos abutres mesmo. Eles comeram todas as folhas e, à tarde, todos começaram a voar e ir embora.
Ele olhou para a roça e nada. No outro dia, voltou lá e estava tudo seco. Ele viu, na ponta da roça, uma madeira pegando fogo. Ele ficou tão feliz que ficou lá, cuidando do fogo. Fez uma oca em cima e ficou cuidando do fogo, durante muito tempo, até que aquela madeira chegou ao fim. Ele não sabia mais o que fazer e lembrou do instrumento que o abutre tinha deixado. Ele procurou por ali e, de repente, encontrou: um arco, uma madeira e uma vareta, ali, uma varetinha, e uma outra madeira com furo. Ele começou a fazer testes e se dedicou a praticar por bastante tempo. Um dia ele já estava quase desistindo, mas tentou de novo, e percebeu que estava saindo fumaça no lugar do furo. Ele começou a soprar, colocou as varetas, e elas começaram a pegar fogo. Ele ficou tão feliz!
Ele entendeu que o abutre tinha entregado o fogo e o segredo do fogo. O abutre não podia mais ser o guardião do fogo.
Hoje, o abutre vive em cima das nuvens. É o pássaro que voa mais alto, mas ele não é mais o dominante do fogo. O Guarani Mbya que ficou como guardião do fogo.”
(Carlos Papa Mirim Poty, Guarani Mbya)
Foto: Cris Takuá
Assim como os Guarani, muitos povos indígenas têm suas narrativas ancestrais sobre a origem do fogo e sua significância para a cosmologia de suas tradições. Ao longo da história, modos de fazer roça e práticas de manejo integrado ao fogo foram ferramentas de uso muito importante para conservação da biodiversidade, tendo aspectos ecológicos, sociais e culturais de muitos povos. Porém, de forma inadequada empregaram essa técnica para desmatamentos criminosos, causando o desequilíbrio das florestas e de nossas vidas. Essas violências relacionados ao mau uso do fogo, ou o seu uso abusivo e descuidado, estão totalmente ligadas a políticas da monoculturas de exportação, ao café, ao gado, ao agronegócio, à mineração, à urbanização e ao capitalismo de um modo geral, que não respeitam as vidas vegetais, animais e minerais, nem mesmo as vidas humanas.
O fogo também é um elemento muito antigo conectado à espiritualidade. Rituais e cerimônias de cura têm no fogo a base da transformação, que pode ser para proteger uma pessoa que faleceu e garantir a seu espírito um retorno tranquilo. Também é tradicionalmente usado para espantar os maus espíritos e, devido a isso, o fogo costuma acompanhar as noites, aceso logo após o pôr do sol, se mantendo até o amanhecer do dia. Em muitas culturas, quando alguém morre, costuma-se queimar a casa onde a pessoa morava e todos os seus pertences, para que o espírito se desprenda da terra e não deixe lembranças.
Fotos: Cris Takuá
Muitos são os saberes e conhecimentos relacionados ao fogo. Ele é sagrado e existe há milhares e milhares de tempos. Um grande ensinamento que um ancião de mais de cem anos fala é que a tecnologia indígena permite a regeneração. O fogo não é usado de qualquer maneira, ele é rezado, primeiro é pedido licença e permissão e seu uso é controlado.
Quando empregado na agricultura comunitária, ele avança mais sobre cipós e pequenas plantas, previstas para serem queimadas. Em seguida, as mulheres plantam primeiro as plantas de ciclo rápido, como milho, feijão, melancias. Depois vem a capoeira e, com ela, os animais e pequenos seres. Os animais trazem sementes, que vão aos poucos germinando. A segunda queima, a coivara, é uma seleção mais fina de pontos férteis. A partir daí, é plantada a batata-doce, que aproveita particularmente o potássio das cinzas. Muitos povos chegam a preparar comida nos locais das roças para aproveitar as cinzas como nutriente. As plantas introduzidas no primeiro plantio são as mais tolerantes ao fogo, vindo depois as frutíferas, destinadas à caça. Hoje, muitos têm empregado técnicas de agrofloresta, até para recuperar solos demasiadamente degradados pela ação humana.
De um modo geral, o que ensina a agricultura indígena é o que a arrogância colonial se negou a aprender com ela. A arrogância acabou destruindo a vegetação, o que endurece o terreno, diminui sua permeabilidade, aumentando o escoamento de nutrientes e acentuando a erosão, impedindo a acumulação de húmus e perdendo a água.
Saber caminhar de forma respeitosa e suave na Terra e saber como se relacionar com os elementos sagrados – água, fogo, terra e ar – é fundamental para que possamos entender os limites dessa nossa humanidade.
Esses são ensinamentos vivos em muitas culturas. E a prática desses saberes e fazeres é resistência num mundo onde o dinheiro pretende comprar até almas.
É necessário romper com as barreiras da arrogância e enxergar que existem muitos mundos possíveis. A semeadura mais importante hoje é a mental!
Ampliar a consciência para que o respeito para com todas as formas de vida possa existir novamente!
O fogo é sagrado!
Fotos: Carlos Papá
27/08/2024
O SENHOR DO QUINTAL – por Veronica Pinheiro
Os quintais que conheci eram regidos por senhoras. As senhoras dos quintais. Cresci sem um quintal para chamar de meu. No entanto, imergia semanalmente no quintal de Dona Irene, minha avó. Um quintal cheio de plantas, árvores e água. Planta para comer, para banhar, fazer chá, para benzer e para enfeitar os olhos. Quintais são lugares suspensos, onde se brinca de ser até chegar a hora de ser. Assim como eu, a maioria de meus pequenos companheiros nessa jornada de despertamento de memórias na Favela da Pedreira não tem um quintal em casa.
Andando por quilombos e aldeias fico pensando sobre quintais, terreiros e a ausência de lugares comunitários em espaços urbanos periféricos. A ausência desses espaços de brincar influencia no sentido comunitário, pois, quando os seres brincam, representam o mundo em sua volta e os mundos que carregam nas memórias. Brincando, o passado e o presente são reinventados. Brincar não é uma ação exclusiva da infância: de onde venho, brincam mulheres, homens, astros, plantas, animais. Seres encarnados e encantados também brincam. Era comum olhar pro céu e dizer que o Sol estava se escondendo; dizer que as árvores estavam dançando… que o vento cantava. Era comum também brincar com as entidades em casa.
A Escola Municipal Professor Escragnolle Dória tem um quintal grande e pouco utilizado por questões de segurança. O quintal é o espaço mais vulnerável da escola, exposto ao tempo e à “bala perdida”. Se as crianças da periferia não têm quintal em casa e não têm locais comunitários, onde brincar? Faço da sala de leitura um quintal, um quintal Selvagem com fogueira e luar. Entendemos que os passeios organizados pelo Grupo Aprendizagens junto à escola também precisavam ser momentos para brincadeiras. Ao passear com as crianças pela cidade do Rio de Janeiro, percebemos que, entre elas, acontecem movimentos profundos de ampliação de olhar sobre si e sobre o território; autorregulação das emoções e impulsos; além de aflorar o sentimento comunitário. Organicamente, ao sair da escola, vemos alunos “bagunceiros” se tornarem líderes, assumindo o cuidado dos colegas que necessitam de suporte. Uma criança segura a outra pelas mãos e se disponibiliza a passar o dia todo ao lado do colega que está com medo ou ansioso.
O quintal é o lado de fora, o lugar dos encontros e das construções afetivas, sagradas, comunitárias e festivas. Nossos passeios são um convite para fora. E algumas pessoas muito gentilmente têm colaborado para que possamos sair com segurança e estrutura. Fomos à Quinta da Boa Vista com o apoio financeiro de um ex-aluno da escola. Seu Altair estudou na Escragnolle nos anos 80 e, quando soube que estávamos levando as crianças para encontros com a natureza fora da escola, prontamente se disponibilizou para pagar ônibus e lanche. Seu Altair e sua esposa eram os anfitriões do quintal, igual acontece nas folias nos quilombos. Muitos quintais foram abertos naquela manhã.
Taiana Simões¹ abriu a porta dos Quintais Brincantes, trazendo pra brincadeira Bia Jabor e Rafael Cruz. Bia já faz parte da comunidade Selvagem e Rafael está nos convidando para brincar nos quintais da UNIRIO. A Quinta da Boa Vista seria apenas nossa localização na terra.
Taiana, depois do piquenique e da caminhada, falou:
“Conta a história que há muito, muito tempo, nessa mesma terra, morava um senhor chamado Quintas. O senhor Quintas amava o seu quintal e cuidava com todo carinho de tudo o que naquela terra crescia. Amava tanto e cuidava tanto que o quintal era a coisa mais linda de se ver. E não só de beleza vivia esse quintal. Todos os frutos que cresciam ali tinham algo de muito diferente dos de qualquer outro lugar. Eles eram enormes e muito, mas muito doces mesmo! Eram tão grandes que as laranjas eram do tamanho da cabeça das crianças que corriam por ali, as melancias chegavam a ser do tamanho da roda dos caminhões.
Era tanta fruta, grande e deliciosa que o quintal do senhor Quintas oferecia comida para toda a comunidade em volta. Fosse bicho gente ou bicho passarinho, macaco ou gambá, todos que passavam por ali tinham o que comer e uma boa prosa para trocar com o senhor Quintas.”
Me assustei! Conheço a Quinta desde criança e nunca havia ouvido falar do Senhor Quintas.
Fui acompanhando a narrativa atenta! Onde estava eu, que não conhecia aquele senhor incrível? Me dei conta de que o que Taiana contava era verdade criada, verdade literária que acontece na imaginação.
“A notícia desse quintal encantador, com frutos gigantes e deliciosos correu de boca em boca. E trouxe mais uma série de curiosos que só queriam pegar algo para si. E foi assim que, dia após dia, o quintal inteiro se entristecia, nada era como antes, nada era mais tão vibrante. E, conforme o tempo passou, o senhor Quintas viu seu quintal morrer pouco a pouco, planta por planta. Até que, sem saber mais o que fazer para salvar o seu tão querido quintal, o senhor Quintas começou a sentir uma tristeza tão grande, mas tão grande, que começou a cavar um buraco na terra, bem no meio do seu quintal. Cavou um buraco bem fundo e ali colocou seus dois pés, cobriu o buraco com terra e esperou, esperou, esperou, até que veio a chuva. Com a chegada da chuva na terra, os pés do senhor Quintas começaram a criar raízes, que se aprofundaram cada vez mais na terra. Suas pernas ficaram rígidas, se transformando em um tronco duro e muito firme. Seus braços e cabelos se voltaram para o céu, cresceram e se transformaram em galhos e folhas bem altos e vistosos de se ver. Assim, todas as partes do corpo do senhor Quintas se transformaram em uma grande e bela árvore, exceto uma parte que batia dentro do peito do senhor Quintas, marcando o ritmo de sua nova vida. Se tornou assim o homem Arvoredo, a árvore guardiã desse quintal.”
“Tia, seu Quintas existe?”
Respondi: “acho que sim”. Angélica, de 08 anos, já havia me explicado no início do ano em visita ao Jardim Botânico que a gente era meio árvore.
Percebendo a dúvida nos olhos de quem ouvia, Taiana entregou estetoscópios para as crianças escutarem o coração das árvores. Assim, a dúvida deixou de existir, todas as árvores daquele quintal tinham um coração pulsante. O senhor dos Quintais estava ali.
As crianças, mais atentas que eu, conseguiram ouvir o coração da jaca bebê. “Tem que cuidar das árvores, né, tia? Tá tudo vivo.”
Tudo está vivo. Depois de me dizer isso, Bia sai correndo para os braços de sua avó Lúcia. Até minha chegada à Escola Escragnolle, Lúcia era a professora responsável pela sala de leitura da unidade. Ela se aposentou semanas depois da minha chegada, porém está presente em todos os passeios como voluntária. Lúcia, de alguma forma, está plantada, trazendo vida à escola de outras formas. Durante muito tempo desejei ser vento. No entanto … junto com as crianças, tenho desejado ser árvore plantada.
Fotos das crianças da Escola Municipal Professor Escragnolle Dória
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¹Taiana Simões, educadora antirracista, com o olhar sensível para a natureza e as infâncias. Realiza trabalhos integrando diversas áreas do conhecimento como a alfabetização ecológica, o ensino de ciências, a contação de histórias, o letramento racial e a agroecologia.
História do senhor Quintas, de Henrique Santiago, o criador da Ecobé
22/08/2024
SONHO DA TERRA VIVA – por Cristine Takuá
Foto: Cristine Takuá
Essa terra é nossa.
Nũhũ yãgmũ yõg hãm.
Por que essa terra é nossa?
Sem a terra não tem escola diferenciada. Sem a terra não tem saúde diferenciada. Porque nós lutamos para conquistar a terra. Realizamos nosso sonho e hoje vamos criar muitos projetos em cima da terra. Da nossa terra. Por que nós chamamos Aldeia-Escola-Floresta? Porque onde tem aldeia, tudo é “sala de aula”. Onde tem árvore e sombra é “sala de aula”. As crianças vão cantar o nosso ritual. Imitam. Na beira do rio, elas vão brincar, cantar e escrever na areia. Tudo é “sala de aula” dentro da aldeia. Todos os homens vão para dentro do mato e vão cantando dentro do mato. Vão tirando madeira e vão cantando. Por isso, colocamos o nome Aldeia-Escola-Floresta, porque toda a aldeia é escola. Onde tem sombra, as mulheres vão se juntar e fazer os artesanatos. As crianças vão chegando, escutando do lado e aprendendo também. A aldeia inteira é escola. Onde tem casa de ritual é escola verdadeira, muito importante. Vai ter canto, história, cultura, comida tradicional. Nós, comunidade da Aldeia-Escola-Floresta, queremos terra para Yãmĩyxop, para crianças, para o futuro. Porque nós nascemos todos junto com a floresta, nascemos todos juntos com a caça. Essa terra é nossa mãe porque ela alimenta todos nós. Os nossos cantos registram todas as caças. Alguns bichos que perdemos, o canto registra. E os desenhos também representam os animais. Tem bichos grandes que perdemos, mas registramos os seus nomes. Nosso canto fala seus nomes. Nós, Maxakali, somos sofredores, mas nosso Yãmĩy nos acompanham. Todos os dias os Yãmĩy saem comigo, com todos os Maxakali.
Fotos: Carlos Papá
Por que eu falo Aldeia-Escola-Floresta?
Se eu sair daqui, se eu for para o mato, o meu Yãmĩy está me acompanhando, eu vou cantando dentro do mato. Se eu brincar no rio, outro Yãmĩy vai me acompanhar. Eu vou imitar qualquer bicho: peixe, jacaré, andorinha, vou fazer seus cantos. Por isso é que chamamos Aldeia-Escola-Floresta. Aqui, a minha casa é escola, porque estamos passando o nosso conhecimento para os jovens que estão aprendendo agora.
Nós somos professores. Nós estamos falando. Eles estão escutando as falas. Pegamos a palavra boa para esperar a nossa memória, para não cair. Tem que crescer. Ter o conhecimento diferente, pegar o outro conhecimento para crescer a Aldeia-Escola-Floresta.
Nosso sonho é pegar a terra e recuperar. Porque ela precisa ser curada, precisa de tratamento. Porque a terra é viva. Terra fala, terra olha a gente e terra grita. Mas o fazendeiro não escuta que a terra está gritando e precisa de socorro. Por isso que nós queremos reflorestar, e fazer a Aldeia-Escola-Floresta.
Palavras-sonho de Isael Maxakali
Artes: Marcos Maxakali
Foto: Cristine Takuá
No início de agosto, fomos visitar a Escola Viva Maxakali na Aldeia-Escola-Floresta. Foi um encontro muito emocionante, onde conseguimos dialogar, ouvir os cantos dos espíritos, desenhar com as crianças, os jovens, os pajés e as mulheres anciãs.
A arte é um portal muito poderoso para os Maxakali, pois eles transformam a memória dos cantos em desenho com uma habilidade e concentração muito encantadora.
Com o apoio do Selvagem e do Instituto Tomie Ohtake, realizamos uma oficina de três dias e dialogamos sobre o território, sobre os animais espíritos de cada ritual, sobre os alimentos tradicionais e todos os seres que habitam o território.
Da esquerda para a direita, artes de Marineide Maxakali, Juan Maxakali e Jurema Maxakali.
Mesmo a floresta tendo sido quase que totalmente devastada, os Maxakali guardam a memória de todos os animais e vegetais nos cantos, dezenas de espécies de abelhas e de plantas.
Um sonho que venho semeando em meu coração e em meus pensamentos é de conectar o Hãmhī, Terra Viva, um projeto maravilhoso de reflorestamento e implementação de quintais agroflorestais nas aldeias Maxakali, com as ações da Escola Viva e com a cura do corpo e do espírito. São muitos os desafios que as comunidades enfrentam hoje, como o lixo, a tristeza da perda da floresta, a falta de caça, o preconceito dos não indígenas, que vivem nos entornos das aldeias e na cidade. Todos esses desafios acabam levando ao alcoolismo e à tristeza. São muitos os problemas que exigem uma força de resistência e de ampliação da consciência para a transformação na ação da micropolítica do dia a dia, do próprio terreiro que nos rodeia.
Foto: Carlos Maxakali
As palavras-sonho de Isael Maxakali são profundas intenções que são sopradas em palavras por muitos Maxakali, homens e mulheres que anseiam ver a floresta viva, as crianças felizes e o suspiro tranquilo do Bem Viver em seus territórios.
Na caminhada que fizemos chegando na Aldeia-Escola-Floresta, tivemos a sensível possibilidade de perceber a força e beleza da resistência das mulheres que, com suas cores e risos, transformam os desafios em poesias a cada novo amanhecer.
Resistir para Existir
Sonhar para não deixar de Acreditar
Que é possível metamorfosear as relações
E fazer brotar uma realidade de mais encantos
Viva viva as Escolas Vivas!
Foto: Cristine Takuá
Foto: Carlos Papá
20/08/2024
QUEM TEM O PODER DE REPRESENTAR TEM O PODER DE DEFINIR E DETERMINAR A IDENTIDADE – por Veronica Pinheiro
— Eu fiz mágica! — disse um menino de sete anos de idade quando conseguiu fotografar seu amigo com uma câmera profissional.
Ele olhou o visor da câmera, parou e quase não respirava. Eu vi seu corpo em silêncio absoluto. Vi o silêncio pela primeira vez. De fato, ele fez mágica. Um pajé sabe quando faz a cura, um professor sabe quando dá aula. E um mágico sabe quando faz mágica. Esse menino escolheu como representar seu amigo. Cuidadosamente escolheu ângulo e momento. Ele se viu no amigo e representou seu amigo como gostaria de ser representado. Talvez ele não saiba, mas quem tem o poder de representar pode determinar identidade. Mesmo sem saber, meu pequeno companheiro percebeu a força daquele ato.
As escolas de ensino regular, em sua maioria, mantêm os alunos o tempo todo em uma sala de aula apertada, com janelas fechadas e com iluminação artificial. Sentados em cadeiras desconfortáveis, passam horas sem olhar seus amigos nos olhos. Em silêncio. O silenciamento imposto, recorrente e institucional é violento, subjuga e aprisiona os sujeitos. Quais são as consequências de passar horas com alguém sem poder olhar nos olhos, sem olhar pra fora? Temos muitas críticas a esse modelo de educação, no entanto não podemos ignorar que, no Brasil, crianças e adolescentes urbanizados, principalmente nas periferias, estão tão vulnerabilizados que a escola pode se tornar um espaço de construções interessantes. Então… se a escola é um lugar de homogeneização e docilização de populações, ela também pode vir a ser um lugar de ruptura e insurgências.
São tantos direitos negados: direito de saber que é natureza; direito de brincar; direito à cidade; de ter acesso às manifestações do mundo natural…
Nesse nosso movimento de acordamento de memórias e fortalecimento dos territórios, compartilhamos o brincar, o caminhar e recebemos as crianças em espaços especiais para o Selvagem. As atividades, até nossa ida à Quinta da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro, eram fotografadas por profissionais que fazem parte da Comunidade Selvagem. Erika Hoch é uma dessas profissionais; generosa e amorosa, compartilha conosco seu olhar sobre os encontros através de registros fotográficos. Erika não estaria no Rio no dia da visita à Quinta. Nesse momento, também se uniu ao nosso grupo Carol Delgado. Carol, assim como Erika, traz a felicidade no olhar e nos gestos. O olhar das duas me é muito familiar, olhar de curiosidade, olhar de esperança. Quando olho nos olhos delas vejo as crianças que comigo compartilham essa jornada. A fotografia, além do lugar do registro, pode ser a manifestação do olhar. E o olhar pode ser construído. No texto “A função da Arte”, de Eduardo Galeano, o menino Diego, diante do maravilhamento de ver o mar pela primeira vez, pede: “Me ajuda a olhar.” Erika e Carol me ensinam a olhar.
Na Quinta da Boa Vista, Carol escolhe deixar que as crianças contem o que seus olhos viram. Ela entrega a câmera fotográfica na mão dos pequenos. Ensina a um como operar a câmera. Propõe combinados e acompanha o processo. A próxima criança a fotografar não seria ensinada por Carol, mas pelo colega que o antecedeu na atividade. Eu acompanho os movimentos de Carol e o movimento das crianças. Não dou muitas informações sobre as crianças previamente aos voluntários. Digo apenas que elas são solares e com muita energia. A turma que vivenciou esse passeio em especial é uma turma conhecida na escola por sua agitação. A Quinta era o lugar menos aconselhável para esse grupo, um local muito amplo e sem “atrações”. Decidi chegar ao local duas horas antes das crianças para procurar um lugar especial entre as árvores. Havia entre os professores da escola uma organização específica para conter possíveis situações de brigas entre as crianças.
Diante da amplidão e das muitas árvores, as crianças mais inquietas entraram em estado de contemplação e reflexão profunda de si.
— Você está vendo que eu nem estou fazendo bagunça hoje? — disse a menina de 7 anos — Não bati em ninguém e nem vou bater. Como faz pra voltar aqui?
Era dia de olhar e construir olhar. O lugar do registro é um lugar delicado. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. O direito de olhar e ser olhado é algo negado aos corpos dissidentes. Quando eu escrevo sobre as crianças da favela da Pedreira, sou eu representando e construindo olhar sobre o que são crianças da Pedreira. A herança colonialista diz que alguns humanos podem determinar a identidade de outros, e há quem se sinta confortável nessa função.
“Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e de determinar a identidade. […] A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer oportunidades para que as crianças e os/as jovens desenvolvessem capacidades de crítica e questionamentos dos sistemas das formas dominantes de representação da identidade e da diferença” Tomaz Tadeu da Silva
Temos umas três centenas de fotografias feitas pelas crianças. Confesso que não tenho recursos para compreender a complexidade da narrativa que construíram sobre os passeios fotografados por elas. Ando sabendo muito pouco e sentindo muito ultimamente. A maioria das fotografias são de sorrisos e abraços. Quando eu era criança, sabe como eram representadas as crianças das periferias em fotografias? Os livros didáticos que estudei só colocavam fotografias de pessoas pretas e pardas em situação de vulnerabilidade. Nos livros de ciências, por exemplo, sempre aparecia uma criança racializada nos capítulos que falavam de verminoses. Nos de história, pessoas negras sempre apareciam acorrentadas ou trabalhando em funções socialmente desprezíveis. Assim como um texto escrito, a fotografia é um texto repleto de intencionalidade. Não há neutralidade nas imagens, e as crianças entenderam isso.
Elas escolheram como gostariam de ser representadas e vistas: sorrindo, brincando e correndo. Sorrir, brincar e correr são atos de insubordinação para crianças em contexto de extrema violência. Os registros feitos pelas crianças são insubmissos à dor e à opressão imposta às crianças do Complexo da Pedreira.
Elas determinam como eu devo olhar para elas. Elas são a vida se desdobrando em vida.
A prática da fotografia na mão dos pequenos
aconteceu também em um passeio ao Pão de Açúcar
no dia 03 de julho de 2024.
15/08/2024
ACORDAR DO DIA – por Cris Takuá
Desenho: Isael Maxakali
CANTO DO POVO DE UM LUGAR
Música de Caetano Veloso traduzida para Maxakali
Todo dia o Sol levanta
E a gente canta o Sol de todo dia
Finda a tarde a terra cora
E a gente chora porque finda a tarde
Quando à noite a lua mansa
E a gente dança venerando a noite
TIKMÛ’ÛN KUTEX HÃM PUXET TU
Mãyõn yã hãm tup pip ma xupep
Hakmû tuk kutex mõkumak hãmtup pip ma
Mõnãm tûmnãg tu yã nãm te hãm’atã nãhã
Iîg mûg potaha ãmãxãgnãg yî
Mãyõnhex ãmniy pipma nõgtap
Yîg mû ãte hãm yãg ûmõg me’ex ãmnîyhã
Arte: Isael Maxakali
Na bruma suave que envolve o amanhecer, crianças, jovens, avózinhas e adultos se misturam numa melodia de risos, cantos e contação de sonhos. A fumaça da fogueira, junto ao foguinho que faz o café ou esquenta a água para o chimarrão, se faz presente. Pássaros cantam e encantam os momentos que a cada novo momento vivemos no acordar do dia.
O Sol é considerado um guia e um criador, uma fonte de vida e energia, um ser sagrado que aquece e ilumina, com suas camadas radiantes, para nos encorajar a animar a caminhada dos anseios e desafios. Cada povo, em sua memória ancestral, o nomeia à sua forma: os Guarani o chamam de Kuaray ou Nhamandu, quando se referem à sua divindade, os Maxakali, de Mãyõn, os Baniwa, de Kamoi e os Huni Kuï, de Bari.
Foto: Cadu Castro, aldeia Rio silveira
Muitos sábios anciãos dizem que o Sol se levanta todos os dias somente por conta da preciosa presença das criancinhas aqui na Terra. É por elas, segundo eles, que o sagrado Sol ainda vem, mesmo com tantas contradições humanas.
Hoje, muitos crescem tendo medo dele, sempre pensando nas mudanças climáticas e no aquecimento do planeta, mas não se lembram, ao acordar e ao entardecer, de reverenciá-lo. Os povos indígenas, desde crianças, são ensinados a honrar e reverenciar o Sol, a lua e todas as entidades do céu e da Terra, os visíveis e invisíveis. E imersos, nessa poética de resistência, cada um, a seu modo, busca seguir os rastros de seus antepassados com respeito, delicadeza e beleza.
Desenho: Jose Vhera Guarani
NHAMANDU TENONDE
Nosso Deus Sol Primeiro
Nhamandu tenonde
Oyvarapy py
Imba’ekuaa gui
Onhembojera
Pytuymã mbyte gui
Nhanderu
Nhamandu tenonde
Nhamandu tenonde
Tenonde
Tenonde
Foto: Cris Takuá
13/08/2024
O SOL HÁ DE BRILHAR MAIS UMA VEZ – por Veronica Pinheiro
“O único jeito de guardar dados a longo prazo, tipo verdadeiro longo prazo, é em relações intergeracionais, onde dados são guardados em narrativas, narrativas intergeracionais. Podem durar quarenta, cinquenta, sessenta mil anos. Podem durar enquanto houver relações continuadas – aqueles dados durarão. É a única maneira de guardar dados a longo prazo”
Tyson Junkaporta¹
Um dia ouvi do mestre Nego Bispo: “Não somos decoloniais, somos contracoloniais. Você não precisa da academia para falar das coisas que sua avó lhe ensinou. Foram as coisas que sua avó lhe ensinou que mantiveram você viva”. Diariamente professores, educadores e estudantes me perguntam sobre referências bibliográficas. Fomos educados para confiar no que dizem os livros. Porém, antes de existirem livros sobre plantas medicinais, raizeiros, pajés, rezadeiras compartilhavam com suas comunidades medicinas e terapias. Os saberes intergeracionais seguem fluindo e confluindo. Não refluem. Os saberes acadêmicos refluem: por exemplo, a eugenia já teve validade científica. Hoje, a eugenia não tem comprovação nem validade para a ciência. Quando não há circularidade, você vai ter que voltar por onde você foi.
As narrativas intergeracionais são circulares: ao mesmo tempo que vai, algo fica; ao mesmo tempo que fica, vai. Uma educação que pensa despertar memórias busca fortalecer as conexões das crianças com o território, fortalecer vínculos, saberes e práticas de vida que lá existem. Na circularidade, o que já se foi, o que é e o que virá estão sensivelmente conectados. A narrativa é o fio que estrutura essa trama de vida. As narrativas guardam a consciência do que somos. As narrativas geracionais não são apenas para o despertamento de uma consciência sociohistórica, elas mantêm pilares que possibilitam uma leitura de si por meio dos seus próprios olhos.
Contamos histórias para pensar mundos possíveis. Mundos onde caibam os diversos, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. No mundo Bakongo, por exemplo, a palavra Ubuntu, não traduzível diretamente, exprime a consciência da relação entre o indivíduo, a comunidade e tudo o que existe. Segundo a filosofia africana Bakongo, quando nasce um ser humano (untu), nasce um sol. E o bem viver é alcançado quando todos os sóis estiverem acesos.
De certa forma, as histórias possibilitam que os sóis continuem brilhando. Quando Kauê Karai Tataendy, uma criança Guarani, me pergunta como eu organizo minhas oficinas e se ele pode levar os materiais para recriar junto com Flávio, seu amigo, os desenhos na aldeia, penso que, de alguma forma, estamos nos animando mais uma vez. O amor de Kauê por Flávio, somado ao desejo de compartilhar com o amigo tudo que aprendeu, mantêm os sóis um do outro acesos. Kauê se move para que o sol de Flávio continue brilhando.
O compartilhamento é a energia que nos move. Enquanto existirem confluências e compartilhamentos, o Sol há de brilhar mais uma vez.
Nos animemos mais uma vez. Nós somos filhos do sagrado.
Re existimos diariamente sob o Sol.
¹Tradução de Gerrie Schrik – A fala de Tyson Junkaporta pode ser acessada aqui https://emergencemagazine.org/interview/deep-time-diligence/
08/08/2024
JEROKY, BROTO FLEXÍVEL – por Cris Takuá
Foto: Alexandre Maxakali
“Tudo que nasce é como um broto. Tudo que brota, dança: ojeroky. Assim, dançando, as coisas surgem e crescem. O termo Guarani jeroky é traduzido como “dança”, mas, se nos aprofundarmos em sua raiz, significa “desabrochar-se como uma nova semente”.
“A nova semente germina na escuridão do subsolo e dela desponta a raiz que vai se propagando. Aparece a primeira folha que, dançando, precisa sair do subterrâneo em busca de luz. Com nossos corpos acontece o mesmo: precisamos dançar para sair do ventre materno em direção à luz.”
Carlos Papa e Anai Vera
(https://piseagrama.org/artigos/jeroky-a-danca-do-broto/)
Foto: Cris Takuá
Em meio à profundeza do escuro, há milhares e milhares de tempos fez-se desabrochar a vida e tudo que habita o mundo, assim nos contam os pensadores Guarani.
Desde a gestação na barriga de sua mãe, o bebezinho dança, baila e surge de forma natural ao mundo. E a partir desse momento, como um pequeno broto, cada um de nós vai desabrochando, até começar a engatinhar, caminhar e trilhar os caminhos dos nossos sonhos e anseios.
Foto: Carlos Papá
Curiosamente observo que, ao longo da vida, somos moldados pelas escolas não vivas e pelas cidades concretizadas e quadradas a sempre andar em linha reta, sempre sentar com o corpo dobrado na cadeira.
Com isso, desaprendemos o princípio básico do Jeroky, como nos faz praticar a Escola Viva da floresta. Caminhar na mata é bailar, dançar feito um “broto flexível”. Assim como sentar debaixo de uma árvore para contar e ouvir histórias, nossos corpos se mantêm em constante harmonia na melodia da floresta.
Quando nos permitimos sentir nosso corpo e os movimentos naturais que as florestas nos ensinam a conviver, passamos a nos conectar com a vida que pulsa e é incrivelmente selvagem.
Foto: Cris Takuá
Foto: Alexandre Maxakali
*Vídeo de Carlos Papa – Jeroky
https://youtu.be/mlipzvcQ9wM?si=kexo4c8AEEwNVAV0
06/08/2024
A AVÓ, AS CRIANÇAS E AS ÁGUAS – por Veronica Pinheiro
“As águas são como nossas parentes. Antigamente, os meus avós diziam que não se jogava sujeira na água, pois é a mesma coisa que jogar uma sujeira no olho de nossa avó ou da nossa mãe”, kujá Iracema Gah Teh
Foto: Tania Grillo
Uma conversa líquida e circular. Confluências entre uma avó Kaingang, as crianças do Rio e as águas da Baía de Guanabara. Ela, do Rio Grande do Sul. Elas, do Rio de Janeiro, nascidas nas proximidades do Rio Acari. A Baía, um estuário de inúmeros rios, um corpo d’água parcialmente encerrado, formado pelo encontro das águas doces que se misturam com a água salgada do mar. A avó, as crianças e as águas se encontraram na cidade do Rio de Janeiro, no Morro do Pão de Açúcar. Na agenda escolar das crianças, a atividade consta como passeio escolar; chamo, porém, de Encontro. Um movimento de conexão e ampliação de olhar. Pois, se cada um enxerga com o olho que tem e entende apenas o que os pés reconhecem como caminho, quando seres com olhares diferentes, cujos pés reconhecem outros caminhos, se encontram, novas tramas de vida são estabelecidas. No encontro, os diversos se conectam de forma tão natural que um indivíduo pode começar a desejar outras possibilidades de se relacionar com a vida, com o cosmos e com ele mesmo. O encontro é o evento natural que mantém a vida. É assim na floresta, nas cordilheiras, nos quilombos… nas favelas.
Esta página de diário é um breve e superficial relato do encontro de uma avó Kaingang com as crianças no alto de um morro rodeado por águas. Em 3 de julho de 2024, recebemos as crianças na escola às 7h30 para o café da manhã. O ônibus rosa já nos esperava. A cada dia, mais pessoas se unem para sonhar junto caminhos de vida para a favela da Pedreira. Até o motorista, que também é dono do ônibus, se tornou um parceiro nas atividades do Grupo Aprendizagens na escola. Seu Jonas disse que a viagem do dia 03 era por conta dele e nada nos cobrou naquele dia. Da escola, levamos uma turma do 5º ano², professores e a querida diretora Daniele Oziene. A rotina de 40h semanais de trabalho somadas às burocracias e às muitas responsabilidades da função de diretor escolar numa escola no Município do Rio de Janeiro tornam momentos como esse muito especiais; Dani estava conosco. Esperavam-nos na Urca, na subida do teleférico, 6 voluntários da Comunidade Selvagem³, Rafael Cruz e Dona Iracema, com sua família Kaingang.
A quantidade de adultos é pensada para que, durante os deslocamentos a pé, as crianças não andem enfileiradas. É também para que os professores estejam deslocados da função de regente. Em grupos bem pequenos, sem uma voz que, o tempo todo, diz o que o grupo precisa observar, crianças e adultos podem prestar atenção em tudo, num único ponto ou em nada. Não entendo a necessidade ocidental de preencher todas as lacunas o tempo inteiro. Deixar que os olhos encontrem caminho; que os ouvidos encontrem caminho; que a pele encontre caminho é permitir que as memórias adormecidas pelas rotinas e pelo engessamento do processo escolar despertem. A educação ocidental anestesia. A vida, entretanto, é sinestésica. Acordar é reconectar com o que nos mantém vivos. Apesar de urbanizados, somos natureza. Nossa urbanidade é recente, artificial, acessória e imposta. Toda criança tem o direito de saber que é natureza. Quando nos entendemos como natureza, não nos sentimos sozinhos. As cidades são lotadas de gente, e, ainda assim, as pessoas se sentem sozinhas. Estar desconectado faz um indivíduo sentir solidão numa casa cheia de seres. Digo seres, porque a cidade e seus modos de ser e estar, reproduzidos na escola, criam modelos de conexão apenas entre os iguais. Num zoológico, os animais convivem apenas com seus iguais, como se na natureza fosse assim. Num condomínio, também, os iguais que compartilham aquele espaço. É assim também na maioria das escolas.
Foto: Carol Delgado
Fomos recebidos no Morro da Urca pelas águas. Uma imensa nuvem atravessava o maciço e nos escondia. Ficamos por alguns minutos dentro da nuvem. Cercados de água que umedecia peles e cabelos sem molhar. Generosamente fomos guardados nas águas dos rios de cima. A cena me lembrou uma casa de rezo cheia de fumaça.
Abraço de água doce. Por alguns minutos pensei que não conseguiríamos contemplar as águas da baía, nem o horizonte, não que isso fosse ruim. A beleza das águas de cima era tão encantadora que aquele abraço já tinha valido a viagem.
Foto: Carol Delgado
O encontro era com a avó, as crianças e as águas – as águas da baía e as águas que se movem dentro dos seres. A avó Iracema é kujá (liderança espiritual) do povo Kaingang, natural da Terra Indígena de Nonoai. Conhecedora das ervas medicinais e dos poderes da mata. É também Cacica da Retomada Gah Reh, que fica localizada no Morro Santana. Sempre há em nosso roteiro de visitação um momento para conversas. Sábia e muito atenta a tudo, Iracema entende que cada um vê com o olho que tem e compreende a partir das próprias perspectivas. Iracema trazia sobre sua cabeça seu cocar de penas, certamente as crianças da Pedreira nunca tinham visto, até aquele momento, alguém de cocar. Iracema, no entanto, partiu do lugar comum, e disse: “Eu sou Iracema, avó Kaingang”. Pronto! Uma avó, toda criança sabe o que é uma avó. Essa informação bastava para nos tornar uma família, ainda que temporária.
Foto: Carol Delgado
Rafael Cruz, ator e pesquisador das infâncias, foi quem começou a conversa. Ele gentilmente aceitou o convite do encontro e apresentou as águas da Baía de Guanabara com dados e palavras encantadas de gentileza. A mim coube provocar o grupo: quem aqui duvida que somos natureza? Das crianças, ouvi reflexões repletas de sabedoria. Enxergando a dúvida no olhar de alguns, perguntei à Cacica Iracema: algum dia a senhora duvidou que era natureza? Ela respondeu trazendo as águas pra conversar de maneira inusitada: nunca duvidei, porque sou água redonda. Paramos todos para ouvir com olhos e ouvidos. Até os visitantes do Parque do Bondinho que passavam e os funcionários do parque pararam para ouvir as águas que fluíam e confluíam da avó Iracema. Uma avó líquida e circular. Ainda me pego pensando sobre isso.
O povo Kaingang concebe dois tipos de água no mundo: Goj tej (água comprida, dos rios) e Goj ror (água redonda, as nascentes, os lagos). Essas águas são complementares, como toda a cosmologia Kaingang. Os irmãos Kame e Kainru são responsáveis pela origem do mundo, conforme os Kaingang. Foram eles quem criaram e atribuíram marcas a todas as plantas, animais e ao povo Kaingang. Tudo que existe na Terra tem uma metade criadora Kame ou Kainru. E cada metade tem poderes e energias diferentes que são opostas e complementares.
Kame – gêmeo ancestral da marca comprida – o Sol e os rios pertencem à metade Kame
Kainru – gêmeo ancestral da marca redonda – a Lua e as nascentes pertencem à metade Kainru
Foto: Carol Delgado
A conversa transitava entre conselho e cura, história e ciências, sorrisos e olhares. No colo da montanha, nossa avó ancestral, ouvimos a avó cacica falar sobre amar. Ao final de suas palavras, nos abraçamos todos com águas, em águas, sob o Sol. Os currículos pensam em relações étnico-raciais, por aqui, porém, pensamos em relações de vida. Para continuar pensando, deixo aqui transcrito parte do que ouvimos:
“A água é um sagrado, é uma vida para nós
Através dele, nós vivemos também.
Ele é o nosso sustento, ele faz parte de nós.
Ele faz parte de todo ser vivo, a água.
Jamais a gente vai sobreviver sem,
tanto a água salgada, como a água doce.
A água salgada é bom também para uma doença que dá na pele.
E a água doce, também, é muito bom para o corpo. Para qualquer ser vivo.
Quando eu falo ser vivo, também é a nossa mãe Terra, que sobrevive dela.
A árvore. Nós. Tudo isso que vive na terra.
Tudo que vive na água.
Então ela é muito sagrada.
Porque que a gente, antigamente, não sujava ela?
Eu digo, não sujava ela, a gente não bota coisa suja nela.
A minha vó e o meu vô diziam para mim:
‘Quando tu bota uma sujeira na água, tanto no olho da água, como na água doce, é a mesma coisa que tu estar botando uma sujeira no olho da tua avó, da tua mãe.’
Elas têm marca.
Tem a água que nós chamamos Goj ror, Goj ror.
Para nós, vocês devem saber, né?, que é quando a água nasce.
Esse se chama Goj ror.
A Guaíba, para nós, ele é ti ninó goj mag (o braço da água grande).
Porque que eu digo ti ninó goj mag (o braço da água grande)? Ele é doce ou é salgada?
Ti ninó … como que é o nome?
Ele é ti ninó do mar (o braço do mar)
É doce. É, ele é doce.
Então, de onde que ele vem?
São todos esses goj ror que desce nela.
Então, ele é goj tej.
E também tem o goj ror que desce nele, para complementação.
Então eles têm marca, eles complementam um ao outro. Como nós, Kaingang, tem nossas marcas Kamē e Kainhru
Se não fosse esses goj ror, nós não tinha como sobreviver.
Então são sagrado, faz nossa parte, nós faz parte dela”
Transcrição fala Gah Teh durante espetáculo de dança contemporânea Água redonda e comprida. O mesmo foi compartilhado por Iracema no encontro com as crianças.
__________
¹ kujá – pajé e líder indígena Iracema Gah Teh
² nosso desejo é levar todas 3 turmas de 5º ano da escola ao Pão de Açúcar. Até o momento, já levamos duas turmas.
³ Ana Paula Santos, Carol Delgado, Geórgia Macedo, Tania Grillo e Camille Santos
Agradecimentos:
Geórgia Macedo que tornou possível a vinda de Iracema. Geórgia é mestre em Antropologia Social pela UFRGS e bailarina. E atua com produção cultural, na parceria com artistas indígenas e como educadora de danças na cidade de Porto Alegre.
Rafael Cruz ator e pesquisador das Infâncias, membro do GITAKA, Grupo de pesquisa GITAKA: “Infâncias, Tradições Ancestrais e Cultura Ambiental”
Carol Delgado é antropóloga de formação e curiosa de natureza. Mãe, pesquisadora, escritora e fundadora do Puxadinho, um laboratório em rede de experimentações antropológicas para futuros plurais.
Família de Iracema Kaingang:
Angélica Kaingang, natural da Terra Indígena do Votouro, é graduada e mestre em serviço Serviço Social e Doutorando em Educação pela UFRGS
Nyane, 13 anos, desde a barriga acompanha sua mãe Angélica Domingos, pelas cidades e territórios indígenas, nas lutas dos povos indígenas.
27/06/2024
TAKUAPU, ECO DO SOM DO SABER – por Cris Takuá
Arte: Cris Takuá
“Nhanderu ma ombojera raka’e takua’i, ramo haema kyringue kunhã’i oiko ramo ojapo huka’i tuu pe Takuapu’i há’e yn vy ma Ajaka’i, Nhanderu oikuaa huka’i raka’e kunhangue’i pe guãrã, nhandevy oeja nhande rete oapresenta haguã, há’evy há’epy nda’evei avakue pó rupi rive ju jaxevavai haguã, nhandere reko porã’ in haguã py nhanembou. Any ramo takua’i ipiru pa’i harami havi nhanderete nhaendu jaiko axy vy.”
“O Deus gerou a takuarinha, por isso, quando nasce a bebê menina, o pai faz um Takuapu’i (taquara sonora) ou Ajaka’i (cestinha). Nhanderu gerou takuarinha, para ser o símbolo das mulheres Guarani, por isso nós, mulheres, temos que ser bem cuidadas pelos homens. Não foi em vão que Nhanderu mandou nós pra Terra. Nosso corpo é sagrado, se não for bem cuidado, a takuarinha seca. É desse modo, que nos sentimos quando ficamos feridas por fora e na alma.”
Mariza de Oliveira, aldeia Itanhaém, Biguaçu/SC
Na concentração da noite enluarada se manifestam os cantos das mulheres que, em suas rezas, se conectam com os espíritos guardiões de tudo o que habita a floresta. No compasso desse entoar de vozes e pensamentos, ecoa no chão de terra batida o Takuapu, instrumento musical feito de takuara, que faz conexões entre o Céu e a Terra e entre o visível e o invisível. Em minhas sensíveis meditações alcancei o entendimento sobre o Eco do Som do Saber. Esse significado tão profundo desse instrumento me remete à força e à coragem de seguir em busca do equilíbrio, da serenidade e saúde do corpo, da mente e do espírito.
A Takuá tem muita utilidade na vida Guarani, além de ser um ser sagrado e de muita sabedoria. Com ela, as mulheres trançam a palha para fazer balaio, e também para fazer o telhado das casas. Também se faz o pari, para pegar peixe. São muito importantes todos os usos e a convivência com a takuara na vida Guarani. O Takuapu, esse bastão musical que as mulheres tocam durante sua reza, tarova e também mborai, é feito do tronco da takuara. As mulheres também têm conhecimento do uso da geleia da takuara para amaciar o cabelo e a pele. Das takuaras também nasce o takuaraxó, uma larva que brota no centro do tronco e serve como alimento. E do Takuaruçu, uma takuara específica, toda cheia de espinhos, nasce um takuaraxó que serve como medicina para orientar e dar visões tanto para o povo Guarani como para os Maxakali. As larvas da takuara só nascem a cada 30 anos e servem como um modo de contar a idade da pessoa. Se tem 30 anos, diz que tem uma takuara, se tem 60, duas takuaras. Tem gente que chega a viver três ou até quatro takuaras.
Foto: Carlos Papá
O ciclo de vida da takuara está relacionado ao conhecimento da vida Guarani. Com 30 anos, a takuara morre, seca, depois floresce e dá essa larva. A takuara tem um sumo quando amadurece, e as larvas vão comendo esse sumo. Então a takuara seca e as sementes caem, voam por aí. Os ratinhos, os passarinhos comem as sementes, mas algumas brotam. E o broto vai se espalhando, criando touceira.
Estamos observando que está diminuindo muito as takuara na floresta, possivelmente pelo aquecimento do clima da Terra, mas também porque os mais jovens não estão mais sabendo respeitar o ciclo de vida dela ou não estão mais se importando com isso e dessa forma. Ela não está conseguindo amadurecer e se espalhar como antes. Tudo na vida tem seu ciclo e seu tempo de se transformar e renascer. Respeitar o tempo de cada coisa é saber caminhar lentamente sobre o território.
Foto: Carlos Papá
Carlos Papá conta: “desde que a takuara surgiu no mundo, já fizeram coisas que não se devia fazer com ela, por isso ela se transformou em palha. A takuara, que a gente chama Takuá, é uma das filhas de Nhanderu Papá, nosso pai celestial. Dizem que Anhã, irmão de Nhanderu, queria ter uma companheira e se interessou por uma das filhas de Nhanderu, a linda Takuá. Anhã pediu ao seu irmão que a sobrinha pudesse o acompanhar pelo mundo. Nhanderu aprovou, mas disse que ela jamais poderia entrar na água. Poderia até se molhar, mas nunca mergulhar. Anhã ficou muito feliz, e Takuá o acompanhava em todos os lugares. Teve um dia em que eles foram até uma cachoeira. Anhã mergulhou na água e ela ficou olhando. Então ele a convidou para entrar, mas ela não quis por causa da recomendação do pai. Porém, Anhã não acreditou que haveria problema e a puxou pelo braço. Ele disse que o irmão implicava com tudo que era gostoso, por isso havia proibido. Takuá pediu então que Anhã não a soltasse. Ela estava gostando muito! Mas ele acabou soltando seu braço para que ela experimentasse mergulhar no rio. Não vendo mais a moça, Anhã tentou puxá-la novamente pelo braço e tirou da água um cesto. Ele começou a gritar por ela, mas só havia o cesto, que começou a se desfazer. Depois Anhã foi até o irmão com o cesto desfeito na mão. Disse que Takuá tinha desaparecido e ficou apenas aquela palha. Nhanderu pediu a palha e trançou de novo o balaio. Fez balainho bem bonitinho de novo e encostou de lado. Disse então a Anhã que agora Takuá não iria mais com ele, pois ela não lhe servia de companheira. Anhã disse que não queria mais aquela mulher porque ela era de palha e era muito complicada. Então Nhanderu disse à Takuá que ela ensinaria as mulheres como ser bela e fazer coisas bonitas. Takuá até hoje vive num lugar de Nhanderu amba, a morada celestial. Chamam Takuá as mulheres que têm o Nhe’e, o espírito, desse lugar. Elas são muito cuidadosas e verdadeiras, Takuakypy’y, as irmãs mais novas de Takuá.”
Arte: Wera Mirim
25/06/2024
NA NATUREZA, NADA VIVE SOZINHO – por Veronica Pinheiro
Foto: Wagner Clayton
Começamos o último texto do semestre com as palavras da professora Miriam. Ela trabalha na Escola Escragnolle Dória em dois turnos, manhã e tarde, atendendo 62 crianças de 5 e seis anos de idade de segunda a sexta.
“Desde a chegada da equipe Selvagens em nossa escola, temos observado e experimentado um novo movimento dentro da escola. Tanto pelo acesso a materiais que não são tão comuns nas salas de aulas de escolas públicas, mas também por ter quem nos conduza a ter um olhar mais minucioso no que temos de mais rico ao nosso redor. Escolas em áreas conflagradas como as nossas, onde as crianças têm os ouvidos treinados para o tiro, fazê-las silenciar para ouvir os pássaros, o barulho do vento ou o que se passa dentro de si e transformar em arte, é quase mágico. Quase, a linha entre o mágico e o real é tão tênue que ora ou outra invadimos a sala de aula da colega para fotografar como uma urgência de querermos parar no tempo.
Vê-los pintar com a tinta que produziram a partir da terra encontrada no chão da escola, revelar fotos das folhas e galhos que caíram do quintal dali, observar a natureza que compõe o nosso território… Observar, criar, produzir. Uma sequência rica de significados que eu, enquanto professora, me dou o luxo e me permito também ser aluna naquele momento. Sento como meus alunos, espero meu pedaço de argila, me junto a eles com inúmeras perguntas, todos tentamos, fazemos o nosso melhor, sorrimos com o resultado, terminamos orgulhosos de nós mesmos pelo o que fomos capazes de criar. Voltamos para sala de aula certos de que todos somos talentosos, desmistificamos que todo professor sabe tudo. Voltamos para aula com um novo olhar sobre nós mesmos. Acho que todos que têm feito parte do projeto têm se sentido dessa forma. Somos levados a ter novas conclusões sobre nós mesmos, temos nos vistos como parte importante da natureza e temos percebido como ela nos impacta tanto quanto nossas ações a impactam.”
Anna Dantes, Madeleine Deschamps e eu tivemos longas conversas em dezembro de 2023 e janeiro de 2024 sobre caminhos de aprendizagens e sobre possibilidades de desdobramentos das oficinas e dos projetos realizados em 2023 com o Grupo Crianças. Falamos sobre criar vínculos com escolas e professores. Quando subitamente precisei retornar ao trabalho na Prefeitura do Rio, conversamos sobre como poderíamos ativar os estudos e pensamentos presentes nos ciclos Selvagem numa sala de aula. Em algum momento pensei em retornar ao trabalho como coordenadora pedagógica, mas aceitei o desafio de voltar como professora de sala de leitura numa escola de crianças. As crianças sempre estiveram presentes na minha vida, mas nunca estive como professora atendendo regularmente os pequenos em sala de aula.
Lembro de ficar feliz em me tornar a “professora da sala de leitura”. Lembro de rir e lembrar de minha avó lendo a borra do café na xícara, as nuvens e os olhos das crianças. Dorvelina, mãe de minha mãe, não sabia ler ou escrever em português, mas lia a vida e interpretava sonhos. Ler e interpretar, lá em casa, era coisa do cotidiano, quase nunca relacionada aos livros. “A gente olhava e lia a terra.” Tudo era texto e tudo poderia virar texto. Os livros chegaram lá em casa recentemente. Achei engraçado isso de ser a mediadora das rodas de leituras de uma escola de crianças. Agradeci em silêncio a gentileza que a vida me fez: estávamos diante da possibilidade de iniciar um percurso de Aprendizagens em diálogo com a vida.
O que é compartilhado nos diários é apenas uma parte do trabalho, pois nosso percurso é trilhado por muitos pés. Oficinas, passeios, organização de propostas e materiais só acontecem porque o Grupo Aprendizagens é formado por uma rede invisível que se expande, interligando cuidados preciosos. Chegamos ao Complexo da Pedreira sonhando despertar memórias e fortalecer as conexões das crianças com o território. Para além das problemáticas que tornam os dias difíceis, fazemos menção ao território ancestral, natural e orgânico. Lembramos às crianças e aos professores que somos natureza, natureza viva e pulsante.
Madá se preocupou com a carga horária semanal que eu teria de cumprir e como isso poderia me sobrecarregar. Juntas acreditamos e sonhamos orçamentos, passeios, oficinas e uma “festa cósmica” para o final do ano com crianças vestidas de estrelas e planetas. Encerramos o semestre felizes. Praticamos o bem viver numa terra que só é conhecida por seus males. O poeta disse que “Fundamental é mesmo o amor/É impossível ser feliz sozinho”. Apesar de todo desafio, tudo foi mais feliz e potente do que imaginávamos. A escola nos respondeu muito mais rápido do que esperávamos. Está sendo fundamental seguir em amor e juntos. Ubuntu, sou porque somos. Tal qual as árvores da floresta que só existem porque estão intimamente ligadas, o percurso Aprendizagens está intimamente ligado a uma teia de seres regenerantes.
Juntos aos relatos que recebemos de professores e grupos de pesquisas, neste semestre, fomos convidados pela Gerência de Relações Étnico-Raciais, da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, para a IV Jornada da GERER – Caminhos e perspectivas para futuros possíveis¹. Como resposta ao convite, preparamos um Guia de Aprendizagens Selvagem, GAS, para ser compartilhado com 1544 Escolas Públicas de Ensino Fundamental na cidade do Rio de Janeiro. “Cuidado não é troca, é compartilhamento”, já dizia Nego Bispo. Não criamos nada. Quando chegamos ao Complexo da Pedreira, já existiam muitos outros compartilhantes que nos receberam. Desde o algodoeiro na entrada da escola aos pássaros que nos visitam todas as tardes, agradecemos a toda vida e a todos os seres que estiveram conosco neste semestre.
Àwúré
¹Material Complementar da Jornada de Relações Étinico-raciais. https://sites.google.com/view/gerer-sme/jornadas-da-gerer/iv-jornada-da-gerer
20/06/2024
A FORÇA DAS MONTANHAS – por Cris Takuá
Foto: Carlos Papá
Avózinha montanha
A força das pedras
Em meio à imersão da Espagiria
Muito profundos os ensinamentos
trazidos de tempos muito antigos
A cura é um delicado diálogo
Com os elementos
Com todos seres
Que nos possibilita a transformação
E tece laços de animação
Para o fortalecimento das crianças
dos Territórios
E o acordamento das memórias
Viva viva as Escolas Vivas
Viva os laboratórios vivos
Das Casas de Essências.
Foto: Ju Nabuco
Caminhando por entre montanhas e vales, chegamos em São Gonçalo do Rio das Pedras em Minas Gerais, terra sagrada de muitas pedras e histórias. Lá, nesse lugar encantado, encontramos uma escola de verdade, uma Escola de Espagiria, coordenada por dois professores muito sensíveis e atentos aos mistérios profundos da natureza.
Durante três dias acompanhei os coordenadores das Escolas Vivas Guarani e Tukano-Desana-Tuyuka, e três jovens que foram junto. Falamos de História, Filosofia, Alquimia e Espagiria (a arte de produzir remédios, separar e unir, extrair e purificar através da sensível arte de conhecer a matéria dos seres).
Dialogamos sobre conhecimentos profundos e, através da troca entre o grupo reunido, sentimos que o conhecimento, quando entra dentro da gente, ele fixa e não sai mais. A partir das disposição em escutar com atenção nos permitimos sentir e perceber o que nos rodeia. Tudo o que desce do céu e sobe da Terra transmuta e nos orienta nessa caminhada de estudos e aprofundamentos na busca do Bem Viver.
Fotos: Ju Nabuco
O sonho das Escolas Vivas é ativar, animar e criar teias de afetos e cuidados, onde possamos caminhar cuidando de quem cuida e incentivar a semeadura dos saberes. Quando plantamos um jardim dentro nós a gente assume a responsabilidade de ser um agente multiplicador e capaz de ultrapassar a barreira do visível e a enxergar e dialogar com os seres invisíveis.
Um grande amante das plantas foi Paracelso, filósofo e médico do século XVI. Ele dizia que os humanos começam a adoecer quando se afastam de Deus, a natureza. Ele dizia que:
“Quem nada conhece, nada ama.
Quem nada pode fazer, nada compreende. Quem nada compreende, nada vale. Mas quem compreende também ama, observa, vê…
Quanto mais conhecimento houver inerente numa coisa,
Tanto maior o amor…
Aquele que imagina que todos os frutos amadurecem ao mesmo tempo, como as cerejas, nada sabe a respeito das uvas.”
Assim passamos três dias dialogando, colhendo plantas e preparando remedinhos e, nesses momentos tão sensíveis, aprendemos que a força do céu que está na planta desperta a força que habita em nós. Mas nos processos criativos de transformação da matéria precisamos de atenção e concentração. Pois a dispersão pela fala demasiada e a desatenção provocam o desperdício do tempo.
Foto: Ju Nabuco
Dessa forma pude sentir e compreender a profunda relação com os elementos fogo, terra, água e ar e com os seres elementais: vegetais, animais, minerais e universais. Numa profunda conexão de tempos ancestrais onde filosofias Guarani, Tukano, Maxakali e lá do Egito se cruzaram e dialogaram numa profundeza encantadora.
Os jovens se inspiraram, cantaram, choraram e poetizaram suas percepções e inspirações de seguir caminhando, fortalecendo as Escolas Vivas e o sonho de alcançar a boa e bela forma de ser e estar em seus territórios.
Foto: Ju Nabuco
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Esse encontro foi possível através da articulação de Ju Nabuco com Mestre Índio e Ana, professores da Escola de Espagiria, e das Escolas Vivas junto ao Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida.
18/06/2024
ONDE ESTÁ A MATA? ESTÁ DENTRO DO PEITO – por Veronica Pinheiro
A sala de leitura da escola se assemelha a uma biblioteca em organização e funcionalidade. Livros em prateleiras, divididos por assunto; mesas grandes e cadeiras. Um espaço planejado e que leva em conta a área de armazenamento, a área de atividade, a área de circulação. Algumas regrinhas gerais são comuns em ambientes de leitura: entrar somente com o material necessário para o estudo; entrar de forma “disciplinada”; manter a voz e os gestos em tom discreto para não atrapalhar os demais leitores.
As primeiras histórias que conheci não estavam em livros guardados em prateleiras. As primeiras narrativas e lições que aprendi saiam da boca de Dona Cassiana, uma anciã, que ficava no final da tarde sentada num banco de madeira, sob o pé de aroeira, lá no morro onde nasci. Para saber o final de uma história, às vezes, tínhamos que esperar o dia seguinte ou ir atrás de Dona Cassiana enquanto ela cuidava das plantas. Ela rezava as crianças e dava colo enquanto rezava. Era uma reza-história, cantada e coreografada com folhas. Lembro de um dia ter procurado por ela e não a ter encontrado. Nunca mais a vi. Pouco depois do sumiço de Dona Cassiana, sumiu o banco e o pé de aroeira. Mas as palavras contadas, cantadas e rezadas me acompanham até hoje.
Hoje, sou a velha que conta quadras para meninos. Essa semana, cheguei à sala de leitura e retirei todas as cadeiras. Retirei também as mesas e apaguei as luzes. E acendi minha fogueira no meio da sala. No chão, colchonetes, 15 exemplares de um mesmo livro e eu sentada tal como a velha Cassiana ficava esperando por mim.
Aprendi com Carlos Papá que o escuro acolhe todos, não fazendo distinção de pessoas. E foi no escuro da sala que nos encontramos com as narrativas de avós e compartilhamos cuidados e gentilezas. “O que é isso?” “Um acampamento, você não está vendo” Eu acompanhei a entrada deles somente com olhos e ouvidos, nada falei. “É um acampamento sim. Olha a fogueira.” “Vamos sentar porque está de noite e frio.” Era 8h da manhã e fazia 31ºC do lado de fora da sala, dentro da sala tempo e lugar deslocavam-se sem convenções.
Eles sentaram em roda. A primeira turma que recebi neste dia tinha 28 crianças presentes, a maioria com 8 anos de idade, e estavam curiosas para saber o que iria acontecer. Na primeira ação, eles formariam duplas de leitores. Pedi para que um aluno que já soubesse ler se unisse a um colega que ainda não soubesse ler. Feitas as duplas, eles precisariam escolher um cantinho na sala de leitura para ler a história. Cada dupla se aninhou e se escondeu da forma que pode e desejou. Montaram cabaninhas e criaram tocas para ler. Disse a eles que a aprendizagem é um processo em que todos colaboram da forma que podem. Eles assumiram o cuidado com seus amigos de turma. Fiquei observando como lentamente quem ouvia ia escorregando pelo colchonete até deitar para ouvir atentamente as palavras lidas pelo amigo. E sem ter intencionado, naquele momento estabelecemos uma outra relação com aquele chão. Todas as vezes em que deitamos no chão da sala de leitura tinha sido para nos proteger do tiroteio. Pela primeira vez, não era o medo que nos levava ao chão. Era a terra nos ensinado a fortalecer vínculos. A professora da turma entra pensando que a sala estava vazia e se surpreende com a cena e os gestos. Sensivelmente, ela se retira sem ser percebida.
Nossa segunda ação era sentar ao redor da fogueira novamente. Agora a história seria lida por mim, e acompanhada por todos, cada um com um exemplar do livro nas mãos. Era uma solenidade, as chamas da fogueira de led aqueciam nossa roda. Comecei assim:
“Sônia Rosa, a autora do livro, dedica este livro aos seus dois sobrinhos-netos: Phelipe de Oliveira Nunes e Vitória Oliveira Silva. Eu, Veronica, dedico esta leitura aos meus alunos presentes sentados ao redor da fogueira comigo.”
Os tesouros de Monifa é a história de uma menina que, no dia de seu aniversário, foi escolhida para ficar com o “tesouro” de sua família. Monifa era o nome da bisavó da avó da menina. Monifa chega ao Brasil num navio negreiro e escreve muitos diários cheios de sonhos, rezas e canções. Minha voz tentou acompanhar a solenidade do momento, mas meus olhos decidiram por si só regar a terra. Não só os meus, mas muitos olhos regaram a terra naquele dia. À medida que líamos, mais perto ficávamos um dos outros. A roda logo se tornou um ninho. Uma mão pequena e macia colhia as lágrimas que me saiam dos olhos para não molhar o livro. Outras mãos me amparam os ombros e as costas. Mais um par de mãos percorriam minhas tranças.
Não me lembro de já ter chorado na frente de uma turma. No começo do ano eu era “a tia que dava colo” para as crianças que choravam na semana de adaptação. No meio do acampamento de leitura, eu era cuidada pelas crianças que entenderam que, no processo de aprendizagens, cada um coopera como pode. Passei então a receber cuidados. Eu li a história, e eles liam os bilhetes de Monifa.
Ao redor da fogueira, sentados no chão nos abraçamos no fim da leitura.
Alguém falou que no nosso acampamento só faltou uma coisa: “marshmallow”. Outro acrescentou que faltaram duas coisas: “marshmallow” e a mata. Antes que eu conseguisse formular resposta, Enzo, que parece nunca estar ouvindo o que falamos, disse: “Faltou só ‘marshmallow’ mesmo, a mata tá dentro da cabeça.”
Monifa significa “eu tenho sorte”. Cheia de mata dentro, ali eu era a pessoa mais sortuda do mundo.
Fotos: Wagner Clayton
13/06/2024
PALAVRAS SOPRADAS – por Cris Takuá
Arte de Juliana Russo
Boas e belas palavras
Massageiam a alma atenta.
Pensamentos invadem de magia meu ser
Em busca de entendimento
Dos mistérios das ciências da floresta.
As palavras como um sopro
Saem ecoando nossos pensamentos,
Voam e bailam no ar
Em busca dos conhecimentos,
Mas nem sempre se fazem
Claras e entendíveis
Aos seres que as recebem,
Podendo causar arrepio ou
Profunda emoção.
Como é difícil a suave comunicação
Em um mundo mergulhado em informação!
As palavras curam,
Alegram
E também machucam
Se mal colocadas!
Precisamos cuidar de nossas palavras
Para que os sentimentos
Não perturbem nossos sonhos
E nosso caminhar.
Prossigo minha pesquisa
Ora sonhando
Ora acordada
Mirando seres sagrados
E buscando sabedoria e tranquilidade
Para seguir poetizando meu silêncio
Múltiplo e profuso.
A certeza a cada novo amanhecer
De mais harmonia
De mais alegria
Entre os seres
Entre o visível e o invisível
Entre o indivisível que habita
Na terra e no mar.
É preciso calar,
É preciso amar,
É preciso sentir mais,
É preciso ser a gente mesmo
A cada instante,
A cada suspiro de nosso viver.
Vai caminhante antes do dia nascer,
Vai caminhante antes dos sonhos
A noite tecer…
Arte de Fabiano Kuaray
Para os humanos, a palavra, esse código ancestral comunica pensamentos e constrói pontes entre os mundos. Há muitos e muitos séculos, cantamos, rezamos, pronunciamos e sopramos mensagens de transformação.
Saber se colocar, entrar e sair de todos os lugares é uma ética para se dispor a conviver com a diversidade de seres que pensam e anseiam alcançar a sensível sabedoria de sentir sua própria sombra.
Disputas ideológicas muitas vezes causam atritos e podem afastar a energia que construímos e nomeamos como amizade, respeito e troca de conhecimento.
Refazer ou reconstruir a teia das relações nos exige uma capacidade de compreender a imperfeição que habita em nossa humanidade, tão machucada pelas contradições do dia a dia.
Quando compreendermos que o amor é uma partícula invisível que une e nos faz enxergar a nós mesmos, entenderemos que nada, ninguém e nenhuma palavra mal soprada poderá acabar com uma amizade verdadeira.
11/06/2024
EU NÃO SABIA QUE ERA TÃO BONITO – por Veronica Pinheiro
“A GENTE PRECISA APRENDER A SE ENVOLVER COM A TERRA, COM OS NOSSOS RIOS, FLORESTAS E MONTANHAS.
Envolver não significa essa bobagem de interesse privado de ser dono daquele rio.”
Ailton Krenak¹
Choveu tanto na tarde e na noite do dia 04 de junho na cidade do Rio de Janeiro que perdi a conta das pessoas que mandaram mensagem perguntando se a visita ao Pão de Açúcar, dia 05 de junho, seria cancelada. Chegamos à segunda imersão do Percurso Aprendizagens: o encontro das crianças com as águas da Baía de Guanabara. Quando confirmado o encontro, não havia previsão de chuvas para o dia do passeio. A previsão mudou, mas optei por confiar nas águas e no Sol. O encontro não foi desmarcado. Saí de casa com muita chuva. Chegamos à escola para encontrar as crianças debaixo de chuva. No entanto, optei por confiar nas águas e no Sol.
Tania e Ericka, companheiras de sonhos e Sol, foram direto para o local de visita. “Veronica, aqui não chove. Muitas nuvens.” “Diga ao Sol que contamos com ele. Diga a ele que as crianças já já sairão da escola”. Café da manhã servido na escola, era hora de embarcar no ônibus rosa e reencontrar nosso gentil motorista.
Um acordo não palavrado ficou firmado na Favela da Pedreira: Se o ônibus rosa está presente, as crianças vão passear; logo é preciso que elas saiam e retornem à favela com tranquilidade. Os caminhos que levam à escola são desobstruídos para que nosso ônibus passe, somos observados do embarque até a saída do complexo. As crianças não percebem que a comunidade de alguma forma também muda sua rotina para que elas vivam dias de alegrias. Me comoveu ver que a comunidade e o poder paralelo se preocupa com o bem-estar das crianças e professores.
Saímos da escola. Não chovia mais. “Vamos subir e ver nuvens; com o tempo nublado não dará pra ver nada.” Ouvi, não respondi, pois confiava nas águas e no Sol. A caminho do Pão de Açúcar, passamos pelo Rio Acari. Nosso rio querido, que corta toda região da escola. Um rio largo que nos ouve. Um rio testemunha da vida e do terror imposto à região. Um rio que ainda guarda seus encantos, jacarés e capivaras. O Rio Acari é um dos maiores cursos de água do Rio de Janeiro, ele é o motivo do nosso passeio². Acari é tão forte que macrobiologicamente resistiu até pouco tempo. Nos despedimos do rio e seguimos viagem. Percorremos 40 km até o Pão de Açúcar. Subimos o Morro da Urca e o Morro do Pão de Açúcar para observar de cima as águas da Baía de Guanabara.
Durante a vivência, as águas e o Sol nos receberam como quem recebe parentes queridos. Não chovia, as nuvens se recolheram num outro lugar para que pudéssemos contemplar tudo quanto se era possível ver das alturas. O Sol nos guardou na subida e descida dos morros, seu brilho refletido nas águas encantou todo grupo. Foi a primeira vez que não vi medo nos olhos das crianças. As crianças se abraçavam e andavam de mão dadas. Sorriam sorrisos largos e duradouros. Tinha hora que eu jurava que via os sorrisos delas refletidos no mar. Algumas choraram. Duas choraram muito e não sabiam dizer exatamente o porquê. Ao contrário dos sorrisos, os choros eram curtos e breves. Tenho certeza de que era só o mar que mora dentro do peito e que não quis se conter.
Éramos 10 adultos no passeio, e lá entendi que não haveria mediação. Cada adulto tinha 4 crianças para acompanhar. Andávamos bem próximos, era dia de festa. Eu pouco falei, a natureza não carece de mediador. As águas, o Sol, as Plantas, os Pássaros, os Micos, o Vento falavam tanto, tanto, que me assustei com tamanha receptividade. Tudo chamava muita atenção das crianças, os aviões que pousavam bem na nossa frente, os turistas falando inglês, as plaquinhas que um amigo lia para o outro que não sabia ler. “Tá escrito que a baleia vai passar aqui até setembro” “Jura! É hoje? Lê direito e veja se tem dia.” A baleia não passou no dia 05 de junho.
Muita coisa foi curada em nós naquele dia. Há quem tenha horror em ouvir que a educação pode curar. Aprendi com os mais velhos quilombolas e indígenas que tudo pode ser cura: cantos, palavras, comidas, abraços, conselhos. Quando estávamos nos encaminhando para descer, um helicóptero pousou no heliponto do Pão de Açúcar.
“Tia, o que o helicóptero quer?”
“Ele não quer nada, meu filho.”
“Tia é tiro?”
“Não. São pessoas passeando, elas entram no helicóptero para passear e ver toda cidade de cima.”
O menino de 11 anos só conhecia o helicóptero no contexto da guerra urbana. A polícia no Rio de Janeiro tem uma frota de helicópteros. As aeronaves blindadas são utilizadas em operações policiais, e os meninos sabem que quando tem helicóptero é que a situação está pior que o habitual. O helicóptero da reportagem eles também conheciam. Mas helicóptero de passeio? De passeio, não. Isso porque a cidade separa. A cidade tem muros rígidos para excluir muitos e guardar alguns. O capitalismo determina os significados que os signos terão dentro de uma mesma cidade: para meu aluno, helicóptero significa perigo; para turistas, diversão.
“Mas a minha observação sobre as cidades é que elas funcionam como um verdadeiro sumidouro de energia.” Ailton Krenak
“Tia, então a gente tá na Europa?”
A pergunta me doeu o peito, não pelo desconhecimento geográfico. Mas por esse menino entender que não faz parte daquele Rio de Janeiro. Porém era dia de festas e encontros de vida. Mais uma vez a vida presente na natureza, a mesma vida natureza que sustenta o menino, nos abraçou novamente. Suspensos no ar, dentro do teleférico éramos só gente, ar, montanha, água, pássaros, Sol e água. O mesmo menino chorou abraçado à diretora da escola. Ele me disse que não vai esquecer de cuidar da natureza.“Tia, eu não sabia que era tão bonito.” “Você é natureza, igualzinho a essas montanhas e as águas da baía.”
Esse passeio inaugurou um outro movimento de conversas sobre a vida das pessoas e sobre a vida dos rios na escola.
Ahh, quando descemos do bondinho, as nuvens recobriram os céus naquele lugar. Pedi a chuva para esperar a gente voltar pra casa. Ela nos ouviu.
Quando foi transferido o sentido da vida para ter coisas, a gente já começou a se afastar da Mãe Terra. Essa mãe maravilhosa que chama a atenção da gente, inclusive para falar: “Ei, vocês estão vivos”. Quando uma mãe dá uma bronca dentro de casa, ela não está só dando uma bronca para a gente não estragar a casa, ela está dando uma bronca para dizer: “Vocês estão vivos”. Pra gente não se alienar do sentido de estar vivo. (Ailton Krenak)
Fotos: Ericka Hoch
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¹ “Trocamos nossa humanidade por coisas.” https://revistatrip.uol.com.br/trip-fm/ailton-krenak-trocamos-nossa-humanidade-por-coisas
² “Cadê o rio que estava aqui?” https://selvagemciclo.com.br/diario-de-aprendizagens/#tab-1717677150043-1
06/06/2024
ANDAR COM CONSCIÊNCIA – por Cris Takuá
Arte: Fabiano Kuaray
Ero Tori (Façam surgir a consciência)
Ero Tori Tori
Ero Ta kua (Façam alcançar o som do conhecimento )
Ero Ta kua ta kua….
Quando sentimos os ensinamentos transmitidos pelos mestres e mestras do saber, percebemos que somos direcionados a aprender a nos colocar no mundo, na relação com tudo e com todos que nos rodeiam. Todos os seres possuem uma profunda interação com a grande teia da vida, desde que desabrocham nesse mundo. Nós, humanos, somos seres imperfeitos, mas capazes de uma transformação possível para alcançar o Arandu, a sensível sabedoria de sentir a nossa própria sombra. Mas, para isso, temos que estar dispostos a andar com consciência, andar sentindo o som do conhecimento, que nos possibilita enxergar para além das aparências.
As crianças são seres sensíveis, observam cada sentido das coisas. Tenho observado em muitos momentos as crianças questionando os adultos por suas atitudes contraditórias. Alcançar e andar com consciência compreende superar a contradição nas ações diárias. Sinto e vejo abelhas, formigas, cachorros, galinhas e tartarugas com sensibilidades e ações conscientes muito mais equilibradas do que a de muitos humanos.
O grande mistério da vida está em atravessar o portal do que os nossos olhos nos possibilitam ver e mergulhar no infinito mundo das redes de conexões dos saberes e fazeres que são os códigos de acesso ao entendimento. Durante os muitos anos em que dei aula numa escola, insistentemente eu sempre cutucava meus alunos para sentirem e estarem atentos à consciência ao caminhar, ao falar e ao se manifestar no mundo. Nem sempre eu era compreendida por eles ou por algumas lideranças, que sempre achavam que eu estava querendo falar de política. Uai? Política?
O que será a política do nosso próprio terreiro senão a de respeitar todas as formas de vida? As montanhas, os rios, as formigas e as cotias. Semear a micropolítica é algo muito encantado, porém desafiador. São séculos de deterioração do Teko Porã, a boa e bela maneira de Ser e Estar num território. Andar com consciência compreende se permitir a praticar essa delicada e sofisticada tecnologia ancestral, o Bem Viver.
Foto: Anna Dantes
Desde que saí/fui tirada da sala de aula formal, curiosamente, por todos os lugares em que tenho caminhado, me encontro com crianças, em oficinas, rodas de conversa e vivências. E escutando e percebendo o modo como elas concebem a relação das coisas, me surpreendo com a capacidade que as crianças têm de andar com consciência, de sentir o som de tudo que as rodeia.
Criança deveria ser liderança nesse mundo de tantos humanos desmemorizados e sem consciência!
Séculos se passaram e a nossa humanidade escravizou plantas, peixes e montanhas em nome de uma razão delirante, que passou a julgar e comprar/descartar tudo que não corresponde ao padrão estabelecido. Preocupados com o desenvolvimento, a ordem e o progresso, adultos humanos criam leis e fazem guerras.
Enquanto isso, crianças em todo o mundo estão a observar esse descompasso e a se posicionar perante a ética que permeia nossos envolvimentos com a vida e não o desenvolvimento dos seres viventes.
Qual a ética que envolve suas relações no dia a dia?
Para andar com consciência e alcançar o som do entendimento das coisas devemos silenciar e escutar mais as crianças.
Foto: Vhera Poty
04/06/2024
ESSA SEMANA NÃO RECEBI BILHETES – por Veronica Pinheiro
A escola está fechada. Hoje não tem foto. Essa semana não vi as crianças. A escola está fechada. O acesso está mais difícil que o comum. “Usem crachá”. “Esperem antes de sair de casa”. Não saia de casa!
Alternamos entre semanas de encantamentos, euforia, alegrias e medo. Perigo difuso. Perigo concreto. Esta semana não recebi bilhetinhos, nem abraços de braços curtos.
Essa semana me lembrou meus primeiros dias na escola. Na ocasião, a sala de leitura ainda não podia ser usada. Em uma caixa colorida, eu colocava os livros que leria com as turmas em sala de aula. Levava na caixa livros para todas as crianças. Onde eu estivesse com aquela caixa, lá estava a sala de leitura. Era um exercício, meu e das crianças, de transformar o lugar. A mágica sempre estará no encontro. Formada a roda de leitura, a gente podia estar e ser o que bem quisesse.
No primeiro mês de aula, lemos juntos Manu e Mila, de André Alves. Numa turma do 3º ano do Ensino Fundamental, distribuí os livros para crianças de 7 e 8 anos de idade. Alfabetizadas em português, ou não, todas recebem um exemplar do livro. Se tem uma coisa que criança que não lê faz com facilidade é imaginar. Enquanto não somos obrigados a enquadrar o que pensamos, sonhamos e sentimos sem regras gramaticais, confiamos no repertório interno com muita força. O repertório interno é todo um mundo que a criança traz de casa – as brincadeiras, as crenças, os saberes, os sabores. A escola regular, em muitos momentos, ignora a vida vivida pelas crianças e trabalha para que elas façam o que a Base Comum Curricular espera delas.
Quando entrego livros nas mãos das crianças, digo que, mesmo que elas não entendam as palavras, podem ler cores, desenhos, símbolos e traços. Elas podem também fingir que estão lendo. Podem inclusive fechar os olhos e dormir enquanto eu leio. Antes que alguém julgue absurda a permissão que dou às crianças, trago uma informação: alguns alunos moram em locais onde acontecem bailes e festas que começam às 21h de um dia e terminam às 8h da manhã do outro dia.
Antes de iniciar a leitura digo tudo o que pode. Num ambiente que se especializou em dizer o que não pode, poder é subversão. Lemos em voz alta e com brilho nos olhos Mila e Manu, a história de dois amigos que procuravam a “ALEGRIA”. Foi uma leitura delicada que plantou pensamentos bonitos nas crianças e em mim. Durante a leitura, recebi dos gestores da unidade uma notificação de perigo e que as crianças não poderiam sair das salas. Corredores e banheiros são nossos lugares mais vulneráveis. Lembro de terminarmos a história deitados no chão da sala porque o tiroteio estava muito perto. Lembro de compartilhar um cuidado que eu não sabia que era capaz de compartilhar. Lembro de desejar de todo coração nunca mais ver as crianças deitadas no chão para se proteger de tiros.
Lembro também de passar 2h em absoluto silêncio ao chegar em casa; era um silêncio da boca pra fora porque dentro existia uma barulheira de causar medo. Fazia tempo que eu não sentia medo. Medo por mim, que saí da zona de perigo. Medo pelas crianças que dormiriam lá.
Quatro meses depois desse episódio, recebemos orientações para ficarmos em casa. Apenas um dia na semana a escola abriu, mas as crianças não apareceram. Eu estava lá com tintas, livros e uma fogueira artificial. Comprei uma fogueirinha de LED que simula chamas reais. Uma tentativa de aquecer os corações gelados de medo. Mas as crianças não estavam lá. Sentada à beira da fogueira de faz de conta, ouvi a voz de uma professora que pouco fala comigo. Ela entendeu o convite, conversamos a manhã inteira, ela me contou de suas turmas e trajetória em escolas. Descobrimos, por conta da fogueira, que temos muitos sonhos em comum. De alguma forma, nos aquecemos uma à outra… Saí da favela cantando um samba antigo de seu Nelson Cavaquinho. O mesmo samba que eu cantava quando eu era jovem e voltava tarde da universidade. Eu cantava para espantar o medo de subir sozinha o morro onde eu morava. Cantava para aquecer o coração e espantar o medo, assim meu avô ensinou. No último dia de escola aberta, cantei para sair da escola.
“Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha estação primeira
Não sei quantas vezes
Subi o morro cantando
Sempre o Sol me queimando
E assim vou me acabando
Quando o tempo avisar
Que eu não posso mais cantar
Sei que vou sentir saudade
Ao lado do meu violão
E da minha mocidade”
Enquanto escrevo, recebi a mensagem que podemos retornar. Que sejam bons os dias que virão.
Awrê
30/05/2024
AVÓZINHA DO MUNDO: ARAUCÁRIA – por Cris Takuá
Hoje sonhei com a avózinha das florestas
A grandiosa mestra
Conhecedora dos sábios segredos
Da ciência das ciências dos mistérios.
Em poucas palavras ela foi me tecendo
Pensamentos, me revelando caminhos
Me orientando e mostrando a
Incrível delicadeza que habita
Na simplicidade das coisas.
Meu espírito voou e percorreu
Vales e montanhas
Bailou, rodopiou e sentiu
A profunda liberdade que reside
Na morada sagrada dos espíritos secretos.
Não há saber maior que o Amor!
A cada dia nos surpreendemos
Com as revelações que surgem
No novo amanhecer
Na noite fria mergulhei em busca de entendimento
E pra minha surpresa,
A grande mestra lá estava
Em seu trono sagrado sentada
A me esperar
Nas longas caudas de uma Araucária
Com sua flauta e seu Maracá
Só me aguardando pra junto a ela
Prosseguir com a cantiga
E soprar poesias para os quatro cantos
A fim de colorir e massagear
Os seres dessa Terra!
Cansados e sofridos
Pela falta de entendimento.
Oh seres caminhantes, despertai-vos
Desse sono profundo
E sentis a saborosa magia
Que mora no silêncio cantante
Dos pensamentos seus!!!!
Foto: Carlos Papa Tekoa Yvyty Porã, RS
Há milhares e milhares de tempos surgiu esse ser sagrado Kuri, como chamam os Guarani a araucária. Essa árvore tão antiga é uma avózinha vegetal do mundo. Registros arqueológicos mostram sua existência e resistência há muitos séculos. Nesses tempos todos, as araucárias já presenciaram muita luta, resistência e também muita beleza; uma memória ativa que, lá do alto de suas verdes copas, presenciam.
Nas últimas semanas estamos presenciando no Rio Grande do Sul um profundo desequilíbrio atingindo a vida de seres humanos e não humanos. O transbordamento do Rio Guaíba, do Rio Taquari e de tantos rios que, machucados pelas duras ações humanas, não aguentaram a pressão da chuva grande e inundaram, destruíram e deixaram seu recado.
Os Ija kuery, guardiões de tudo que habita nessa Terra, estão cansados dos seres humanos, imperfeitos e desajustados. Há muito tempo estão a observar as pegadas tão pesadas do agronegócio, da mineração, do desamor e do desrespeito para com a diversidade das formas de vida.
Gravura a bico de pena por Percy Lau, Arequipa, 1903
Rio de Janeiro, 1972. Fonte: Tipos e Aspectos do Brasil IBGE 1966
O marco temporal, essa tese anticonstitucional, que permite a revisão e o abuso das terras indígenas já demarcadas, é o ápice da ignorância e do abuso humano, que não consegue enxergar que sem floresta viva não haverá vida possível. A luta e o rezo constantes para garantir e proteger os territórios ancestrais dos povos indígenas são justamente para que todas as formas de vida possam viver: araucárias, cotias, pacas, abelhas, ametistas, montanhas, rios e peixes.
Há duas noites, concentrada na Opy’i, casa de reza, em diálogo e estudo com plantas professoras, o espírito da Kuri veio falar comigo. Ela era bem velha e grande. Me disse calmamente que está lá do alto assistindo a toda a confusão e sofrimento que está acontecendo. Viu muitos parentes vegetais, animais morrendo afogados, arrastados pela lama, pela água brava e nada pôde fazer. Ela somente assistiu, silenciosamente, com seus bracinhos como se estivessem em forma de saudação, que reverencia todos os dias o sol, a lua e a vida, pedindo força e proteção. Ela ficou um tempo me mostrando as grandes florestas que já existiram de araucárias e que hoje estão reduzidas a algumas. Me mostrou também a força do petyngua, cachimbo Guarani feito do nó do pinho dela, e o quanto cada um que o carrega consigo deve respeitá-lo. Me recordou imagens muito belas de mulheres, preparando farinha de pinhão com seus pilões, cenas antigas onde tudo era profundamente interligado. Aos poucos as imagens e a voz dela foram desaparecendo e fui aos poucos voltando e, ao olhar para o fogo, que estava intensamente vivo, senti de me levantar e compartilhar com os jovens que comigo estavam aquela experiência mágica e muito proveitosa que havia sentido, presenciado e aprendido mergulhada em profundas mirações.
Pintura: Jose Vera, RS
Ao amanhecer do dia refletindo sobre toda a noite de estudos e aprendizados, me recordei de passagens do livro a “Queda do Céu” de Davi Kopenawa….
“No começo a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá eram tão poucos quanto nós agora na floresta. Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. Seus antepassados mais sábios, a quem Omama criou e a quem deu suas palavras, morreram. Depois disso, seus filhos e netos tiveram muitos filhos. Começaram a rejeitar os dizeres de seus antigos como se fossem mentiras e foram aos poucos se esquecendo deles. Derrubaram toda a floresta de sua terra para fazer roças cada vez maiores. Omama tinha ensinado a seus pais o uso de algumas ferramentas metálicas. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido embaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grande quantidade. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso os fez esquecer a beleza da floresta. Pensaram: “Nossas mãos são mesmo habilidosas para fazer coisas! Só nós somos tão engenhosos! Somos mesmo o povo da mercadoria! Podemos ficar cada vez mais numerosos sem nunca passar necessidade! Vamos criar também peles de papel para trocar!”. Então fizeram o papel do dinheiro proliferar por toda parte, assim como as panelas e as caixas de metal, os facões e os machados, facas e tesouras, motores e rádios, espingardas, roupas e telhas de metal. Eles também capturaram a luz dos raios que caem sobre a terra. Ficaram muito satisfeitos consigo mesmos. Visitando uns aos outros em suas cidades, todos os brancos acabaram por imitar o mesmo jeito. E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se espalharam por toda a terra dos seus ancestrais. É o meu pensamento. Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite.”
(Davi Kopenawa, “Paixão pela mercadoria”, em A Queda do Céu)
Pintura rupestre de Araucária, Pirai do Sul, PR
28/05/2024
LER A TERRA – por Veronica Pinheiro
Me lembro da conversa que tivemos com o barro no encontro Cosmovisões da floresta, no dia 13 de maio de 2023, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio). O encontro entrelaçou os projetos Ore ypy rã – Tempo de Origem e o Selvagem em um dia de exposição e atividades com cantos, danças, conversas. Diante de um vaso de cerâmica marajoara, Francy Baniwa começou a falar sobre como as mulheres Baniwa conversam com a argila, que é um ser muito antigo e sagrado. De onde eu venho, o barro também é sagrado. Lembro do barro vermelho que cobria toda a comunidade e de como tocávamos com a mão no chão e no coração antes de dançar ou jogar capoeira. Lá em casa, o barro era nossa avó; berço originário e colo derradeiro. O barro só era colhido mediante as necessidades. Levei isso para as oficinas com argila.
Andando pelo bairro de Costa Barros, onde a escola está localizada, entre barrancos e barracos, a quebrada do terreno ocasionada pela chuva, deslizamento ou pela ação do homem revela as cores guardadas na terra. Texturas e tonalidades de marrom e matizes avermelhadas colorem e revelam propriedades físicas, químicas e mineralógicas do solo. Durante o planejamento das oficinas de plantio das espécies frutíferas da Nhe’ëry com Gerrie Schrik, me foi feita a seguinte pergunta: Como é o solo da escola? Não tendo as respostas técnicas, pude falar com detalhes sobre o que vi. E via as cores da terra nas escavações e barrancos. Olhar pra terra é uma prática que tento passar para as crianças.
“Ninguém fazia análises de solo, conhecíamos o solo só pelo olhar. Só de olhar para a terra já sabíamos o que plantar. Conhecíamos a vegetação. Numa terra que dá muita leguminosa nativa, plantava-se feijão; numa terra que dá muita gramínea nativa, plantava-se milho e arroz. É a linguagem cósmica. É simples. Não é preciso fazer análises de solo porque a terra já diz o que está disposta a oferecer.” Nego Bispo
A terra diz. Passamos na escola uma semana olhando a terra. As crianças e eu. Faixas de terra ao redor da escola que não foram cobertas pelo cimento foram os textos da semana. Em sala, eu e as crianças lemos e conversamos sobre a “Carta da Terra”. Curioso, as crianças nem sabem mais o que é uma carta. Elas escrevem recadinhos em papéis pra mim, mas chamam o bilhete de mensagem. Expliquei o que era uma carta, para que servia e como era composta. “A Terra pode escrever uma carta?”, “Não! ela não tem braços nem mão. Ela deve ter ditado e alguém escreveu: tipo Deus com Moisés”.
Depois de muita conversa, saímos quintal afora. Parecia uma expedição: cadernos, canetas, um galho para apoiar na subida. O livro estava fora da sala de leitura. Lemos o livro mais antigo de todos: lemos a terra. Por um tempo, só observamos as cores do solo; por outros, só os pequenos insetos e animaizinhos que viviam ali sem que ninguém notasse. “Tia, mora muita gente aqui!”, “Eu sei, você acha que a escola só tinha móveis e livros? A escola é habitada por seres vivos mesmo quando nós não estamos nela”. Formigas, lagartos, aranhas, plantas, muitos pássaros. As crianças do 1º ano se espantaram. Elas não sabiam que tantos pássaros diferentes visitavam aquele quintal no final da tarde. Ficamos sentados em silêncio no meio da quadra depois da história contada. Eu disse que eles receberiam visitas. Visitas aladas, coloridas e cantantes. Tive a sensação de serem as mesmas aves que me acordam em casa. Certamente, não são as mesmas aves, mas é bonito pensar que elas me acompanham até a Pedreira.
Tentei conversar com o senhorzinho que está sempre plantando num pedaço de terra no alto do morro. Certamente ele é a pessoa mais adequada para falarmos sobre as oficinas de plantio e de pigmentos de terra. Ele se relaciona diariamente com a terra: eu vejo quando passo às 7h da manhã pelo seu quintal. Numa região com o segundo menor índice de desenvolvimento humano, existe um homem farto de verde. Solo-planta-homem suspensos e escondidos no verde à beira do asfalto. Enquanto a insegurança alimentar diariamente circula entre a população local, o senhor, que não se desconectou da terra, cuida e é cuidado. Marcamos de visitá-lo, pretendemos chegar com uma cesta de delicadezas, e de alguma forma ser gentil com quem gentilmente pisa sobre a terra.
Pretendemos também levar para ele um quadro pintado com tintas preparadas com as terras do território e da escola. E de alguma forma estabelecer ali um diálogo tendo como partida nosso berço comum: a relação com a terra. As oficinas são movimentos iniciais, são sementes. Germinando as sementes, algumas memórias de vida são despertadas. A vida despertada está no território, nas memórias guardadas na terra e adormecidas nos corpos. Ao estabelecermos uma parceria com uma escola de ensino regular, sonhamos com a ideia de escolas vivas em ambientes urbanos e periféricos. Trazemos como proposta o fortalecimento do território, dos saberes e das práticas de vida que lá existem. Nesse movimento, tentamos identificar quem são os guardiões do bem viver; quem são os seres, que em meio a tantas dificuldades impostas, guardam práticas que sustentam cosmologias ancestrais.
Não existe um modelo único de oficina aplicável para toda e qualquer escola e território. Já compartilhamos oficinas de tintas naturais em outros momentos. Para as crianças da escola Escragnolle, partimos da “Carta da Terra” e chegamos aos pigmentos e pinturas. Ao convidá-las a aprender mais sobre o lugar onde elas vivem, ouvi repetidamente as histórias de violência e medo. Perguntei se elas sabiam de onde eram aquelas tintas da oficina. Algumas crianças desconfiaram que a tinta era barro. “Parece tinta, mas tem cheiro de terra”. Perguntei se elas sabiam que a terra da região da escola era uma terra cheia de cores. Perguntei se elas conheciam o senhor gentil que conseguia ter uma forma diferente de ser e viver na favela. As crianças, assim como os pássaros, sabem de muita coisa. Os pequenos me trouxeram o nome e uma possível data de visita ao senhor.
As crianças disseram que não sabiam que era importante conhecer de terra, de plantas e de quintal. Durante a semana as crianças me presentearam com terras, urucum e flores pigmentadas. Presentes de crianças da Pedreira. Talvez os mais bonitos que já recebi na vida.
Agora estamos mapeando os caminhos verdes da favela. As cores da terra do quintal da escola pintam de amarelo e tons de vermelho os mapas da vida da Pedreira.
Fotos: Wagner Clayton
23/05/2024
CORPO – CASA – TERRITÓRIO – por Cris Takuá
Arte de Cris Takuá
Nosso corpo é território
É casa, é morada ancestral
Nossa casa é a floresta
E através dela atravessamos
um cristalino portal
Nosso território é beira do rio,
É montanha e manguezal
Somos o emaranhado de uma teia
de colorido natural.
A floresta pulsa
e os seres sagrados que nela habitam
estão a nos observar em meio ao vendaval
Respeitar os espíritos da floresta
Deveria ser o princípio inicial
das relações de transmissão de saberes
e conhecimentos
desse nosso mundo atual.
Arte de Kaue Karai Tataendy
Tecendo mundos vamos aprendendo a nos relacionar com os espaços que nos circundam. Desde a primeira morada que nos acolhe no útero de nossas mães começamos a perceber e a sentir a dimensão dos muitos territórios que habitamos. Nessa grande teia de relações somos concebidos com modos de pensar e existir conectados com uma memória ancestral, um acervo de saberes e fazeres que habita nossos corpos e existe em muitas camadas. O corpo, casa, território, esse mundo de conexões profundas está passando por modificações significativas devido ao processo de mecanização das relações. A inteligência artificial, cada vez mais presente na vida e nas convivências humanas, tem feito com que as ferramentas ancestrais de comunicação, como a telepatia, a intuição e os sonhos fiquem silenciados no dia a dia de muitos seres.
A nossa grande morada, a nossa casa sagrada, é a floresta. E ela não está presente somente dentro da nossa casa, mas nas cachoeiras, nas montanhas, em todos os espaços onde se constitui o tekoa, que é o território onde se vive, onde se planta, onde se cria, onde se brinca, onde se é possível conviver de uma forma coletiva, de uma forma verdadeira. Sinto que todo o nosso corpo, toda a forma como a gente se coloca no mundo, estão sendo chamados para uma transformação, um redirecionamento. Independente das nossas origens, das nossas posições políticas, filosóficas ou epistemológicas, precisamos ter um compromisso ético com a vida e, assim, conseguir equilibrar o sopro de amor que sai das nossas palavras com o compasso dos nossos passos ao caminhar. Esse é o grande desafio que temos que superar para conseguirmos avançar, com coerência e serenidade, sem sermos constantemente contraditórios nas nossas ações.
Arte de Jera Mirim
Ao longo da história, a humanidade se escorou em uma razão que não coloca os outros seres no diálogo. Os humanos criaram, inventaram, modificaram, destruíram o equilíbrio da natureza. E esqueceram de perceber que as formigas, as abelhas, o vento, as montanhas, os rios e todos os seres que habitam aqui neste planeta, seres visíveis e invisíveis, seres, animais, seres vegetais, seres minerais, eles também possuem uma coletividade, uma dinâmica de vida que pulsa dentro desse território que é o grande planeta Terra. Mas nós, humanos, insistimos em querer ser maiores, em querer ser mais pensantes e donos desse mundo todo. E, em nome disso, causamos todo desequilíbrio nessa humanidade que a gente julga e pensa ser.
Não tem como nos dissociarmos da natureza, porque nós somos a natureza e tudo está interligado. Nenhum humano consegue viver e sobreviver se não tiver água para beber, se não tiver um ar puro para respirar. Todo o processo capitalista e colonizador, em muitos lugares no mundo, impôs um modo de ver e pensar o tempo, e isso afetou os processos de transmissão de conhecimento. Há uma monocultura que rege os alimentos, que rege as epistemologias e os processos de cura e doença. Isso precisa ser compreendido de um modo que os indivíduos percebam que nós não somos nada além de um pequeno grão nessa grande teia que relaciona a vida. Quando penso em casa, corpo e território, percebo o quanto nós, humanos, somos dotados de um grande potencial que é a nossa própria mente. O nosso pensamento é capaz de muito desenvolvimento e criatividade, que podemos nós mesmos nos proporcionar ou nos direcionar a aprender.
As formigas, as abelhas e as plantas são seres muito inteligentes, assim como todos os seres minerais. Eles pulsam a cada dia, se transformam e se recompõem. E nós, humanos, estamos constantemente nos dividindo por classes, etnias, cor de pele, classe social. Mas somos todos humanos e fomos colocados todos neste mesmo barco, que é essa morada sagrada, que é essa casa-território onde habitamos e compartilhamos de lutas e sonhos, de expectativas e querências a cada dia. Se habituar a isso e enxergar de uma forma clara e plena é a missão que cada um de nós carrega nessa morada territorial. Com as nossas sensibilidades, com nossas especificidades culturais, espirituais, somos capazes de alcançar essa grande coletividade que habita a casa planeta Terra, e assim reativar o cuidado e a atenção com o nosso próprio corpo, com a nossa mente e espírito.
Arte de Alexandre Wera Popygua
21/05/2024
SERÃO PERMITIDAS APROPRIAÇÕES E RELEITURAS – por Veronica Pinheiro
“Não tenho nenhuma perspectiva com relação a um novo mundo. Eu não acredito num novo mundo. Eu acredito que nós vamos ter que resolver o que a gente vai fazer com este que a gente está estragando. A ideia de um novo mundo está dentro de uma lógica que sugere que o meu sapato acabou, eu compro um novo.”
Ailton Krenak
O ano: 2024. As duas reflexões chegaram a mim no mesmo dia: a primeira, um vídeo, do qual transcrevi um trecho da entrevista de Ailton Krenak; a segunda, um edital da Mostra Municipal de Multilinguagens, de onde copiei a frase que intitula este texto.
Esta semana o diário seria sobre a oficina “Cores e terra – pigmentos e pintura”. Porém, no último dia da semana, ainda em expediente, recebi o edital da 4ª Mostra Municipal de Multilinguagens. Minha tarefa era entender como poderíamos inscrever a escola e os trabalhos que estamos desenvolvendo na mostra. Não sei vocês, mas eu leio editais e me atento às miudezas e aos detalhes. Eram tantas orientações pedagógicas somadas a um punhado de siglas e objetivos gerais e específicos. Assumo aqui que sou cismada com leis, diretrizes e pedagogias. As práticas, o não dito, o estabelecido, as escolhas e o fôlego das propostas me interessam mais. A princípio, li para entender em qual linguagem artístico-pedagógica poderíamos inscrever a escola (dança, teatro, música e/ou artes visuais). Depois não consegui parar de pensar sobre o que li.
O tema da mostra – Brasil e seus brasis, a influência dos povos originários na formação da nossa identidade cultural brasileira, à luz da Lei 11.645¹ – tem uma série de agendas a cumprir. Era tanta demanda bonita (competências para o século XXI²; conjugar os 4Cs³; trabalhar temas transversais⁴; incluir a questão sócio ambiental e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS⁵; ampliar visão de sociedade e de mundo; focar na Agenda 2030 com a Coordenadoria de Diversidade⁶; não esquecer da Base Comum Curricular – BNCC⁷; implementar a Lei 11.645) que até fiquei tonta.
Este texto poderia ter parado no título. Entretanto, convido a todos a pensar em como a gente vai resolver este mundo que estamos estragando. “Serão permitidas ‘apropriações’ e ou releituras’”. Esta frase me saltou aos olhos, automaticamente disse: “não entendi”. Ou entendi tudo. A sentença (frase ou oração; intencionalmente escolho a palavra SENTENÇA) escrita na página 15 do edital diz tanto sobre as relações étnico-raciais propostas pelas instituições e suas escolhas pedagógicas. Porém as instituições são compostas e representadas por pessoas. E como pessoas podemos juntos pensar em possibilidades para reescrever perspectivas e realidades.
Não há neutralidade num texto. Aprendi estudando linguística que em cada signo “dorme um monstro”. Se me atento ao não dito, como ignorar o dito? O escrito?
“O corpo de um negro ou de um índigena está impregnado de cultura e memória, traz as marcas de dor e sofrimento que a colonização impingiu. Essas peles não são fantasias. Portanto, apropriação cultural não é homenagem, é violência simbólica exercida de forma sutil ou explícita. Ninguém tem o direito de usar um cocar e pintar a cara enquanto apoia o genocídio indígena. Um branco não pode cantar samba e continuar destilando racismo.”⁸
Certamente alguém vai tentar explicar e apresentar contextos para justificar a sentença que tanto me doeu os olhos. Pode até explicar, mas quem valoriza documentos e papéis não sou eu. Meu povo guarda memórias e saberes em cantos, em práticas e em rezos. Não sou eu quem exige que tratados e acordos sejam validados por escrito e protocolados. São as instituições. São as instituições que dizem “vale o que está escrito”. E estava escrito:
“Serão permitidas ‘apropriações’”
E se está escrito pode ser reescrito. Que possamos, a partir de 2024, ressecrever coletivamente os caminhos e as possibilidades de coexistência. Toda cultura é resultado de anos de interações sociais e naturais; por isso, a afirmação da identidade é um movimento orgânico. É importante ouvir mais; por exemplo, ouvir como pessoas indígenas gostariam de ser apresentadas e representadas. Muita gente não sabe que um grafismos não é apensas uma pintura; tantas outras, desconhecem que um canto pode trazer memórias antigas e palavras de cura. Que em 2024, possamos entender que a melhor forma de honrar uma tradição é fortalecendo os territórios e respeitando todas as manifestações de vida presentes neles.
²https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000234311
³O conceito dos 4C’s foi apresentado pela associação National Education Association (NEA), em complemento às atividades do “21st Century Skills”, movimento educacional do século 21 que visa capacitar os educadores para avançarem em sua própria prática. Os 4Cs são: pensamento crítico; colaboração; comunicação; criatividade.
⁴ Os temas transversais definidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais são: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Temas Locais. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/implementacao/contextualizacao_temas_contemporaneos.pdf
⁵ São 17 os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pelas Nações Unidas. http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel
⁷ http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
⁸Apropriação cultural / Rodney William. — São Paulo : Pólen, 2019.
16/05/2024
ENTRE RIOS, MONTANHAS E CRIANÇAS – por Cris Takuá
Arte coletiva.
Foto: Cris Takuá
Vida Rios
“ Os Rios são veias visíveis
Existem os Rios subterrâneos
e os Rios voadores.
Rios como flechas da memória
Neurotransmissores
Rios Micélios Neurônios
Os Rios não são Rios, somos nós
São tudo.
São evidências do corpo da Terra
Vidências trazem a visão.
A pele da Terra é o céu.”
*** Anna Dantes, Puerto Berrio,
Colômbia- maio/2024 ***
Residência “Actuar por lo vivo” sobre a bacia do rio Magddalena. Puerto Berio, 3 de maio de 2024.
Foto: Digo Fiães
Os rios são as veias da Terra, são espíritos que caminham serpenteando, deslizando entre pedras e águas cristalinas. Brotam de montanhas antigas e acariciam nossas peles com a possibilidade da vida. Pelos quatro cantos do mundo e ao longo da história, humanos não souberam respeitar a existência dos rios. Mudaram seus percursos, contaminaram seus corpos com dejetos de mineração, agrotóxicos e lixo – muito lixo.
Hoje, crianças estão a refletir e, mais do que isso, estão sentindo as duras consequências dos hematomas nas camadas profundas da Terra. Através de sua sensibilidade estão mediando os conflitos entre os mundos e entre os tempos, com o objetivo de regenerar os vínculos com os seus territórios ancestrais.
Um caminho que vem se desenhando possível é sentir e pensar o rio, diante de todas as suas feridas e complexidades. E assim cantar para o Rio, conversar com ele e escutar suas profundas mensagens. Esses são desafios que seres sensíveis estão conseguindo alcançar.
Fotos: Lina Cuartas e Cris Takuá
Caminhando nas margens do Rio Madalena em Puerto Berrio, na Colômbia, no início de maio, recordei memórias antigas de crianças brincando e plantinhas brotando nas margens dos rios do mundo. Me conectei com o sagrado Guaíba lá no Rio Grande do Sul, cansado, machucado com toda a confusão humana, e algo ressoou em mim em forma de canção….
Yxyry Porã Mbaraete
Yxyry Porã Mbaraete
Yxyry reo Para Guaxu aguã.
Yxyry reo Para Guaxu aguã.
💦💧🩵💦💧
Um canto para o belo Rio Madalena, Guaíba, Taquari, Rio Doce e Paraopeba.
As montanhas são como avózinhas – nos abraçam e nos protegem. Muitas águas brotam do alto das montanhas, por isso elas têm profundas conexões com os rios que deságuam no mar.
São caminhos!
Rios, Montanhas e Crianças
Seres que nos ensinam.
Precisamos escutar mais
E respeitar a vida desses seres tão sagrados!
Foto: Maria Inês
14/05/2024
SUMAUMANOS – por Veronica Pinheiro
“Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”,
“Todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”.
Às 7h30 do dia 07 de maio de 2024, a diretora, como todos os dias, abriu o portão da escola. No lugar de “bom dia”, ouvimos: “Não dormi de tanta alegria! Eu queria que amanhecesse logo pra vir pra escola.”
Pronunciadas as sentenças, ouvimos vozes sequenciadas como num jogral: “Eu também”. “Eu também”. “Eu também”.
Não reforcei o coro, mas eu também.
Era o dia da primeira imersão do Grupo Aprendizagens. Nosso destino: Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Nesse movimento de despertamento de memórias, provocamos encontros. Alguns são entre espécies, outros não. Para nossa imersão pensamos no encontro das crianças com as árvores. Tínhamos um roteiro alinhavado: receber as crianças na escola; café da manhã; embarque no ônibus; chegada no Jardim Botânico; visita ao museu e à exposição Mbaé Kaá; passeio no jardim; piquenique; meditação e jogos teatrais; retorno à escola; e almoço. Uma linha longa e sensível prespontava de verde nossas expectativas.
Se “só existe o experimentar e o resto não nos diz respeito”¹, o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza, que também somos? Muito provavelmente, chegaremos ao último diário do ano, em dezembro, sem a resposta, mas essa pergunta nos move. Repetidas vezes falamos em semeadura; em palavras germinantes. No cenário ideal, quem planta uma roça sabe o que vai colher e sabe o tempo de colheita do que foi plantado. E quem planta sonhos? Encontros? Quem planta água, árvores e florestas?
Levar as crianças ao Jardim Botânico para que elas encontrassem as árvores não compõe uma estratégia pedagógica. É muito mais simples: toda criança tem o direito de saber que é natureza e de ter acesso às manifestações do mundo natural.
“Tia, isso não é tiro. É fogos. Fica tranquila.” “Tia, esse barulho é do helicóptero da reportagem, o helicóptero da polícia tem outro barulho.” Na favela da Pedreira, muitas crianças de menos de 10 anos sabem reconhecer os sons do horror e da guerra. Porém, não conhecem os sons resultantes do encontro do vento com a copa das árvores. No dia 07 de maio de 2024, dia do passeio, a favela amanheceu tranquila e o Sol apareceu cedinho e bem quente, apesar de estarmos no outono. A última terça tinha gosto de docinho de festa.
Da escola, éramos um total de 42 pessoas². Do Grupo Aprendizagens, 6³. 1 ônibus rosa-choque e 1 motorista super gentil. A cor do ônibus é estratégica, precisamos entrar e sair da favela em segurança. O tal ônibus rosa se tornou uma personagem querida entre crianças e adultos, ele já ganhou nome e sua visita está sendo aguardada por outras turmas da escola.
A visita ao jardim começou e terminou diante da Sumaúma (Ceiba pentandra). No começo, “Sumaúma: Copa, Casa, Cosmos”, obra de Estevão Ciavatta com narração de Regina Casé, nos imergiu virtualmente na Sumaúma. Fomos recebidos pela equipe do educativo do Museu; Daiani Araújo e Thalyta Sousa receberam as crianças com muita delicadeza e conduziram todo o grupo até a obra Sumaúma. Na sala de projeção, todos, sem exceção, ouviram com o coração as palavras da árvore. Pela primeira vez, muitos dos presentes se deram conta que uma árvore tem muito a dizer sobre si e sobre a vida. Alguns quase não piscavam, outros ouviam de olhos fechados. Todos sorriam com lábios e olhos.
“Tia, faz o mapa pra chegar da escola até aqui. Quero trazer minha família pra ouvir a árvore.”
“Farei um mapa do metrô da Pavuna até aqui. Será muito fácil chegar.”
Subimos as escadas de madeira em pequenos grupos de 7 pessoas e no segundo andar, dentro da exposição Mbaé Kaá aprofundamos algumas conversas sobre plantas e a relação dos povos indígenas com elas, ao redor da instalação Jardim Viva Viva. Arte Guarani, natureza, ciência, Barbosa Rodrigues e as janelas do prédio. Após a conversa sobre a exposição, as crianças correram para janela. Ali me toquei que as janelas das salas de aula da escola não têm vista. O gesto coletivo de olhar para fora trouxe uma inquietação ao grupo. Muitos encontros estavam por acontecer. Abraços entre crianças e educadores do museu encerraram a primeira parte do passeio.
Dentro do Jardim, as crianças olhavam pra todas as direções possíveis. Enxergavam com olhos, ouvidos, pés, pele e coração. Pausa para admirar a água fresca descendo das pedras. Pausa para sentir o frescor das águas. Por um minuto ou mais não ouvi vozes; corações e bocas se calaram para o olho ver direito. Findo o silêncio que saudava as águas, aos poucos a euforia tomou novamente o grupo. “Não vou mais lavar essa mão aqui. Toquei na água da cachoeira.” Não falei nada. O menino acreditava que tinha tocado as águas, mal sabia que as águas tinham tocado nele. Ele agora carrega água fresca dentro, lavar ou não a mão é detalhe.
“Tia, o bambu falou!” Antes que eu tecesse algum comentário…
“Por que não tem panda lá em cima?”
Antes que eu falasse qualquer coisa… um peixe gigante, o tambaqui que vive no Lago Frei Leandro, se tornou mais interessante que a resposta. Caminhamos por alguns minutos, atravessamos a pequena ponte e o pequeno portal para o parquinho das crianças. Lá, tivemos uma pausa pro lanche e para meditação. Cantamos pra Terra. De olhos fechados fomos árvore. Raízes. Tronco. Galhos. Folhas. Nosso passeio se aproximava do fim, era hora de retornar ao ônibus. Pegamos um caminho diferente dentro do jardim, não poderíamos ir embora sem encontrar a Sumaúma plantada no Jardim.
Com raízes muito profundas que trazem água para a superfície mesmo na época seca, a Sumaúma é considerada a mãe da floresta e pode chegar a 70 metros, o que equivale a um edifício de 24 andares. De onde eu venho, na sumaúma vive Iroko, (do iorubá Íròkò) que é guardião da ancestralidade e dos antepassados, seio da natureza e morada de todos os Orixás; primeira árvore que se fez plantar na Terra. Muitos povos indígenas afirmam que as grandes sapopemas da sumaúma representam um portal para outro mundo. Uma árvore sagrada para diversos povos da floresta, uma grande mãe, que protege todos. Os Huni Kuï dizem “Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”, “todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”. Num espaço pluriversal de diálogos, a sumaúma é tudo isso e mais um pouco.
Li um documento da EMBRAPA sobre a Sumaúma e pensei que a equipe que escreveu o texto para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento deveria ter visitado o Jardim Botânico do Rio junto com as crianças, pois os técnicos do governo só conseguiram apresentar ao público os múltiplos usos e alternativas econômicas sobre a sumaúma. As crianças não. Assim como os babás e pajés, as crianças se conectaram com a árvore. Sonhos e seiva se misturaram. À medida que nossa roda se formava ao redor das sapopemas da sumaúma, memórias verdes eram despertadas. Em tempo de sonho, meus pequenos companheiros sonharam ser árvore e viver num jardim. Sonho é seiva, líquido que circula mantendo o tempo circular. Num tempo de seiva, Angélica de 10 anos chegou à seguinte conclusão: “Encontramos a árvore, entramos dentro dela agora somos SUMAUMANOS”.
Voltando à pergunta que nos movimenta: o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza que também somos? Segundo a menina Angélica, podemos virar um pouco árvore.
¹in Mbaé Kaá o que tem na mata: A Botânica Nomenclatura Indígena, de João Barbosa Rodrigues. Dantes Editora, 2018.
² 37 alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, 3 professores, coordenadora pedagógica e diretora adjunta
³ Luany da mediação de visita ao Jardim; Paula Novaes da mediação de atividade de respiração e jogos teatrais; Tania Grillo da mediação durante a exposição Mbaé Kaá, e 3 integrantes da equipe de voluntários, Bia Jabor, Eliane Brígida, Evellyn.
Fotografia: Éricka Hoch;
Coordenação e medicação nas atividades de Veronica Pinheiro .
09/05/2024
TABACO, MESTRE DO SABER – por Cris Takuá
Foto: Carlos Papá
Curandeiro ancestral
O sopro do cachimbo
O sopro do rapé
O sopro do amor
Das palavras
Das canções que
Explodem do universo
Interior das inquietações íntimas
De nosso Ser…
O sopro limpa
Alivia e dissipa
As mágoas e as ansiedades.
A maldade existe!
Mas não é nada comparada
À força que habita na fumaça
Das medicinas sagradas
Que através de seu sopro
A tudo purifica e transforma
O sopro que como um impulso
Sai em forma de palavras em movimento
Ecoa pelos quatro cantos desse universo
Em profundos momentos .
É necessário cantar mais
Proferir mais palavras de amor
É necessário soprar cura a tudo e a todos
A ilusão persiste em perseguir
A matéria humana
Mas o verdadeiro Amor habita
Na sensível sabedoria
Das pequenas coisas
Dos pequenos atos
Das profundas ensenhanças
Dos sonhos e das crianças
Que revelam a cada novo amanhecer
A extraordinária beleza
De ser e existir plenamente.
O sopro me inundou a alma
Nessa noite silenciosa e fria
E através do sopro
Vi sua bela forma serena e tranquila
Me mostrando os caminhos
Me revelando os mistérios
Me apurando os sentidos
O sopro me aliviou
Me curou
E alegrou
E me fez poetizar ao amanhecer
As cantigas do bem viver!!!!!
(Sopro de palavras recebidas num amanhecer após um ritual de cura com tabaco)
Foto: Cris Takuá
Há milhares e milhares de tempos em meio ao escuro surgiu a vida e todos os seres que habitam ao nosso redor. Cada ser vegetal, animal, mineral são espíritos que convivem num profundo emaranhado de saberes, como uma grande teia onde tudo está conectado. Tudo que habita na Terra tem seu guardião e dono. Os Guarani chamam de Ija, os Maxakali de Yamiyxop, os Huni Kuin de Yuxibu, os Yanomami de Xapiri. Cada povo nomeia esse ser e mantem relação de profunda comunicação no mundo espiritual.
Não respeitar esses seres pode nos levar ao adoecimento. Por isso, as crianças precisam ser ensinadas desde pequenas a pedir licença por onde caminham, saber entrar e saber sair da floresta, da cachoeira, da montanha. Respeitar esses seres espíritos significa ter boa vida em equilíbrio e saúde.
Existem algumas plantas de poder, que também são chamadas de mestras, que nos mostram os caminhos, nos colocam em diálogo com os seres espíritos e também nos curam quando afetados por algum mal espiritual.
Muitas culturas indígenas em todas as partes do mundo historicamente fazem uso do tabaco para as suas práticas de cura. Essa planta sagrada está presente em culturas ancestrais em praticamente todos os continentes. Uns a utilizam em cachimbos que, através da fumaça baforada, proporcionam uma comunicação espiritual. Outros sopram o rapé. Ela pode também ser mascada ou tomada como água de tabaco para purga, proporcionando limpezas profundas. Também tem o uso externo como cataplasma. São muitos os usos desse ser.
Ailton Krenak, no Caderno Selvagem Entrar no mundo – Conversas sobre “Plantas Mestras”, em que dialoga com Carlos Papá, diz: “Aprendi então a fazer uma coisa que ainda não ouvi ninguém falando, que é de ler o tabaco. Sei que tem gente que lê borra de café, que lê outros movimentos na água. Mas só experimentei essa coisa de ler a mensagem do tabaco dichavado, sem nenhum uso, só ali olhando para ele me mostrando coisas. Foi muito bom. É provável que outras pessoas já tenham também vivido essa experiência em outros contextos, do tabaco ser essa voz de saúde, essa imagem ativa. Não é uma coisa inerte, mas é algo vivo. É claro que quem faz o uso ritual dele, o uso cotidiano dele, tem outras experiências.”
Percebemos, no entanto, que esse ser sagrado vem sendo tratado de forma desrespeitosa pelas sociedades humanas. As crianças crescem com medo do tabaco, pois são ensinadas que ele mata, causa câncer ou problemas pulmonares. Essa afirmação é carregada de um desconhecimento do uso dessa planta, pois, para muitas culturas que fazem uso ritualístico do tabaco, ele cura.
Tomio Kikuchi, em seu livro Essência do Oriente, diz: “Segundo o princípio Único da ordem do Universo Infinito, isto é, a dialética prática Ying-Yang, fumar tabaco é classificado na categoria Yang… Deve-se ter compreendido que fumar é yanguinizar-se. O câncer sendo Yinguinização explosiva, dilatação contínua (dominado que é pela força centrífuga Ying, dilatadora) será contrariado em seu desenvolvimento pela absorção da fumaça Yang constritora. Esta pode levar a sua regressão e finalmente à reabsorção… nós podemos declarar, com toda certeza, que fumar o tabaco é sobretudo recomendado para cancerosos como para todos aqueles que desejam que fortificar sua imunidade contra o câncer.”
Refletir sobre a profundeza dos seres plantas nessa relação íntima com nossas vidas significa mergulhar na ciência da floresta, que, ao longo de séculos, vem sendo ocultada e ignorada pela ciência capitalista e ocidental. Há um saber que rege comunicações muito sensíveis feitas através de tecnologias ancestrais, como a telepatia, a intuição e os sonhos. Os grandes rezadores e rezadoras, curandeiros e curandeiras passam tempos de suas vidas em processo de preparação para alcançar o entendimento para dialogar com as plantas professoras e possibilitar a cura aos humanos.
Ainda no diálogo Entrar no mundo, junto a Ailton Krenak, profundos pensamentos foram trazidos por Carlos Papá para que possamos sentir a delicada relação do tabaco para o povo Guarani.
“O petyngua leva as mensagens diretamente do Nhanderu. E Nhanderu vai te guiar. E essa fumaça que você solta, de dentro para fora leva o pensamento, o sentimento. E a fumaça vai pairar por todo o universo. Vai se misturar com o vento. Vai se misturar com o aroma do ambiente. Com isso você vai se fortalecer cada vez mais. Mas isso você vai entender melhor quando tiver seus filhos. Através do tabaco e da fumaça vinham mais mensagens. Pela embriaguez do tabaco, eu comecei a perceber e entender os códigos da fumaça na medida que você bafora. A fumaça começou a abrir os códigos. Acabei entendendo esses códigos… E vinham as falas antigas, falas como se os grandes pajés se manifestassem. Senti uma força muito grande, me senti gigante. Não sentia mais meus pés no chão. Eu me senti… Parecia que eu tinha capacidade de voar. Assim, comecei a perceber que o petyngua é um instrumento que cura, que faz com que você entenda todos os códigos do tempo. Foi aí que também compreendi o que nós chamamos de teko axy. Teko axy quer dizer corpo imperfeito. O vento traz e leva as mensagens. A fumaça do pety, que é o tabaco, essa fumaça quando pensamos, leva o pensamento e paira para que o vento traga respostas.”
Através desses pensamentos trazidos convido a todos a se despir das camadas de formatação mental que recebemos desde criança. Que comecemos a repensar nossas relações com o escuro, com o Sol, com a chuva, o vento, o tabaco, a coca e tantos seres que desaprendemos a respeitar e com os quais podemos sim conviver de forma harmoniosa. A industrialização capturou algumas plantas mestras, cabe a cada um de nós reaprender a nos relacionar com cada uma delas.
Fotos: Cris Takuá
07/05/2024
DE SOL EM SOL – por Veronica Pinheiro
Foto: Wagner Clayton
Todo MUNTU (ser humano) é o Sol vivo, percebido como um “poder”, “um fenômeno da veneração perpétua, da concepção à morte” e além. Uma vez trazido ao mundo físico se inicia uma tarefa sagrada (a mais importante para civilizações africanas): cuidar desse MUNTU para que ele brilhe como o Sol do meio dia.¹
Observe: a cosmologia africana dos Bantu-Kongo, ideia compartilhada pelo dr. Fu-Kiau, apresenta o cuidado com as crianças como uma arte que precisa ser honrada.
Pensando no universo escolar, ser professor de crianças é uma atividade considerada de menor prestígio na sociedade brasileira; uma atividade realizada geralmente por mulheres e por pessoas de baixo poder aquisitivo. Existe uma hierarquia estabelecida entre os profissionais de educação e quem leciona na Educação Infantil e Ensino Fundamental são desrespeitados dentro da própria categoria. É comum um professor universitário se ofender ao ser perguntado em que escola ele trabalha. “Escola? Não trabalho em escola. Sou professor da Universidade fulana de tal.”
Curiosamente, muitos professores que se apresentam publicamente como decoloniais (ou contra-coloniais) são apegados ao pensamento hierárquico europeu, que vê a educação infantil e o Ensino Fundamental como um lugar de menos prestígio intelectual.
A professora Jacqueline Siano esteve presente na minha banca de qualificação do mestrado, ela fez a seguinte observação: “Você pesquisa confluências afropindorâmicas e práticas contracoloniais no ensino. Você precisa voltar para escola!”
Voltei.
Volto prenhe de caminhos e possibilidades. Trago no coração algumas ideias para adiar o fim do mundo. Há quem diga que volto pluriversalizada. Eu digo que volto povoada. Povoada por seres, narrativas, tempos e espaços. Tenho andado cada vez mais acompanhada. Nesta volta, muitas memórias foram despertadas no corpo de carne e no corpo memória. Nessas memórias, conheci e despertei memórias solares.
Quem é o Sol? Quantas narrativas conhecemos sobre sua origem, a origem do mundo e sua participação como fonte vital de energia?
Eu trazia duas memórias solares: a de casa, repetida em versos e nas práticas diárias, que me dizia que nós éramos como o Sol; a da escola dizia que o Sol é uma estrela localizada na Via Láctea, a estrela mais próxima do planeta Terra e a maior de todo o Sistema Solar. A escola dizia que era impossível que eu fosse Sol. Como a escola é autorizada a dizer o que é certo e errado, esqueci que era Sol e fiquei com a versão da escola. Essa visão reducionista de existência apaga sóis em dia pleno.
Kuaray (Guarani); Abe (Desana); Mãyõn (Maxakali); Kamoi (Baniwa); Sol (Português); Bari (Huni Kuin); Pawa (Ashaninka); Wei (Macuxi) são mais que palavras utilizadas para designar o Sol; são epistemologias solares. Palavras geradoras, acompanhadas de vida e mundos. Tenho um gosto especial por narrativas que começam com “Antes o mundo não existia”. Esse tempo antes do tempo existir traz ensinamentos profundos de cuidado e manutenção da existência. Os mitos de origem não existem para alimentar os ouvidos do mundo, mas para vibrar vida.
Despertando memórias solares, alguns vazios foram preenchidos com escutas e pesquisas; em breve o Ciclo Sol apresentará uma série de falas sobre o Sol². O pensamento lá de casa reapareceu em livros e teses. “Deixa meu Sol aceso”, fala de meu pai, apresenta vestígios de uma filosofia antiga, trazida ao Brasil por pessoas negras durante a travessia do Atlântico entre os séculos XVI ao XIX (tráfico de pessoas promovido por Portugal é a expressão mais precisa). No pensamento Bantu-Kongo, quatro grandes “sóis” regem os processos de formação e mudança. O primeiro (Sol Musoni) é o Sol do “ir para”, todos os começos; o segundo (Sol Kala) é o Sol de todos os nascimentos; o terceiro (Sol Tukula) é o Sol da maturidade, liderança e criatividade; o quarto (Sol Luvèmba) é o Sol da última e maior mudança de todas, a morte¹.
Nunca empreguei tanto a palavra Sol no plural quanto nesses últimos dias. Plural em significados e existências. Coexistências continuamente formando, mudando, expandindo. De sol em sol, se pensarmos no processo de solar de formação Bantu-Kongo, o Grupo Aprendizagens encontra-se no segundo sol. Estamos nascendo. Nascendo e propondo nascimentos. Para isso, temos semanalmente reuniões de planejamento e estudo (com pessoas da equipe Selvagem); mensalmente nos reunimos com os professores da escola parceira e com os voluntários do grupo.
Foto: Wagner Clayton
Nosso último rompimento, foi receber na escola a visita da ceramista Angélica Arechavala (voluntária que acompanhou o Grupo Crianças e agora apoia o Grupo Aprendizagens). Pode parecer simples, mas a escola está localizada numa região desfavorável para receber visitas. Nossa ideia é estreitar parcerias e criar uma rede orgânica entre territórios, isso inclui trazer pessoas de fora para conhecer a comunidade escolar e levar a comunidade escolar para conhecer outros lugares.
Para que mais um Sol vivo fosse incluído na mediação das oficinas de cerâmicas, contamos com a articulação da escola, que disponibilizou pessoas para buscar Angélica e trazê-la pelo caminho mais seguro. Ao compartilhar com um cientista a potência daquele encontro que durou 10 horas, recebi o seguinte comentário:
“Os objetos dobram o espaço-tempo, sentem essa curvatura e se movem de acordo. Você é um sol. A chegada da ceramista adiciona um novo sol além de você. Isso desloca a posição do primeiro sol, e principalmente dos demais planetinhas que são seus aluninhos kkkkkk que estavam acostumados à configuração anterior. Por isso, eles estavam mais próximos girando e orbitando em torno de você”.
O que teve de tão potente nesse encontro? Eu pude sentar e tocar em crianças que geralmente não me permitem muita aproximação. Crianças que conhecem o horror bem de perto confiaram em nós no último encontro. Era um ambiente de muita confiança e cuidado: direção, coordenação e professores nos acompanharam em todo tempo, em cada espaço. A presença de Angélica dobrou o espaço-tempo, gerando deslocamentos solares. Estamos caminhando para gerar Tukula, o Sol da maturidade. Que ele chegue em boa hora.
“O Sol caminha devagar, mas atravessa o mundo” – Provérbio Africano
¹Fu-Kiau, Kia Bunseki e Lukondo-Wamba, A.M. KINDEZI: A Arte Kongo de Cuidar de Crianças. Com introdução de Marimba Ani. Tradução para o brasileiro por Mo Maiê. Rede Africanidades
²O Ciclo é composto por 19 falas pluriversais de Catarina Delfina Tupi-Guarani, Fabio Scarano, Moisés Piyãko (Ashaninka), Catarina Aydar, Carlos Papá (Guarani), Aliny Pires, Dua Busë (Huni Kuin), José Miguel Wisnik, Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Júlia de Carvalho Hansen, Francisco Baniwa, Aza Njeri, Anacleto Tukano, Carla Wisu (Dessano), Camila Mota, Marcelo Gleiser, Eduardo Góes Neves e Ailton Krenak.
02/05/2024
TRAMA QUE TECE A VIDA – por Cris Takuá
Arte: Rita Huni Kuï
Teia da vida
Somos um emaranhado de fios
de sentimentos entrelaçados energicamente
A cada dia aprendendo
a tecer a grande teia da vida
Fia Fia Fia o Fio
Tece tece tece a mão
A base da trama
Que colore essa canção.
Entre teias de aranhas
E profunda miração
As artes vão brotando
Fiando, tingindo e tecendo o algodão.
A floresta inspira o artista
Que medita e se inspira
Refletindo em sua bela criação
Mensagens ao mundo de respeito e união.
A arte traz a potência da cura
O eco da política em sua ampla concepção
Criativa e transformadora.
O artista é um semeador,
Diálogo com morcegos, jiboias e aranhas
E com seus saberes e fazeres ancestrais
Toca a alma e descoloniza a mente
Há séculos moldada por uma
Monocultura do pensamento
A arte tem a possibilidade
de metamorfosear as relações
Entre o céu e a terra
Entre o visível e o invisível
Nos mostrando outros caminhos
Outras realidades possíveis
Num manancial intelectual e criativo
Que habita na complexa e bela existência
dos povos todos que resistem
com seus cantos, rezas, artes e filosofias.
A estética da floresta é múltipla
E dialoga com conhecimentos
Que não estão nos livros e nem nos museus
Vivemos uma criminalização epistêmica.
Uma violência contra as ideias
Contra o pensar
E isso reverbera no útero da terra
Machucado de tanto nos abrigar
Que saibamos despertar as lembranças
E voltar a tecer boas e belas palavras
E tecidos coloridos para reencantar a vida.
********
Fotos: Kawa Huni Kuï
A tecelagem manual é uma arte que acompanha o desenvolvimento do ser humano há muitas gerações. Os diversos povos, de acordo com sua cultura, seu clima e sua região, desenvolveram o processo de tecer, fiar e tingir para produzir tecidos. Uma forma de linguagem ancestral que transmite narrativas repletas de sentidos e encantos. Para alguns povos, a aranha foi quem ensinou a tecer; para outros, a jiboia; para outros, pássaros que vão fazendo seus ninhos tecendo fibras e galhos. São ensinamentos muitas vezes passados do mundo espiritual para os humanos.
Para as mulheres Huni Kuï, o canto é parte do processo de tecelagem: durante a colheita, descaroçamento, bater e fiar das fibras de algodão, as artesãs cantam pedindo à força das aranhas para tecer rapidamente, já que, segundo sua cosmologia, o fio colhido pela aranha já saía pronto, sem a necessidade de bater ou fiar.
Arte: Rita Huni Kuï
Para que as artes indígenas continuem existindo, há a necessidade de que existam as florestas. O modo como a sociedade se desenvolveu nos faz esquecermos de quem realmente somos, não deixando de olhar para o fundo de nossa essência, para conseguir atravessar as barreiras do desconhecido. Junto a isso, a imensa fonte de informações na qual estamos mergulhados, os maus hábitos alimentares, o egoísmo, o desamor e a falta de bom senso estão desencantando a humanidade que sonhamos ser.
Um dos principais saberes que as sociedades indígenas têm e que torna seu pensamento valioso é justamente uma outra maneira de conceber a relação entre a sociedade e a natureza, entre os humanos e os não humanos, uma outra forma de conceber a relação entre a humanidade e o restante do cosmos. A existência de um equilíbrio, em que todos os seres interagem e se respeitam, não só os mais velhos, os anciãos e pajés, mas todos; jovens, crianças, formigas, abelhas, árvores, todas as formas de vida.
Foto: Cris Takuá
Para os povos indígenas, a natureza é quem dá sentido à vida. Tudo em seu equilíbrio. Como uma imensa teia, na qual tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está pra acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que com sua delicadeza e sabedoria vão nos guiando e nos ensinando como bem viver.
A arte brota de uma memória muito antiga e as tramas que se desenrolam de um processo criativo de imaginação mostram o potencial que habita no interior de cada tecelão. Entre sonhos e mirações vão se revelando formas e sinais, que refletem da natureza sua origem de criação, pulsando para a vida o sentido dessas relações.
Foto: Carlos Papá
30/04/2024
O SOL SONHAVA AMANHECER – por Veronica Pinheiro
“Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou o Sol
Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou a água, o vento, a vida no planeta
Por isso você não pode ter medo do escuro.
O escuro é a mãe de todo o universo, inclusive de Deus.
O escuro não escolhe ninguém.”
Poética Guarani narrada por Carlos Papá¹
Foto: Veronica Pinheiro
O diálogo a seguir abre caminhos para a segunda Oficina Aprendizagens, que o Selvagem pensou para a Casa das Crianças:
- Preciso de uma sala escura.
- Não temos uma sala escura. Você não pode usar a Sala de Leitura com a luz apagada?
- Posso. Mas ela não é escura o suficiente. E se alguém, sem querer, acender as luzes da sala, perdemos esta etapa do trabalho.
- Crianças têm medo do escuro.
- Crianças têm medo da relação que criaram para elas com o escuro. Vai dar certo, elas estarão carregando o Sol dentro do peito. Vamos construir uma boa relação com a escuridão.
- Tem a antiga salinha do médico. Não sei se é escura o suficiente, mas eu te levo lá.
A salinha do médico ganhou camadas de tecido preto, gentilmente colocadas pelo professor Wagner, tornando-se o nosso laboratório de imagens e sons. A oficina era sobre o Sol e a relação de vida que ele estabelece com a Terra. A palavra “relação” aparecerá escrita ou subentendida em todos os textos do diário, e não será por descuido. A oficina, mais especificamente, era de cianotipia, processo fotográfico artesanal, criado no século XIX, que utiliza sais de ferro para a produção da cópia fotográfica em tons de azul. A sala cedida, inicialmente, era para a preparação dos químicos, para sensibilizar e secar os papéis na primeira etapa. E, para a impressão das imagens, a luz do Sol. A sala está se tornando um lugar para pensar sobre as coisas que sentimos quando estamos longe da luz. Para as crianças, luz significa bem, coisa boa; e escuridão significa mal, coisa ruim. Entre a luz e a escuridão, o pensamento euro-cristão-monoteísta criou distâncias fixas preenchidas por medos.
A escolha das oficinas é um grande apanhado de inquietações. Buscamos atividades em que a natureza seja protagonista. E nos concentramos para que o protagonismo não se confunda com utilidade ou recurso. Cuidamos para que ninguém pense que usamos a luz do sol para revelar fotografias. Não usamos a natureza, somos seres compartilhantes. Diante do sol os corpos dançam – o corpo da água, dos humanos, das plantas, dos sais. De que nos adiantam atividades onde há uma ebulição sinestésica, que, no final, só gera prazer aos humanos e ofende às árvores, às águas, à terra?
Foto: Wagner Clayton
Antes da oficina de fotografia artesanal, conversamos sobre os textos que a luz do Sol escreve na terra. Falamos sobre escuridão (de onde saímos todos), sobre fotossíntese, foto e sínteses. Três textos foram compartilhados com os alunos da escola: A vida do sol na Terra¹, Iori descobre o Sol e Taynôh, Ho Shamêh Tahe. Um vídeo sobre o Sol foi exibido. Pintamos o Sol em tecidos de algodão; tecemos raios solares para pulseiras; fizemos registros fotográficos; sensibilizamos papéis no laboratório escuro. Com qual objetivo? Despertar memórias solares.
A escola constrói esquecimentos. Por anos, acordei antes do Sol, chegava na escola bem cedinho e voltava para casa quando o Sol já estava se pondo. Trabalhava na escola e ensinava sobre as coisas da vida. Naquela época, estive tão distante do Sol que meu corpo se esqueceu de muita coisa. Desaprendi a suar e a produzir vitamina D. Meu corpo tinha falta de Sol.
Se a escola constrói esquecimentos, contamos histórias para acordar sentidos e memórias.
“Se tiver dificuldade para achar o caminho, pergunte a meu filho Kuaray, o pequeno Sol, que ele saberá guiar vocês.”¹
Em diálogo com o mito Guarani, conhecemos um pouco sobre Kuaray, filho de Nhanderu’i. Conversamos sobre caminhada e escuta.
A mãe do Sol em algum momento parou de ouvir o Sol porque ficou furiosa quando foi picada no dedo por uma enorme abelha mamangava.
Foto: Wagner Clayton
Os pequenos sóis que estavam diante de mim quiseram falar. Eu parei para ouvi-los. Eram narrativas silenciadas. Compreendi ali um pouco da relação deles comigo e com a escola. Algumas crianças sem mãe, muitas sem pai, tendo que ser um Sol que brilha sozinho na Terra. Crianças de 5 a 7 anos que conversam sobre conselho tutelar, abandonos e desejos de ser Sol.
Na leitura de Iori descobre o sol, de Oswaldo Faustino, na verdade é o Sol que descobre Iori. Em Iorubá, Iori quer dizer “cabeça que voa alto”. Exercitamos imaginar quem era o Sol e o que ele fazia na Terra. No final dessa atividade, recebi vários sóis pintados e nomeados com nomes femininos. Sorri e falei alto: “Vocês aprenderam isso com os Macuxi?”. “Wei” significa “Sol”. Sony Ferseck me disse que, para a cultura do povo Macuxi, o Sol é uma entidade feminina². As crianças entenderam o exercício de pensar em outras formas de ser e estar no mundo. Pensaram no Sol como quem alimenta as plantas todas as manhãs e disseram: “O Sol é mãe”. Eu sorri. Nunca tinha pensado nessa possibilidade. Confluímos. Meus pequenos companheiros de jornada iluminaram mais uma vez meu caminho na Pedreira³.
Deste livro, surge a frase mais doce que li na semana: “O sol sonhava amanhecer”.
Sonhei com o Sol e partimos para a última leitura e oficina.
Taynôh, Ho Shamên Tahe, o menino que tinha cem anos, é um livro polilíngue (Puri, Guarani Mbya, português e espanhol) de Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri). A leitura foi rápida e generosa. Fomos guiados por uma água doce e profunda, conversamos sobre não plantar esquecimentos.
Durante esse encontro, sistematizamos todas as etapas da cianotipia. Depois de ter explicado tudo o que iria acontecer e os resultados que teríamos, pulei etapas e descumpri os combinados. A turma acompanhou a oficina seguindo a professora na sala escura, no Sol. Mas as impressões não saíram no papel. Letícia, de 10 anos, fez a seguinte observação: “Para que as coisas aconteçam na terra, todos os elementos precisam estar presentes. Você sensibilizou os papéis com água. Não usou os sais. ‘Tudo acontece em presença’, não é?”. “É. Tudo precisa estar presente, Letícia.”
Vitor, de 10 anos, conclui: “Então bora voltar pro escuro e começar tudo de novo”;
Começamos de novo. E quando colocamos no Sol os papéis, sem pular etapas e sem ausências, o Sol escreveu em azul nos papéis. Ali estavam nossas fotografias azuladas, retratando as folhas que colhemos no quintal.
Fotos: Wagner Clayton
¹https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2023/11/CADERNO79_PAPA_KANGUA.pdf
²Ferseck, Sony. Weiyamî: mulheres que fazem Sol. Boa Vista, RR: Wei Editora, 2022.
³Pedreira é o nome do complexo de favelas onde a escola está localizada.
25/04/2024
NO TEMPO DAS CHUVAS – por Cris Takuá
Foto: Cris Takuá
O cheiro dos pingos na terra batida
Anunciam a chegada das chuvas
Trazendo suaves brisas
Lembranças da infância
De histórias vividas
O tempo, marcador das horas
Dos momentos gravados
Sentidos na memória
Me trazem sensações
De infinita alegria
Oh Terra!
Mãe dos seres animais e vegetais
Oh vento!
Suspiro infinito do ventre do universo
Oh água !
Circula nas veias que percorrem
os caminhos na imensidão do espaço
Oh fogo!
Sagrado mestre que a tudo consome,
tudo transforma e aquece
Salve as direções que nos guiam
Aos olhos que nos orientam
E aos pés que nos sustentam
Nessa caminhada rumo ao infinito.
Foto: Cris Takuá
Cada dia que passa me animo mais a convidar os humanos a se tornarem selvagens, sentirem a delicada beleza de ser e estar em seu território em boa e bela forma. Amanhecer ouvindo o canto dos pássaros e anoitecer à beira do foguinho, contando histórias do dia que passou. A simplicidade que rodeia a vida de quem se permite ser parte da natureza é de uma grandeza muito encantadora.
O mundo acelerado do capitalismo, que transforma tudo em mercadoria, afastou a maioria dos humanos de sua essência e de sua alegria. Enquanto muitos se entorpecem de remédios para conseguir dormir, nas Tekoá, os Guarani, os Maxakali, os Ashaninka, os Huni Kuï e muitos outros parentes cantam para celebrar a noite.
Desde criança me encanto com o cantarolar das chuvas que caem, limpando a terra e acalmando os pensamentos. No tempo das chuvas, tudo se torna alegria: o cházinho de erva cidreira, o bolinho assado de milho, as brincadeiras sem fim….
Como é bom ser selvagem!
Mas a sociedade capitalista insiste em querer nos colocar etiquetas, regrar nossas mentes para esquecermos que não tem dinheiro que paga a simplicidade. Por isso, sigo na minha rebeldia de acreditar que fazer comida no fogo da lenha, usar meu cachimbo para rezar e preparar remedinhos do mato para as crianças é acreditar num futuro mais feliz!
Há tempos aprendi a desvirar o bucho de criança e isso é tão mágico! As faculdades de medicina não ensinam isso aos seus alunos, que buscam praticar a cura como profissão. Curar susto, lombriga desconfiada e tantos males que afetam as criancinhas é de uma beleza selvagem!
Assim, sigo dialogando com as chuvas, aprendendo a escutar os trovões e me direcionar nesse mundo de tantas belezas.
Foto: Cris Takuá
23/04/2024
CADÊ O RIO QUE ESTAVA AQUI? – por Veronica Pinheiro
Turma do 1º ano Roda de Leituras: A natureza que vive aqui
Foto: Professor Wagner Clayton
Os livros didáticos de história do Brasil sempre apresentaram a vida dos povos indígenas e quilombolas de forma preconceituosa. As lacunas estabelecidas, intencionalmente, nos ensino básico e superior formou, deformou e conformou gerações. Ao apagamento sistemático de produção de saberes produzido por grupos contra-hegemônicos¹, chamamos de EPISTEMICÍDIO. Quando o conhecimento científico se torna a única maneira de ler e entender a vida, fica estabelecido uma estrutura monocultural que tenta desqualificar outras formas de conhecimento.
Ouvi, mês passado, num evento de uma universidade federal, que ”somos vira-latas”. A fala veio de uma doutoranda bem intencionada que tentava explicar que a mestiçagem estrutura toda a forma de ser e existir do brasileiro. Vira-latas são SRD, cães sem raça definida, sem origem delimitada com misturas de duas ou mais raças. Com todo amor que tenho aos vira-latas, o pensamento que compara o povo brasileiro a cães sem origem delimitada é perverso do começo ao fim.
Começo a contar histórias indígenas e afro-pindorâmicas da seguinte forma:
Há quinhentos anos, não existia um povo chamado de brasileiro. Quem morava aqui (Rio de Janeiro) eram outros povos. Eram nações que falavam línguas diferentes, tinham seu próprio jeito de ser e seu próprio nome. E sempre perguntam: Quem vivia aqui?
A armadilha colonial é tão bem feita que levamos às crianças apenas as informações contidas nos livros. Fazemos isso, mesmo sabendo que os colonizadores, que tentaram identificar o nome de cada povo, criaram muitas confusões por desconhecer a língua falada ou por simplesmente preferir genericamente designar nações.
A escola onde estamos tecendo memórias está localizada próxima aos rios Acari (peixes), Irajá (cuia de mel) e Pavuna (lugar atoladiço). Os rios dão nome aos bairros. E às suas margens, além de mata ciliar, encontramos fios de memória para nossas tessituras.
No ciclo presencial AYVU PARÁ, que aconteceu no dia 31 de maio de 2023 no Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, Carlos Papá mediou aulas com saberes profundos sobre a Nhe’ërÿ (o lugar onde os espíritos se banham, assim os Guarani chamam a Mata Atlântica). Durante os dias de encontro, a caminho do restaurante onde almoçamos, Papá me fez a seguinte pergunta: “O que você está ouvindo?”
Era hora de almoço, um dia de semana na Barra Funda, São Paulo capital. Eu ouvia crianças indo ou voltando da escola, carros e ônibus na avenida Matarazzo, gente passando. Papá vendo que eu não entendi a pergunta, parou, olhou para a tampa de um bueiro e disse: “Você não ouve o rio? Tem um rio preso aqui dentro.”
Depois da escuta ser gentilmente conduzida, ouvi o rio. Sua voz era diferente dos rios que eu tinha acabado de ouvir em viagam no Recôncavo Baiano. Uma voz densa. Era tanta força e vida que eu fiquei ali por alguns minutos.
Os rios sabem de muitas coisas. Certamente eles sabem da origem de muitas coisas. Nada nesse território tem origem desconhecida. A questão é: quem estamos ouvindo? Os livros didáticos trazem informações sobre pessoas indígenas e quilombolas, porém raramente indígenas e quilombolas participam da organização dos conteúdos. Mais raro ainda é encontrar parcerias que não tratem pessoas indígenas e quilombolas como objetos informantes ou interlocutores-informantes.
Sonho com o dia que poderei, como professora, colocar nas referências dos meus textos e planejamento de aula: “palavras do Rio Acari” ou “canto do beija-flor que pousou na janela da sala”.
A lei 11.645 torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio. Na prática, os livros são a referência, e as aulas são encontros para repasses de números, dados, datas e informações sobre algo desconhecido. A história e a cultura idígena e afro-diaspórica se estabelecem em presença, não em referência. O mito ou o itã são memórias vivas de povos vivos. A corporeidade é o lugar de articulações e agências de vida. O território vibra a força da vida; sendo ao mesmo tempo corpo, chão, rio, ar e todos os seres que existem naquele lugar. Por isso, insistimos em falar de escolas vivas. Escolas de presença, com memórias vivas.
Para isso, precisamos refazer percursos. Como professora, devo estar disponível aos processos de desaprendizagens. De deseducação. Preciso criar outra relação com o tempo/bimestre/cronograma/agenda. O que fala o rio Acari me importa mais que o que contam os livros. Quando as crianças me perguntam: “Qual povo vivia aqui?”
Eu respondo: “Cadê o rio que estava aqui? Algum rio passa por aqui? Porque os rios certamente sabem mais sobre esse lugar do que os livros que li.”
A pergunta rendeu: Agora temos um projeto junto a coordenadora pedagógica da unidade para a escola e comunidade escolar. Cadê o rio que estava aqui? O que os rios dizem sobre nós?
Se você ouve rios e sabe de coisas líquidas, mais ou menos torrenciais, precisamos de você para construir percursos. Para caminhar pelas águas, temos uma canoa chamada Encantada. E nela sempre cabe mais um. Aceita o convite?
Apresentação da sala de Leitura e o 4º ano para escola: A culpa não é da chuva
Fotos: Professor Wagner Clayton
¹ Entende-se por movimentos contra-hegemônicos as práticas de resistência aos discurso de gestão dominantes que buscam contestar e escapar à disciplina da ordem do sistema capitalista. SULLIVAN, S; SPICER, A; BÖHM, S. Becoming global (un)civil society: Counter-Hegemonic Struggle and the Indymedia Network. Globalizations, 8(5), 703–717. https://doi.org/10.1080/14747731.2011.617571
18/04/2024
HISTÓRIAS QUE OS LIVROS NÃO CONTAM – por Cris Takuá
Foto: Roberto Romero
Sueli Maxakali, artista, cineasta, liderança, avó e coordenadora da Escola Viva Maxakali, passou anos de sua vida sonhando reencontrar o seu pai Luis Angujá, como é conhecido, do povo Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Eles se separaram há mais de 40 anos, durante a Ditadura Militar. Para esse reencontro, Sueli idealizou, junto com sua irmã Maiza, o filme Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá. Esse longa-metragem documental está em processo de finalização e contou com apoio do antropólogo e amigo Roberto Romero e de Tatiane Klein, antropóloga que estuda há anos junto aos Guarani e aos Kaiowá. Foi ela quem, em 2019, nas suas caminhadas pelo estado, encontrou Luis vivendo na Tekoha Laranjeira Nhanderu e comunicou Robertinho. A partir daí organizaram a primeira ligação telefônica entre eles. Na época lembro que Tatiane Klein me contou e me enviou um vídeo de Luis muito emocionado.
A Ditadura Militar causou profundas feridas nas memórias e violentou os corpos e os territórios, provocando prisões, trabalho forçado, torturas, envenenamentos e doenças. Houve ainda a proibição da língua materna entre os povos indígenas. No relatório da Comissão Nacional da Verdade consta que mais de 8 mil indígenas foram mortos nesse período, vítimas de torturas e tentativas de apagamentos de suas memórias. Os livros de história e de literatura estudados nas escolas brasileiras contam muito superficialmente o que realmente aconteceu durante os anos de ditadura. A maioria dos livros mostram, com muitas fotos, os exílios de artistas famosos, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas não falam absolutamente nada sobre o exílio, o genocídio e o etnocídio dos povos indígenas.
Em meados de 1960, no auge da ditadura militar brasileira, Luis Kaiowá e seu primo José Lino foram levados para vários lugares diferentes por agentes do estado brasileiro, finalmente chegando ao Posto Indígena Mariano de Oliveira, na aldeia Maxakali de Água Boa, em Minas Gerais. Lá viveram mais de 15 anos. Luís casou-se com Noêmia Maxakali e teve duas filhas, Maiza e Sueli, enquanto José Lino casou-se com Maria Diva Maxakali e teve quatro filhas. Porém, pouco mais de dois meses após o nascimento de Sueli, Luis e José Lino foram reconduzidos para o Mato Grosso do Sul e nunca mais voltaram. Luis tornou-se um renomado rezador do povo Kaiowá, enquanto José Lino faleceu poucos anos após seu retorno.
Foto: Tatiane Klein
Sueli e Maiza cresceram sem ter notícias do pai, mas sempre buscaram perguntar o paradeiro dele quando encontravam parentes Kaiowá. Com a chegada da notícia de Tatiane Klein sobre a localização certa onde estava vivendo Luis, Sueli, com ajuda de parceiros, organizou a viagem de encontro e a gravação de um documentário contando toda sua história. Isso estava previsto para 2019, mas com a chegada da Covid tiveram que desmarcar e aguardar.
Nesse meio tempo, em setembro de 2021, Sueli, Isael e várias famílias Maxakali resolveram retomar uma área, a Aldeia Escola Floresta, onde hoje estão. Lá cultivam o sonho de curar a terra e fortalecer a vida das crianças e jovens através de práticas educativas. Em 2022, com a diminuição nos casos de Covid, Sueli e Maiza conseguiram retomar o projeto e planejar o tão sonhado encontro. Se prepararam espiritualmente para a partida na Aldeia Escola Floresta com um grande ritual do gavião-espírito, Mõgmôka, e seguiram para o Mato Grosso Sul. Entre os dois povos, muita expectativa, emoção, histórias e memórias em meio a um processo secular de expropriação, assassinatos e devastação de seus territórios ancestrais. E mesmo com tanta violência e dor, os dois povos resistem e exibem um ritual de vida vibrante e intenso, povoado por cantos, sonhos e espíritos.
Fotos: Roberto Romero
Profundas histórias de vida e luta não figuram nos livros de história das escolas, mas estão presentes em muitos territórios indígenas. Quem quiser saber mais sobre o encontro de Sueli e Maiza com pai, em breve o filme estará em circulação e vai contribuir muito para o entendimento do que representou a Ditadura Militar para os povos indígenas.
Agradeço a Roberto Romero e Tatiane Klein, que contribuíram com fotos e narrativas desse momento tão importante para história do povo Maxakali e Kaiowá, mas também para história do Brasil.
Compartilho o link de um outro documentário feito por Isael e Sueli que conta também as violências durante a Ditadura Militar para o povo Maxakali: GRIN-Guarda Rural Indigena (Roney Freitas e Isael Maxakali 2016) – Documentário.
Foto: Alexandre Maxakali
16/04/2024
DESENHOS DA FALA – por Veronica Pinheiro
“Tem gente me ouvindo?
Quem tá me ouvindo bate uma palma.
Quem tá me ouvindo bate duas palmas.
Quem tá me ouvindo bate três palmas!”
Professores espalhados pelo Brasil lançam mão dessa quadrinha para obter a atenção das crianças para uma atividade. Como professora, muitas vezes me bastava que os alunos me disponibilizassem seus ouvidos, olhos e mãos. Existe uma tal régua que mede a eficiência de um professor e nas escolas a conhecemos pela alcunha de “domínio ou controle de classe”. Quanto mais quieta uma turma, mais eficiente é o regente. O professor em atividade é chamado de professor regente. O comportamento da turma e o desempenho nas avaliações são os critérios máximos para avaliar um professor. Por quê? Porque são pontos observados quantitativamente; são índices facilmente observáveis. Nunca vi secretarias ou programas educacionais medindo o quanto uma turma ou um professor está feliz no bimestre.
A felicidade e o bem-estar não compõem os objetivos gerais ou específicos de um planejamento escolar. Quanto está feliz o professor da turma A? Qual a turma mais feliz da escola? Felicidade é subversão em espaços de formação. A escola é uma estrutura social que representa esquemas de poder e, para isso, as pessoas que ocupam esse espaço assumem papéis sociais. Para garantir sua adaptação e permanência na função, um professor adota a máscara social do regente, se apresentando publicamente muitas vezes como um indivíduo austero. Dá um trabalho danado ser gentil na escola, sabe? Alunos não reconhecem a gentileza como características de um regente. Para eles, adultos são máquinas de dizer “não”; adultos determinam onde, quando e como.
Na prática, “uma turma boa permanece sentada em silêncio ouvindo e escrevendo”. Delicado, né? Porque um professor que tem 40 alunos em turma não consegue trabalhar se a turma não estiver sentada, né? Tudo é feito para ninguém questionar o modelo estabelecido.
Diante de toda potência dos corpos, docentes e discentes, o sistema educacional regular quer dos professores apenas voz e mãos. Dos alunos, os professores querem ouvidos, olhos e mãos.
Atendo semanalmente 14 turmas, passo 1h40 com cada uma delas. Confesso que tenho minhas máscaras sociais. Quando percebo que tenho a atenção de uma turma retiro a máscara da regente, algumas turmas entendem o código e seguimos de boa ao som de músicas, lendo, escrevendo e observando como a natureza está presente na escola. Porém, uma turma já percebeu que componho uma personagem para dar aula. Esses meninos, mais espertos que eu, não me deixam falar, eles não me emprestam seus ouvidos. Diante do desafio, busquei os recursos que tenho para termos qualidade em nossos encontros.
Levei argila para aula e pensei: “Quem sabe o contato com a terra crie um tempo de escuta de qualidade?” O processo de criar com argila está também associado a práticas meditativas de concentração plena. O tato, o contato, a interação com a terra podem promover um senso de comunidade e conexão entre as pessoas do grupo. Mas não deu certo com eles.
Tentei várias coisas. Algumas funcionaram parcialmente.
Lembrei da experiência que vivi com jovens artistas Guarani na preparação do Ciclo Nhe’ërÿ em maio de 2023. Vi quando eles cantaram e dançaram diante de uma tela em branco. Antes de pintar, eles cantaram as memórias da Nhe’ërÿ e honraram a Nhanderu com danças e palavras sagradas. Quando sentiram em seus espíritos que estavam autorizados para representar a Nhe’ërÿ com desenhos, desenharam as palavras cantadas e faladas.
Foi quando resolvi parar de ler histórias para o terceiro ano e começar a desenhar no quadro as histórias do livro. De Elias Yaguakãg, As aventuras do Menino Kawã foram desenhadas no quadro branco e, enquanto a turma ficava empenhada em reproduzir as imagens no caderno meia-pauta, eu aproveitava para contar (às vezes, ler) as histórias. Capítulo por capítulo, as palavras ganharam imagens que eram apagadas do quadro no final da aula. Percebi que as mesmas imagens ganharam lugar nos olhos, cadernos e na memória criada em aula. Um dia, esqueci o quadro desenhado e a professora de inglês da turma não entendeu os desenhos. Então eles contaram para ela sobre Kawã, o menino indígena que era protegido pela Ka’apora’ãga. A professora me procurou na hora do almoço dizendo com sorriso nos olhos: “Eles ouviram e sabem cada detalhe da história. Eles não só te ouvem, eles estão te escutando”.
Já que chamamos nossos compartilhamentos de semeadura, precisamos saber o que a terra pode dar antes de lançar a semente. Eu queria os ouvidos, mas eles são visuais. Não ia dar certo, né?
Eles escutam com os olhos!
Desenhos: construção coletiva da Turma 1401 com a professora Veronica
11/04/2024
PENSAMENTOS DE CRIANÇA – por Cris Takuá
Fotos: Alba Rodríguez Núñez
Numa manhã de céu azul e montanha iluminada, fiquei a refletir sobre a profundeza dos pensamentos que desabrocham das criancinhas. Tudo está a pensar, observar e imaginar nesse mundo de encantos e belezas.
Kauê Karai Tataendy Mindua, meu filho de 10 anos, é um pensador desde os primeiros passos de sua vida, um grande professor das sutilezas das coisas que nos rodeiam. Cuidador de galinhas e cachorros, tem um galo chamado Pirata, que ele cuida desde que nasceu e que é cego de um olho. Kauê, com muito afeto, fez curativos e hoje Pirata é um galo que comanda o terreiro com seus cantos fortes logo ao amanhecer.
Nessa caminhada junto a esse meu pequeno professor, muitos conhecimentos vou aprendendo com ele. Uma reflexão que ele me trouxe esses dias foi sobre a relação dos humanos grandes com os seres da floresta. Ele me perguntou por que as pessoas crescem e deixam de ser “delicadosos” com os outros bichinhos e plantas. Ele pensa que muitos humanos grandes perderam essa sensibilidade de escutar e conversar com os outros seres e até com os espíritos.
Foto: Alba Rodríguez Núñez
Mergulhado em suas profundas inquietações, desde criança nas caminhadas na mata, traz falas sobre tempos outros onde ele se recorda de situações e momentos da vida que a sua memória ainda alcança.
Curioso perceber a transparência lúcida da dimensão dos pensamentos das crianças, que tecem narrativas imaginárias e se encantam com as mais pequeninas coisas.
Meus dois filhos sempre me acompanharam nas caminhadas da vida, em lutas, trabalhos e articulações. Um dia fui convidada para comentar um filme sobre rezadores, xamãs de vários lugares do mundo, que seguem com seus cantos e rezos segurando os céus e equilibrando a vida no planeta. Kauê, atencioso que sempre foi, ao chegar em casa ficou comentando sobre o que viu e ouviu naquela noite e no dia seguinte pediu pra assistir o filme de novo comigo. Foi um momento forte para nós dois, pois ficamos encantados e ao mesmo tempo profundamente tocados por aquelas realidades tão distantes, mas tão parecidas com as nossas.
Passou um tempo e o vi concentrado com suas canetinhas coloridas desenhando tudo que estava pensando das nossas conversas e daquelas realidades tão profundas.
Desenhos: Kauê
Rezar para chover, rezar para continuar nevando, rezar para seguir os rios e mares com água limpas e peixes para comer, rezar para manter a floresta viva frente a tantas violências, como mineradoras, petrolíferas e um agronegócio avassalador.
Assim seguimos dialogando e sentindo a força que emana nos quatro cantos do mundo desses rezadores e rezadoras, que seguem, cada um da sua forma, resistindo para cuidar da nossa Terra tão machucada.
Que sigamos rezando e aprendendo com a delicadeza das crianças.
🐜🐜🐜🐜🐜🐜🐜🌱🌿💚
Foto: Alba Rodríguez Núñez
09/04/2024
PISANDO SUAVEMENTE NA TERRA OU PRIMEIRO BIMESTRE ESCOLAR – por Veronica Pinheiro
Colagem: Lívia, 7 anos | Aula: Eu sou natureza
Foto: Veronica Pinheiro
Chegamos ao Complexo da Pedreira, por uma escola. Temos muitas críticas ao sistema educacional que homogeiniza pensamentos e modos. A crítica é ampla, não está direcionada a professores ou a uma secretaria de educação específica. A escola de ensino regular cumpre bem o seu papel no projeto da imposição civilizatória europeia. Essa imposição traz como consequência, para os povos afro-pindorâmicos, uma distorção de identidade, uma vez que a escola nos ensina a ver por meio dos olhos do colonizador. Já disse Leonardo Boff:
“Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.”
Ao ignorar saberes e ciências que não estão contidos, intencionalmente, em seus manuais, a escola provoca um processo de desterritorialização de crianças dentro de favelas, quilombos e aldeias; e assim deslegitima os conhecimentos trazidos pelas crianças e famílias, obrigando alunos a adotar a língua e a linguagem do dominador.
Já testemunhei (como aluna, professora, coordenadora pedagógica e diretora escolar) muitas violências físicas e simbólicas cometidas dentro da escola. A violência simbólica é a violência “invisível”, que subjuga e aprisiona os sujeitos. Temos muitas críticas, no entanto não podemos ignorar que, no Brasil, crianças e adolescentes urbanizados, principalmente nas periferias, estão tão vulnerabilizados que a escola pode se tornar um espaço de construções interessantes. Então… se a escola é um lugar de homogeneização e docilização de populações, ela também pode vir a ser um lugar de ruptura.
Qual seria então o elemento disruptivo?
Cris Takuá, minha mestra, me ensina a não apostar em respostas prontas, mas na semeadura de possibilidades de transformação que sustentam mundos. Acreditamos no fortalecimento dos territórios através do acordamento de memórias recentes e memórias muito antigas. Sendo o tempo circular, o que será e o que já foi estão sensivelmente conectados. Contar histórias para acordar não é apenas para o despertamento de uma consciência sócio-histórica, mas para firmar pilares que possibilitem uma leitura de si por meio dos seus próprios olhos.
Por esses e outros motivos, não poderíamos, porém, chegar à escola simplesmente dizendo a professores e a alunos que eles precisam pensar de outra forma. Estamos construindo diálogos, vínculos e não aplicando uma proposta esvaziada de contextos. Chegamos pisando na terra suavemente. Muitos pais de alunos estudaram quando crianças na E.M.P. Escragnolle Dória e foram alunos das professoras que dão aula a seus filhos. Algumas professoras trabalham há mais de 15 anos aqui. É fundamental ouvir essas histórias.
Encerramos o primeiro bimestre animados. A professora do primeiro ano nos convidou para planejarmos juntos as atividades dos próximos bimestres, incluindo em seu planejamento a ideia de uma escola viva. Alguns professores estão acompanhando voluntariamente as oficinas das crianças na escola e as rodas de leituras. Outros me acharam no Instagram e chegaram ao Selvagem.
Diretoras e coordenadora pedagógica também começaram a sonhar conosco. Até o Sol, tema do ciclo de estudos Selvagem em 2024, passará a fazer oficialmente parte do Projeto Pedagógico Anual da escola – PPA. Não fizemos palestras ou reuniões para falar dos ciclos para a equipe pedagógica, o proselitismo não faz parte do pensamento Selvagem. Como se deu então as parcerias? Pela magia do encontro. O encontro é capaz de criar vínculos de vida de maneira orgânica, natural e confluente.
“Que possamos então nos animar
e nos animar uma vez mais,
Nhamandu pai verdadeiro primeiro!”¹
Foto: Veronica Pinheiro
¹A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani I. Pierre Clastres; tradução Níeia Adan Bonatti. – Campinas, SP.
04/04/2024
KA’A, ERVA-MATE – por Cris Takuá
Desenho: Cris Takuá
Kunhã Tatá, Doralice, foi como uma avózinha pra mim, uma professora. Ela me apresentou e me ensinou sobre a sagrada mestra da Nhe’ërÿ: a Ka’a.
Ela contava que Ka’a e Takuá eram as filhas de Nhanderu. Um dia, andando pela Terra, ele pegou um galhinho de cedro e assoprou, criando assim uma criança, que brincava e urinava por todo canto. Então nasceu um brotinho de erva mate, a Ka’á. Era uma menina e ela já cantava com takuapu. Por isso que até hoje as mulheres cantam batendo o bastão de taquara no chão.
Takuá e Ka’a foram embora com Nhanderu quando o mundo pegou fogo, a água grande veio e acabou tudo. Mas, até hoje, os Guarani têm erva mate para fazer chimarrão e taquara para o takuapu, e para trançar a palha para peneira e balaio.
Os nhe’e kuery, os espíritos que moram com Nhanderu, estão falando para os rezadores que a terra vai acabar outra vez. Antigamente já houve um período de escuridão. Não amanhecia mais, assim mesmo veio a água.
Nessa terra onde nós estamos agora, mais cedo ou mais tarde isso também vai acontecer. Se isso não acontecer, a gente não vai aguentar mais o calor aumentando, e vai vir a chuva, e vai vir yapó há’puá tatareve’gua, barro com fogo do céu.
Nhanderu acha que o mundo já está muito velho e quer limpar a terra.
Assim Kunhã Tatá nos contava, dando orientações de como caminhar pela Terra, saber respeitar o tempo, entendendo as direções do vento, das nuvens e dos trovões.
Para o povo Guarani, o tempo se divide em dois: Ara Ymã, o tempo velho, e o Ara Pyau, o tempo novo. Sempre que há mudanças dos tempos, costuma-se fazer a cerimônia da Ka’a para proteção e fortalecimento.
Agora estamos iniciando mais um Ara Ymã, tempo de concentração e resguardo. Não há uma data exata do dia em que mudam os tempos. Mas Tupã kuery, os trovões, passam avisando e os rezadores entendem o sinal e logo já orientam os tembiguai, guardiões da casa de casa, para irem colher a Ka’a.
Durante a cerimônia de consagração da Ka’a aprendemos muito, vemos muitas coisas que ela nos mostra e nos coloca no nosso lugar, nos direcionando para seguir o tempo que se inicia com sabedoria e tranquilidade.
Foto: Carlos Papá
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No meio da madrugada
Em meios aos cantos dos tarova
Concentrada no pilão
Me senti esverdejar
Era a força da mestra curandeira,
Ka’a, professora dos tempos
Filha de Nhanderu
Que lindamente eu a vi saudar
O sagrado Nhamandu Mirim, Sol,
que lentamente estava a se levantar
Com sua cauda irradiante
Amarelando todo nosso lar
opy’i, casa de rezo
Nossa escola viva a bailar
Ensinando e aprendendo
Assim seguimos a caminhar.
🌿🌿🌿🌱
Fotos: Cris Takuá
02/04/2024
TEMPO E AMOR – por Veronica Pinheiro
Imaginemos partículas no espaço.
Cada partícula é um ponto de energia.
No entanto, nada existe em si só,
tudo existe porque há uma dança.
Neste cosmos flexível,
cada corpo que irrompe
é um novo desenho e
transforma tudo ao redor.¹
Anna Dantes
Em minha casa, aprendi que para se educar uma criança é preciso uma comunidade.
“nada existe em si só”
Poder voltar à escola como comunidade, pertencendo e trazendo comigo a comunidade Selvagem, me coloca noutro lugar, um lugar expandido. Trabalhei como professora em escolas, durante muitos anos fui repreendida por trazer afetos e sorrisos na mesma mochila em que trazia os livros. Nasci e fui educada em comunidade. Aprendi em casa a amar com as mãos; trabalhávamos cantando e cuidando uns dos outros. Meu avô Antônio ensinou a meu pai que o canto espanta os medos e protege a casa. O cuidado com as crianças era compartilhado. Compartilhada também era a água, a comida, as dores e as alegrias.
Uma vez ouvi que eu era feliz demais pra quem trabalhava como professora em escola pública. A observação veio de uma outra professora. Na ocasião, ela estava responsável por organizar o quadro de horário e os tempos de aula de todos os professores. Naquele ano, eu conseguia cumprir toda minha carga horária em três dias por semana. No entanto, após o observado, fui colocada para trabalhar cinco dias por semana de 7h às 17h. A punição era passar mais tempo na escola. Repleta de tempos vagos, aproveitei para conhecer melhor meu local de trabalho. Foi assim que eu aprendi a observar alunos, funcionários e todas as vidas que compunham uma unidade escolar. Ali nasceu uma companhia de teatro com os alunos do 6° ano, fruto de tempos vagos preenchidos com poemas e canções.
Na tentativa de punir afetos, recorreram ao tempo. Porém, na seara de Iroko, o tempo não é castigo. Tempo é força. Iroko é a própria representação da dimensão do tempo, pouco conhecido dos seres vivos e mortos, nascidos ou por nascer. Guardião da ancestralidade, Iroko rege os tempos e fortalece os vínculos entre o passado e o presente. Iroko é a primeira árvore que se fez plantar na Terra. Para os que descendem dos bantos, equivale ao Inquice Kitembu: o vento transformador e a árvore o corpo do tempo.
Volto à sala de aula em outros tempos, volto com uma comunidade aquilombada, prenha de seres e sonhos. São tempos de dança. Tempos de afetos largos. Afetos acolhidos. Vejo na Escola Municipal Professor Escragnólle Dória que, aos poucos, crianças, funcionários, professores e equipe diretiva se permitem entrar nessa nossa dança Selvagem. Ousamos despertar memórias guardadas pelo tempo. Estamos escrevendo bilhetes ao vento transformador; a pedreira onde se localiza a escola já foi conhecida como o “Morro da Ventania”. Através da arte, criamos diálogos sensíveis na tentativa de acordar nos seres urbanizados que somos a natureza que também somos.
Nesse universo que se chama escola, minha comunidade Selvagem dança expandindo vida. Afetando e sendo afetada. Minha comunidade me respalda.
“Enquanto o universo se expande, o amor aglutina.”²
Foto: Veronica Pinheiro
NOTAS:
1 e 2 Caderno Selvagem – Flecha 6, Tempo e amor
https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2023/10/CADERNO49_FLECHA_6.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=PeMBCABxXCQ&t=620s&ab_channel=SELVAGEMciclodeestudossobreavida
28/03/2024
CONSTELAÇÃO DE SABERES – por Cris Takuá
Foto: Vhera Poty
Nos processos educativos, e não só neles, mas também nas relações humanas, sinto a falta do afeto e da concentração, do cuidado e da atenção!
Com isso percebo que a instituição escolar não está fazendo sentido! Esse modelo de escola que prioriza a escrita, a leitura, os números, uma enxurrada de informações efêmeras, vazias de sentidos poéticos e práticos na vida das crianças e dos jovens.
Tenho pensado e sonhado com as Escolas Vivas, que valorizam o potencial de cada um em sua delicada essência. Que dialogam sobre valores de ser e estar nos territórios de forma bela e equilibrada. Que falam das artes, falam de cura, dos cantos e encantos dessa vida que pulsa a cada novo amanhecer.
Durante doze anos, eu fui professora na escola estadual indígena em minha comunidade. Foram anos de lutas e desafios, uma constante busca de equilibrar a dureza e a beleza nessa longa caminhada. Professora de filosofia que fui, mas também de história, sociologia e geografia, sempre gostei de desenhar, sair e caminhar com os alunos, ver a floresta, escutar e aprender para além dos livros.
E nesse percurso fiz parte de um processo muito forte de busca por direitos para garantir a formação dos professores indígenas numa licenciatura intercultural indígena.
Para isso, formamos um grupo de trabalho e, durante dois anos, ficamos dialogando, debatendo e construindo o PPP, o Projeto Político Pedagógico, para o curso. Nesse processo do GT que deu origem ao PPP da licenciatura que sonhamos, desenvolvemos o conceito da “constelação curricular”, para fugir da ideia de grade, onde todos os saberes ficam divididos, fragmentados e presos.
Pensar um céu que produz conhecimento e, a partir daí, fazer a articulação entre saberes e fazeres será o grande diferencial dessa formação que vai trazer muito fortalecimento para os territórios indígenas de São Paulo. O curso será organizado no tempo de alternância, o tempo-universidade e o tempo-comunidade.
Após muita luta, em março deste ano foi dado início ao curso de formação pela Unifesp de Santos, momento histórico para os povos indígenas em São Paulo.
Fui convidada a dar a aula inaugural junto a Carlos Papá no primeiro dia da licenciatura. Foi um momento muito especial, pois, estando fora de sala de aula há dois anos, pude trazer uma reflexão sobre as minhas inquietações sobre a escola, a monocultura mental e os desafios que vivi nos tempos em que dei aula e, ao mesmo tempo, lutei intensamente para garantir um processo formativo que respeitasse o tempo de cada cultura.
Durante o tempo-comunidade, cada aluno da licenciatura tem que fazer estágio com orientação de um professor, que pode também ser um líder espiritual, um conhecedor da cultura ou algum membro da escola local. Para a minha surpresa, um jovem aluno me fez a proposta de ser a orientadora dele junto a Escola Viva Guarani e o coordenador Carlos Papá. Esse momento é transformador para a educação e o fortalecimento das memórias ancestrais.
As Escolas Vivas desabrocharam como um sopro de inspiração, uma semeadura multicolorida para ativar as energias de mestres, que estão muitas vezes cansados dos desafios constantes. Esperamos que, a partir do caminhar coletivo, se animem a tecer juntos tramas de narrativas, saberes e possibilidades de sonhar mais.
Desenho: Fabiano Kuaray
26/03/2024
“NA FLORESTA, EU CONSIGO FECHAR OS OLHOS” – por Veronica Pinheiro
Desenho colorido por Manuella 10 anos
Oficina 1 – O sol e floresta
Quando conectamos os seres urbanos que somos com a natureza que também somos, pegamos o caminho de volta pra casa. Voltar é um movimento tão importante quanto ir. É comum na educação falarmos de “progresso”, “avanço” e “desenvolvimento”. Parece que a vida é um movimento só de ida.
“Investir no seu desenvolvimento, com um olhar atento para o processo de aprendizagem de todo e de cada aluno é fundamental para construir trajetórias de avanço”¹. Desenvolver para avançar, Secretaria de Educação Carioca.
Numa proposta contracolonial de ensino, dizemos que desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Afirmamos que nosso caminho é de envolvimentos.
Na busca de práticas de envolvimento, nossas oficinas de Aprendizagens Vivas evocam saberes e fazeres presentes no cotidiano e na memória. Entendemos que a corporeidade é o lugar de registros e agência, onde se articulam e se transmitem mundos. Pensamos em oficinas sinestésicas (sons, aromas, texturas, sabores e saberes), que, a partir da expressão artística, buscam possibilitar um espaço de envolvimento, criatividade e despertamento de memórias.
De onde venho, dizem que arte é a conversa das almas; por isso, cantamos enquanto trabalhamos e dançamos enquanto lutamos. A arte e sua potência de convocação de um corpo coletivo pode, pela liberação dos sentidos, romper espaço e tempo. Romper espaço e tempo na tentativa de conectar seres urbanizados que somos com a natureza que também somos.
Nossa primeira oficina na escola aconteceu em dia de operação policial na comunidade. Fazenda Botafogo é uma região conhecida pelos altos índices de roubos de cargas e tráfico de drogas e animais silvestres. Romper com tempo e espaço era tudo o que eu queria naquele dia 14 de março. Começamos falando do sol e da selva. No dia anterior, nós tínhamos andado pela parte de trás do quintal da escola para ficar embaixo das árvores e ver de onde vinha a argila. Muitos não sabiam o que era argila, vários não sabiam do que era feita a argila. Ryan explica pra turma:
– Argila é a massinha de terra.
Distribuídas argilas de muitas cores aos alunos, pedi que eles ouvissem a história com a argila nas mãos e que tentassem modelar com os olhos fechados. As mãos precisariam seguir o que a música falava. A oficina foi realizada com turmas do 2° ano do ensino fundamental (crianças com 7 anos de idade), as mesmas turmas que apresentam dificuldades em sentar para ouvir minhas aulas.
Duas semanas antes, eu havia tentado uma atividade que pedia para que fechassem os olhos e quase nenhuma criança da turma conseguira; o incômodo entre elas foi tamanho que pesquisei sobre o tal medo do olho fechado. “Nictofobia, medo irracional do escuro”. No caso das crianças da escola, o medo do escuro não é irracional; desde pequenos são ensinados a estar atentos e vigilantes. Os perigos são reais.
No dia da oficina, no entanto, sentados e com a argila nas mãos, caminhávamos em pensamento pela floresta. Enquanto as almas conversavam, ouvi a seguinte frase:
– Na floresta, eu consigo fechar os olhos.
Depois disso, não lembro de muita coisa.
Foto: Professor Wagner Clayton
¹Coordenadoria de Ensino Fundamental Habilidades Curriculares 1º Bimestre 2024 Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura do Rio de Janeiro
21/03/2024
NHE’ËRŸ FLORESTA VIVA – por Cris Takuá
Foto: Edu Simões
Nhe’ërÿ floresta viva
Nela habita um portal de conhecimento
E memórias ancestrais machucadas pela monocultura mental
Da colonização capitalista
Que tenta transformar tudo em mercadoria
Nhe’ërÿ morada de saberes e encantos
Onde os espíritos se banham
Onde a vida de muitos povos teceu formas de resistência
Com cantos e rezos sagrados
Todos os seres que habitam na Nhe’ërÿ
A árvore, a água, o coração em nosso corpo,
tudo pulsa.
Através do pulsar a gente se emociona, sente que está vivo.
O pulsar de cada artista da floresta gera um ser, gera um pensamento.
A floresta Nhe’ërÿ nos convida para acordar o pulsar.
Nós estamos sempre aprendendo,
a cada dia estamos aprendendo uns com os outros.
Juntos, mesmo à distância, estamos pulsando numa mesma energia
De espalhar sementes, diante desse desequilíbrio, do sofrimento da terra.
É esta cosmovisão e poética da vida que nos guia
E nos fortalece a cada novo dia.
Rezadores seguem entoando as boas e belas palavras para acordar
Despertar
Animar
E acalmar os espíritos que nos rodeiam.
A cada novo amanhecer o Sol, Nhamandu Tenonde
Segue a nos iluminar e aquecer
Honrando as criancinhas
Que, com sua pureza e delicadeza, seguem insistindo em nos reensinar a praticar o Bem Viver.
Fotos: Carlos Papá
19/03/2024
APAGA QUE TÁ FEIO! – por Veronica Pinheiro
Sala de leitura, livro 3
Leia os trechos a seguir em voz alta:
“E não era muito inteligente também. Ele tinha construído a casa de palha. Dá para acreditar? Quero dizer, quem tem a cabeça no lugar não constrói uma casa de palha.”
“Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”
“Esse era um pouco mais esperto, mas não muito. Tinha construído a casa com lenha.”
“Então fui até a casa do próximo vizinho. Esse sujeito era irmão do Primeiro e do Segundo Porquinho. Devia ser o crânio da família. A casa dele era de tijolos.”¹
Será que a história dos três porquinhos ocorreu daquele jeito mesmo? E se o lobo resolvesse contar a coisa toda do seu ponto de vista?
O lobo contou e ficou pior. Publicado pela Companhia das Letrinhas, o livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, é um livro infantil que compõe o acervo das salas de leitura das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. Só na escola em que trabalho são 32 exemplares. Uma turma de Ensino Fundamental 1 tem em média 32 crianças, portanto se trata de uma obra recomendada para ser lida em classe. Além disso, em 2013 e 2014, o texto foi colocado nos cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação carioca, suprimindo alguns trechos que classificam como ignorantes os sujeitos que constroem casas de palha ou lenha. Porém, nas duas edições do material pedagógico destinadas às crianças do 4º ano do EF aparece o trecho “Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”
O livro A verdadeira história dos três porquinhos deveria ser um texto para inocentar o Lobo Mau. A intenção descrita no livro é trazer ao conhecimento do leitor que o lobo foi vítima de armação. No formato de um diário, o lobo fala sua versão da estória; e fico triste que ninguém tenha sinalizado: apaga esse trecho, tá feio. Pelo contrário, o desabafo do lobo foi escrito, revisado, publicado e distribuído para crianças do ensino fundamental.
Gostaria de trazer novamente uma informação que aparece no diário da primeira semana: a Pedreira, favela onde está localizada a escola em que dou aula, possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Ao caminhar pela estrada principal do bairro vemos muitas casas de lenha.
Foto da Estrada de Botafogo. Acervo Pessoal Lenon Suhett, Pesquisa Geografia e Comunidade Escolar
(Lenon e Veronica foram diretores de escola juntos de 2019 a 2021)
A verdadeira história dos três porquinhos fere diretamente as crianças, a comunidade e as populações tradicionais que, manifestando abundância, conhecimentos ancestrais e relação com a terra, constroem suas casas com palha, lenha e terra.
Carter G. Woodson fala que o sistema educacional eurocentrado está a serviço da deseducação do negro estadunidense e convoca a população negra a desenvolver e executar um programa próprio. Ler o diário de um lobo me fez lembrar do professor Woodson e pensar que precisamos de práticas educacionais decoloniais efetivas e não instagramáveis.
Foto de casa na Aldeia Guarani Rio Silveira. Acervo pessoal de Veronica Pinheiro
Ao longo do trimestre, vamos construir nossa casinha com bambu, palha e argila. As crianças precisam saber que o que o lobo chama de “pouco inteligente” chamamos de conhecimento tradicional, bioconstrução, e que é preciso saber muita coisa para se levantar uma casa sem comprar nada. Povos indígenas e quilombolas conhecem muito sobre solo, plantas, sabem onde o sol nasce e onde fica a lua em relação à casa construída; e tudo isso é sobre relacionamento. Recontaremos histórias, ativaremos fazeres, saberes e memórias.
Que o sol nos ajude nessa caminhada.
O lobo já deixou escrito o que ele pensa. Não esperemos nada dele.
Casa no quilombo São José. O quilombo São José existe há cerca de 150 anos e está localizado na cidade de Valença (RJ).
É uma comunidade de descendentes de pessoas escravizadas que vieram da Angola e do Congo, atualmente cerca de 200 quilombolas
moram no local e suas casas são feitas de adobe, pau-a-pique e telhado de palha.
Foto: Acervo pessoal de Veronica Pinheiro
¹SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.
14/03/2024
O QUE SEGURA OS CÉUS? – por Cris Takuá
As palmeiras nativas da Nhe’ërÿ sustentam os céus desde a origem de criação do mundo e dos seres que nele habitam. O céu azul que hoje existe reflete as folhagens das palmeiras azuis que, no início do mundo, fizeram essa transição entre os mundos que habitamos.
Existem muitas palmeiras que, com sua beleza, suas palhas, frutinhos e sombras, vêm encantando e sustentando a vida aqui em meio à floresta.
Em fevereiro, organizamos na Escola Viva Guarani uma oficina para produzir junto dos jovens os desenhos de algumas espécies de palmeiras para compor a exposição Mba’é Ka’á, o que tem na mata: Barbosa Rodrigues entre plantas e pajés, que acontece entre 08 de março e 08 de setembro, no museu do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.
Coordenada por Carlos Papá, a oficina proporcionou uma leitura e observação atenta do livro Sertum Palmarum Brasiliensis, de J. Barbosa Rodrigues, e também caminhadas na floresta da Aldeia Rio Silveira, para ver e reconhecer as palmeiras que estão ao nosso redor.
Foram dias de muita animação e escutas, através das histórias contadas por Papá sobre a importância das palmeiras para o equilíbrio da mata e para a sustentação dos céus que habitamos desde o início do escuro originário.
Algumas crianças, acompanhando seus pais, criaram também desenhos que refletiam suas percepções das palmeiras que observaram e, juntos, criamos uma linda apresentação de 10 espécies.
As palmeiras azuis
São seres espirituais
De um mundo cosmológico
Que nos mostram os portais
Entre os mundos.
Na floresta existem seres nativos
Jataí, Jussara, Jerivá
Guaricanga, Brejaúba, Butiá
Jejy ró- amargo, Tuku, Indaiá
Espécies de palmitos
Palmeiras
Que alimentam e encantam
Sombreiam nosso caminhar
Cobrem casas
E revestem a floresta
De um esverdear profundo.
Nhe’ërÿ terra das palmeiras
Que seguem sustentando nosso caminhar
Nessa terra
……..Cristine Takuá……..
Desenhos produzidos na oficina Guarani, 2024
12/03/2024
AQUELA TIA ALI VAI CONVERSAR COM VOCÊ – por Veronica Pinheiro
Na primeira semana de aula, minha função era acolher os que choravam. Achei graça. Depois entendi o tamanho da responsabilidade. Meus pequenos companheiros falavam de uma tal dor na barriga e, além das lágrimas, traziam nos olhos o desamparo.
Ao recebê-los, eu dizia que ficaria ali o tempo que fosse necessário. Perguntava onde o medo estava. E as mãozinhas iam direto para a barriga. É fome? Para alívio do meu coração, as respostas foram todas negativas. Surgia então a última pergunta: eu acho que vi medo nos seus olhos; você tem medo de quê?
De maneira geral, o processo de escolarização desterritorializa dentro do território. Deixa a identidade da criança em segundo plano, determina o que é importante ou não para se saber, determina o que comer, como se vestir, distância o sagrado e impõe novos modos de vida. O tal do conhecimento universal, os conhecimentos básicos e o ensino fundamental norteiam os currículos. Aos poucos, um indivíduo vira uma classe; aos poucos, os corpos são docilizados. E quando menos esperamos… todos os desenhos são pintados dentro da linha.
São tantos os complicadores sociais que a escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana, invadindo aldeias, quilombos e periferias como braço do Estado. A escola apresenta o mundo às crianças. E para muitos, em muitos lugares, é a única instituição habilitada para transmitir conhecimento. No entanto, se existe um pensamento que norteia, se o mesmo está a serviço do colonialismo para sujeição dos sujeitos e adormecimento das memórias… deve haver um pensamento que suleia.
Sugiro que busquemos sulear os modos de se estar na escola. Criemos ambientes seguros para professores e crianças pintarem fora das linhas que contornam os desenhos. Aceitemos o bagunceiro e seu corpo insubmisso. Penso que, durante o processo de suleamento, as memórias de vida e princípios de sustentação dos territórios serão despertados. Sulear é pluriversalizar os modos de existir e se relacionar com a vida.
De certa forma, aquelas crianças, que choraram na primeira semana de aula, sabiam que precisariam deixar, além da casa, um tanto de si pra fora dos muros da escola. Sei que alguém vai dizer: Mas algumas crianças vão sorrindo! É, eu sei, e essas me preocupam mais.
07/03/2024
RESISTIR PARA SOBREVIVER – por Cristine Takuá
Os jovens estão buscando encontrar a essência de sua missão, deixada por Nhanderu no momento do parto, quando chegam a esse mundo de imperfeição. Ao longo dos tempos, muitos estão se esquecendo deste compromisso que foi destinado a cada um e, ao crescer e se desenvolver, vão trilhando uma maneira triste de viver, o caminho do Teko vai (a má e feia forma de ser e estar no território), diferente do Teko Porã, que é o Bem Viver, a boa e bela forma de caminhar, de estar em equilíbrio na vida.
Com isso a depressão, a preguiça, o suicídio e formas descompassadas de se colocar no mundo têm aumentado muito entre jovens indígenas. Reflexo de uma histórica trama de violências inconstitucionais e de feridas nas relações humanas. Se desfazer desses emaranhados de desequilíbrios depende muito de uma teia de afeto e cuidado.
As casas de reza são espaços coletivos de cura e convivência, são escolas ancestrais em que, através das práticas e da presença dos rezadores e das rezadoras, vamos reaprendendo a nos colocar no mundo, a lidar com as dores e desafios. As plantinhas, mestras do caminho profundo, nos ensinam a nos equilibrar entre a beleza e a dureza da vida, e assim desacelerar as duras e pesadas pegadas que muitos vêm deixando na Terra.
Nhamandu Mirim, o Sol sagrado, todas as manhãs se levanta para nos iluminar e para que tenhamos força e coragem.
Assim seguimos….
Depois da tormenta vem a calmaria
Depois da tempestade o arco íris brota
No entardecer
Sinais de mudanças e transformações
Sinalizam o renascimento da matéria
Espíritos cantantes voam na lua cheia
Espalhando mensagens de amor
A pequenos seres pensantes
A vida é feita de escolhas
Sendo cada caminho modelado
Por nossos anseios
Cada destino direcionado
Pelos seres sagrados
Momentos de tormentas nos revelam
Que há a necessidade de metamorfosear
Nossa relações, nossos passos
Nessa jornada da Vida
Não basta engrandecer a matéria
Temos que remodelar a alma
Cuidar com zelo e carinho
Para ultrapassar as barreiras
Do desconhecido
E mergulhar no universo multicolorido
Da sábia ensenhança
Que habita para além das aparências
Do sorriso de criança.
Busco o silêncio
Das profundas cantigas
Um suspiro pra alma
Um descanso pra mente
Pra seguir os caminhos dos sonhos meus…
……..Cristine Takuá……..
05/03/2024
A CAMINHO DA PEDREIRA – por Veronica Pinheiro
Chegamos à Pedreira. Um complexo com o menor IDH da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Chegamos ao antigo Morro da Ventania, onde o vento corria solto e falava alto. Dizem que quando o vento assobiava na Pedreira, nada mais se ouvia. O Morro da Pedreira está localizado no Bairro de Fazenda Botafogo, entre Pavuna, Costa Barros e Acari. Curiosamente, o vento não fala mais naquele lugar. Os escombros de uma antiga senzala, um cemitério de escravos, alguns troncos de tortura e uma pedreira desativada são as camadas mais recentes sob o solo desse caminho que começamos a trilhar.
Uma antiga linha de trem cortava a mata densa da fazenda Botafogo. O trem expresso transportava, na década de 1970, pessoas à procura de trabalho e de um novo lar. Estas histórias ainda são ouvidas no território: “Cheguei na Pedreira em 04 de setembro de 1970. Até aqui, eu morei em outros lugares. Vim do Espírito Santo, mas sou de Minas Gerais. Vim com marido e seis filhos”, diz dona Geralda, uma das primeiras moradoras do complexo da Pedreira.
Mapa da Pedreira – João, 6 anos
O trem transformou o lugar onde o vento cantava numa intersecção de corpos-territórios. Corpos em trânsito confluíram, se fortaleceram e construíram uma comunidade. “Quando a gente confluencia, não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende”, diz Nego Bispo em seu livro A terra dá, a terra quer (Ubu Editora, 2023). A confluência é uma força que amplia. Esta força trouxe o Selvagem até aqui. Uma confluência solar: Sol, vento, pedreira, memórias guardadas na terra e trazida nos corpos. A corporeidade é um lugar de registros e agência, nela se articulam e se transmitem mundos.
Nosso caminho na Pedreira é junto à Escola Municipal Professor Escragnolle Dória, para nós, Casa das Crianças. Acreditamos na confluência dos corpos – discentes, docentes, plantas, cores, vento, Sol. Em 2024, iniciamos um percurso sobre aprendizagens vivas dentro de uma escola. A sala de leituras da escola será nosso núcleo de irradiação Selvagem. Lá receberemos 439 crianças por semana e 19 professores por mês. Serão 200 dias letivos; 8 oficinas de artes (para crianças e professores) e um grande encontro festivo no final do ano. Na mediação desse movimento, estarei como professora das rodas de leituras e como coordenadora das atividades de artes. Em 10 dias de aula, já passamos por tantas coisas: de medo de bate-bola no bailinho de carnaval a medo de bala perdida durante o turno escolar. Já lemos 2 livros, choramos, sorrimos e brincamos também.
Nesse percurso Selvagem, compartilharemos com crianças e professores reflexões para a construção de uma escola viva. Compartilhamos uma outra forma de ser e estar no mundo, lembrando que a vida e o bem viver devem fazer parte do cotidiano escolar. Não estamos a serviço da educação. Para além de cumprir uma diretriz nacional¹, subimos a pedreira ativando memórias, saberes e fazeres. Um percurso solar para sentir, ouvir, criar e brincar. Seguiremos por aqui semeando palavras, mudas e mundos. Guiados pelos ventos, estamos sob a luz do Sol, a serviço da vida.
¹ A Lei nº 11.645, de 10 março de 2008 torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores, as licenciaturas.
07/10/2024
CARTA A CRISTINE TAKUÁ – por Veronica Pinheiro
Saúdo sua existência,
Agradeço aos Guardiões que cuidam de você no caminho.
Leio suas palavras sempre ao amanhecer, junto ao nascer do Sol. Quase um rito. Ando concentrada como as mestras Formigas, carregando o necessário, confiando no caminho e em quem foi na frente. Suas palavras são como o abraço e os rezos de Dona Cassiana: elas me acolhem e fortalecem. Quando criança, eu tinha os pés voltados para dentro, Dona Cassiana rezava meus pés e meus tornozelos para que ficassem fortes e não vacilassem no caminho. Saiba, minha amiga, que meus pés e tornozelos vacilam menos no caminho desde sua chegada.
O caminho se faz caminhando e, no caminho feito, tenho encontrado pessoas disponíveis para pensar e construir futuros possíveis. Penso que aprendemos e ensinamos continuamente, logo todos precisam se envolver nos processos de aprendizagens, não apenas professores, pais educadores e escolas. O que um arquiteto está ensinando quando constrói uma escola? O que um médico está ensinando quando atende uma pessoa sem olhá-la nos olhos e receita um medicamento sem examiná-la? O que um restaurante está ensinando quando pede que um cliente se retire porque sua aparência está assustando os outros clientes?
A vida acontece numa teia de relações continuadas. E os humanos escolheram se relacionar com a vida de uma forma que gera muitas frustrações e entristecimentos.
Meu mestre Nego Bispo dizia: “Eu não sou humano, sou quilombola. Vivo de envolvimento e compartilhamento. Convivo com serpente, rato, morcego, sapo, peixe, flor, árvore, pedra. O humano não convive nem com ele mesmo.”
Uma vez que posso desejar não ser humana, posso também viver em abundante relação com tudo o que existe. E duas forças me animam nesse processo: a alegria e o encantamento. Ao contrário do que alguns pensam, uma pessoa alegre e encantada não é uma pessoa inocente ou alienada. Uma pessoa alegre e encantada é uma pessoa imune aos males causados pelo processo civilizatório. Por isso, brinco com as crianças, leio e conto histórias; quero que elas sejam felizes. Nas frestas das durezas implantadas pela monocultura de pensamento, estamos semeando uma escola viva, assim como as formiguinhas que pegam sementes e as enfiam em rachaduras nos galhos das árvores. Esse sistema civilizatório engessado está cheio de rachaduras, se não conseguimos derrubá-lo de uma vez, podemos enfraquecê-lo. E a melhor forma de enfraquecer a monocultura de pensamento é fortalecendo nossos territórios e toda vida que nele habita. Vamos semear escolas cosmológicas, com muitas narrativas orgânicas, verdes e amorosas.
Sonho e trabalho para que, nos próximos ciclos de aprendizagens, mais pessoas se encorajem a ser gente-formiga. Muita gente fala sobre a relação com a vida e não se relaciona nem com outros humanos. Aprendizagens se vive, né? Sonho que todos se comprometam de fato com a felicidade das crianças do nosso país e do mundo. As mestras formigas ensinam sobre cooperação: elas trabalham e se organizam coletivamente, colocando a inteligência e o esforço de cada uma em prol do coletivo. Sonho com dias em que ser formiga vai ser o bastante para muita gente.
Um abraço de formiguinha,
Veronica
30/09/2024
CARTA A CRISTINE TAKUÁ – por Veronica Pinheiro
Olá, querida Cris.
A vida, por aqui, ficou muito mais feliz desde que conheci você. Ter você por perto nessa jornada é um grande presente.
Na escola, estamos bem. Parece que entramos num novo ciclo, um tempo de vida. Mesmo cansados, estamos mais felizes do que no início do ano. Passei os últimos dias pensando nas palavras da mestra Creuza Krahô sobre os resguardos e os tempos. Essas palavras chegaram no exato momento em que eu reconheço que preciso voltar a me relacionar, com sabedoria, com os resguardos de tempos e com o Tempo.
Nesses movimentos de acordamento de memórias, minhas memórias e as memórias de meu povo tecem diálogos profundos comigo e com as crianças.
O lugar mais sagrado que encontrei nesses últimos tempos é ao lado das crianças. A intersecção dos tempos se dá sobre elas.
Lá em casa, o Tempo tem nome e corpo: Iroko. Tempo é força. Iroko é a própria representação da dimensão do tempo, pouco conhecido dos seres vivos e mortos, nascidos ou por nascer. Guardião da ancestralidade, Iroko rege os tempos e fortalece os vínculos entre o passado e o presente. Iroko é a primeira árvore que se fez plantar na Terra. Dona Cassiana, a anciã que me rezava quando criança, dizia que a árvore é o corpo do tempo. Ando pensando em tempos e árvores.
Quase não há árvores no caminho que faço da minha casa até a escola. Tiraram as árvores e, consequentemente, deixamos de ver o corpo do tempo. E, se não o vemos, começamos a esquecê-lo. Esquecendo, perdemos a relação de cuidado com ele.
Foi por você que conheci o Xamoi Alcindo Wherá Tupã. Ele afirmava que desaprendemos a ouvir as árvores. Nessa correspondência, quero apresentar a você as árvores que me guardam no caminho à escola. Dos perigos e precariedades, já falei em outros textos, quero falar das árvores.
Quando você chegar no marco de Costa Barros, colado à linha do trem, avistará o canto mais verde de todo o caminho. Esse canto verde é uma encosta habitada por algumas pessoas, muitas árvores, pássaros e gambás. Há um quintal no alto, visível a todos que passam, repleto de frutíferas, onde um Abacateiro jovem guarda a entrada.
Seguindo pela estrada de Botafogo no sentido metrô, minha amiga, Mungubas e Oitis lhe acompanharão fazendo um lindo corredor verde. Haverá perigo no chão, coisas que podem lhe assustar os olhos, mas tente olhar as árvores. Você passará por Aroeiras cheirosas, Lucenas e Amendoeiras Sete-Copas jovens e adultas. Quando à sua esquerda avistar uma Gameleira Anciã, sorria para ela, ela ficará feliz ao te ver. Para o povo de axé, a Gameleira é Iroko que faz ponte entre o Ayê, a terra, e o Orum, o céu. Ela é a árvore-corpo do tempo.
Ao avistá-la, olhe para a direita, suba a esquina cercada de Boldos perfumados. O Algodoeiro lhe receberá na porta da escola. Estaremos lá, as crianças e eu.
Que você possa vir em bom tempo.
Aguardamos sua vinda com barro nas mãos e verde nos olhos,
Verô
23/09/2024
A SABEDORIA DOS SÍMBOLOS AFRICANOS – por Veronica Pinheiro
Adinkras: oficina de pintura e criação de jogos de cooperação
“Quem sabe de onde veio não se perde no caminho.” Todas as vezes que meu pai me levava à rua repetia esse provérbio. Ele me treinava para reparar no caminho. “Não se distraia no trajeto.” Ao chegar no lugar desejado, eu era perguntada sobre o que tinha visto e se eu saberia voltar. Quando eu falava sobre a cor de um muro ou que tinha visto um pipoqueiro, meu pai falava que eu deveria prestar atenção em coisas permanentes, como uma grande árvore ou um comércio de itens de primeira necessidade. Deveria também prestar atenção no formato do muro, no desenho das grades e não somente nas cores, porque as cores poderiam mudar e o pipoqueiro poderia não estar lá na volta.
Fotos: Veronica Pinheiro
Minha avó nasceu livre, em 1910. Mas a mãe de minha avó nasceu num tempo em que pessoas eram vendidas no Brasil como mercadoria. Nossas histórias eram um quebra-cabeças incompleto. Cada informação era preciosa: rezas, ritos, rodas, receitas. Meu pai sabia que era importante observar as grades, eu e ele achávamos que o motivo era o fato de que quase ninguém mudava as fachadas, porque as ferragens das fachadas eram muito caras. Meu pai e eu perdemos algumas informações importantes ao olhar as grades: elas poderiam conter símbolos africanos com mensagens importantes. Muitos africanos que vieram para o Brasil eram exímios ferreiros. Os africanos escravizados traziam consigo conhecimentos e tecnologias. Dentre os saberes estava o conhecimento da metalurgia do ferro na África Ocidental, conhecimento que influenciou de forma relevante as relações sociais e econômicas dessa população na diáspora. Isso ninguém conta para as crianças!
As tecnologias trazidas no corpo se articulavam com as memórias sagradas de relação com a vida. O ferro, por exemplo, não era um recurso natural, mas um ser guardado por Gu, um ancestral muito antigo. Gu, o deus ferreiro, ensinou os homens a forjar o ferro. Os ensinamentos de Gu expandiram as formas do povo Fon, reino de Daomé, no Benin, a se relacionar com a terra e com a vida. No Brasil, Gu aparece como Ogum – representante da coragem, da tecnologia, do trabalho árduo, da caça, da agricultura, do ferro e, se for preciso, da guerra. Os conhecimentos e a relação com a metalurgia eram orgânicos, sagrados e estruturantes de uma cosmologia. Porém, o eurocolonialismo, que nunca respeitou a vida e a existência dos seres, além de sequestrar e escravizar pessoas africanas, viu nessa relação mais uma forma de enriquecer e ferir a Terra com a extração do ouro.
Rodeia… Rodeia… Rodeia, meu Santo Antônio.
Essa volta é para falar da sabedoria dos símbolos presentes nos Adinkras, comunicação gráfica, trazidos de Gana. Agora que escrevo percebo o quanto rodeio para falar de um assunto. Não sei como isso funciona para as crianças. Mas ainda não aprendi a ser de outra forma.
O território que hoje conhecemos como Gana foi uma região conhecida como Costa da Mina (Togo, Nigéria, Benin e Gana), os africanos escravizados trazidos dessa região pertenciam aos povos Fanti, Ashanti, Ewe, Fon, Egbe, Yourubás e Ibos. Eles ficaram conhecidos no Brasil como “negros de mina”. Homens de sabedoria e conhecimento tão relevantes que se comunicavam com seus parentes através dos símbolos nas fachadas das casas e nas peças criadas com ferro. Até hoje encontramos os símbolos Adinkras nas grades de portas e janelas no Rio de Janeiro. Para além de uma opção estética dos ferreiros, os símbolos comunicavam que ninguém estava sozinho no caminho. “Preste atenção no caminho.”
Fotos: Veronica Pinheiro
Na oficina de pintura e criação de jogos colaborativos, convidei as crianças a prestar atenção nas grades. Elas não podem fotografar o território por questões de segurança. Mas eu fotografei alguns portões da rua onde moro, mostrei para elas e elas me disseram que viram esses símbolos no caminho. Falei para elas que os símbolos comunicam memórias de um povo antigo, que deu origem ao nosso povo. Lemos o livro Quanto de África tem no dia de Alguém. Relemos Os tesouros de Monifa. E as convidei a reparar no tanto de mensagens de vida que nos cercam. A vida se comunica o tempo todo, a gente que desaprendeu a entender. Mas se desaprendemos, podemos reaprender.
Fotos: Veronica Pinheiro
Curiosamente, o Adinkra com que as crianças mais se identificaram é o Sankofa. Curiosamente, Sankofa é o símbolo mais presente nas grades das portas e janelas. O pássaro que olha para trás é também representado graficamente por formas que lembram a representação do coração. Sankofa resume a ideia de futuro ancestral. O provérbio que o acompanha diz: “Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás”. Sankofa é símbolo da sabedoria de aprender com o passado para construir o futuro. E essa mensagem está no caminho desde que os irmãos ferreiros chegaram ao Brasil.
“Preste atenção no caminho. Você precisa saber voltar.”, dizia meu pai.
A escola de ensino regular ensina a olhar para frente, para o futuro. Mas o tal futuro da humanidade tem assustado as crianças. Por isso, convido meus pequenos companheiros a olhar para o passado. Não o passado da escravidão. Mas o passado cosmológico, que insiste em se comunicar conosco. O passado da tecnologia das relações de envolvimento com a vida.
Lembrei de Cris Takuá, minha mestra e seus ensinamentos. Acho que estamos acordando memórias por aqui.
16/09/2024
A BELEZA DA RESPOSTA DAS CRIANÇAS – por Veronica Pinheiro
Ọkàn ríran ju ojú lọ
O coração pode ver muito mais profundamente do que os olhos
A educação se dá nas relações cotidianas, para além dos muros da escola. Em sala de aula, os gestos, as atitudes, o tom de voz e o olhar são tão importantes, ou mais, quanto os conteúdos curriculares. As informações contidas nos gestos educam, acolhem, esperançam. O currículo forma para uma vida hipotética, futura, prepara para provas que talvez um dia um aluno venha a fazer. Os gestos educam para o presente, dilatando através da relação a complexidade do registro que busca compreender tudo o que acontece no ambiente e no próprio corpo. Lydia Hortélio diz, e eu concordo:
“Ninguém nasceu pra fazer vestibular. A gente nasceu pra ser gente, para se expressar em plenitude, liberdade, em inteireza com todos os talentos que o ser humano tem.”
Em tempos de emergências, penso em como alinhar gestos e conteúdos. Em tempos de emergências, como tornar a escola de ensino regular um lugar onde crianças e professores possam ser gente, se expressando em plenitude e liberdade? Meu querido mestre Nego Bispo falava que, nessa guerra das denominações, precisamos aprender o jogo de contrariar as palavras coloniais como modo de enfraquecê-las. Enfraquecer o que disseram sobre nós e buscar na ancestralidade entendimento e profundidade do que somos. A escola como lugar de ensinamento de denominações separa quem ensina e quem aprende, como se um “discente” só pudesse ser aluno e um “docente” só pudesse ser professor.
O termo “discente” tem sua origem no latim, deriva do termo “discens”, que é o particípio presente do verbo “discere”, que significa “aprender”. E “docente” tem origem no latim “docens”, que é o particípio presente do verbo “docere”, que significa “ensinar”. Na dinâmica da vida cotidiana, somos compartilhantes. Ensino e aprendizagem é relação de vida. Compartilhar é muito mais do que representar papéis sociais: não há imobilidade nas relações de compartilhamento. Ensinamos e aprendemos mutuamente, continuamente. À medida que os meses passam, a relação com as crianças na favela da Pedreira me mostra que a beleza da resposta das crianças está reestruturando a forma como eu me relaciono com elas e com a vida. As crianças me acolhem em seus braços curtos com cartinhas, desenhos e palavras faladas. Elas me ensinam a respirar em meio à fumaça capitalista que sufoca a vida.
“Tia, seus brincos são legais.”
“Tem gente que acha meus brincos estranhos.”
“Gente adulta, né? A gente acha lindo. Tem mensagem, né?”
“Todos os brincos dela têm mensagem. Os de natureza, os de aldeia, os de concha.”
“É sério que vocês ficam olhando meus brincos? E como vocês sabem que têm mensagem?”
“Porque a gente sentiu.”
“Eu não senti nada”, disse Alessandro. “É só uma folha.”
“Sim. É aya.”
Por conta de meus brincos, essa semana, falamos sobre Adinkras. Os Adinkras, símbolos gráficos originários da cultura Akan, de Gana, são um exemplo de como as formas de comunicação e registro não precisam se submeter à linguagem escrita convencional. Esses símbolos guardam filosofias, memórias, histórias, funcionando como um tipo de escrita visual repleta de conhecimento e identidade cultural. Nosso imaginário, construído pela educação colonialista, nos condicionou a pensar que a oralidade era o único pilar de registro para transmissão de conhecimentos em África, mas não é. Existem diversidades de escritas africanas e ameríndias.
Os Adinkras são escritas para serem lidas com o coração e não com os olhos. O sufixo “kra” é traduzido como alma. Esses símbolos estão relacionados à comunicação com antepassados. Adinkra é como um adeus à alma. O termo “dinkra” significa “se despedir” ou “dar adeus”. Nele, quem fica diz a quem foi que pode ir em paz, porque aprendeu os ensinamentos com o coração e sabe o que fazer para continuar seguindo. “Aya” é um símbolo Adinkra que representa uma folha de samambaia. A palavra também significa “Eu não tenho medo de você”. Simboliza resistência, força física. Ele é associado à ideia de superar dificuldades e se adaptar às adversidades.
“Tia, pra quem você está dizendo que não tem medo?”
“Não entendi.”
“Aya significa eu não tenho medo de você. ‘Você’ é quem? De quem você não tem medo? E precisa usar o brinco pra dizer que não tem medo?”
Não ousei responder de primeira. Dada a pausa, Ester continuou:
“Tia, todo mundo tem medo, mas, quando crescer, passa!”
09/09/2024
SEMEAR PALAVRAS – por Veronica Pinheiro
Oficina de papel-semente, poesia e plantio de sementes
Conversa sobre sonhos e sobre bocas que devoram o mundo
Foto: Wagner Lúcio
“Tia, rúcula é planta ou árvore?
“Rúcula é planta de comer. Você quer plantar semente de rúcula?”
“Sim, eu quero. Rúcula é nome bonito. Tem nome de mulher. Tipo Úrsula. Mas começa com ‘R’ de “Rafaela” e ‘R’ de ‘Rita’.”
“É! Rúcula é nome bonito. Você quer plantar a semente de rúcula porque você quer plantar a palavra ‘Rúcula’?”
“Não. Quero plantar a palavra ‘Saudade’ com ‘s’ de ‘Sofia’. Mas não quero uma árvore. Quero que a palavra saudade seja só uma plantinha.”
Alice e eu sentimos saudades. Ela chora todos os dias no final da aula com medo de ser esquecida na escola. Ela chega sorrindo. Almoça. Brinca. Estuda. Conversa. Mas, quando, às 17h, os responsáveis começam a chegar e as crianças são chamadas pelo nome para ir embora da escola, Alice chora. A menina, todos os dias, se justifica como se estivesse incomodando. O choro de Alice não incomoda a ninguém. As outras crianças da escola, professores, funcionários e diretoras acolhem Alice e suas lágrimas. Ela chora de saudade. A mãe de Alice se encantou ano passado. A menina sente medo de ficar só.
Alice e eu temos um segredo, ela pode pegar qualquer brinquedo meu e levar pra casa quando quiser para se distrair e dar gargalhadas de olhos fechados. Alice tem olhos pequenos e, quando gargalha, é quase impossível ver seus olhos. Os olhos de Alice falam mais que sua boca. No entanto, no dia de plantar sementes ela resolveu falar. E falar muito.
A oficina Semear Palavras teve 4 encontros. Passamos um mês juntando numa caixa na sala de leitura todas as folhas de papel descartadas na escola. No primeiro encontro, compartilhamos com as crianças as histórias das árvores que são mastigadas por bocas comedoras de árvores para virar papel. No Brasil, as árvores mais utilizadas para produção de papel são o eucalipto e o pinus. Essas árvores são de crescimento rápido. Por que precisam de árvores que crescem rápido? As crianças respondem:
“Porque a gente usa papel demais e a fábrica tem pressa.” Arthur, 8 anos.
Todas as árvores possuem em suas células uma substância chamada de celulose – é a partir da polpa de celulose que o papel é fabricado. O monocultivo dessas duas árvores vem tomando espaço no campo brasileiro. Pinus e eucalipto são consideradas árvores exóticas, porque não são nativas do Brasil, ou seja, não fazem parte do bioma em que vem sendo plantado. Os que representam as empresas chamam a monocultura de “floresta plantada”. Essa é a informação que chega às escolas de maneira geral e oficial. Por outro lado, ambientalistas e entidades de luta pela terra preferem chamar as plantações de “deserto verde” e reafirmam que as monoculturas não podem ser consideradas “florestas”, devido à pequena biodiversidade em seu interior. Além disso, as comunidades tradicionais e de pequenos agricultores, a partir da relação direta com a terra, defendem o ponto de vista de que as plantações dessas espécies em escala industrial podem gerar drásticos impactos hidrológicos. As monoculturas de eucalipto e pinus contribuem para a diminuição do fluxo de rios e córregos.
Essa conversa começou com um papel retirado da lixeira. O papel voltou ao caderno, à loja, à fábrica, à árvore plantada. Terminamos o primeiro encontro nos perguntando se precisávamos de tanto papel assim.
A escola que conhecemos é uma invenção ocidental que defende interesses específicos. O modelo de escola praticado é incoerente com o discurso de preservação e cuidado com a natureza que superficialmente tentamos aplicar. Uma escola sem papel, seria possível? Será que uma escola que faz seu próprio papel iria desperdiçar tantas folhas? Quando criança, eu deixava o copo com leite quase pela metade, minha mãe dizia que eu só fazia aquilo porque não sabia o tanto de trabalho que dava para ter leite no copo.
Foto: Sabrina Amarante
No segundo encontro, começamos a preparar o papel descartado para ser liquidificado. O papel foi picado pelas crianças e colocado de molho em água por 24 horas. “Ué, tia, a gente não vai plantar hoje?” Passei o dia respondendo a essa pergunta. De maneira geral, falamos como uma coisa é feita e partimos para uma atividade conclusiva. Pular etapas dá às crianças a impressão de que nós, humanos, não precisamos esperar. Para liquidificar o papel precisamos esperar o próximo encontro. Entre um encontro e outro e outro, Alice se mostrava mais interessada na ideia de plantar papel-semente.
Seguimos as etapas de preparação do papel. Liquidificar, enformar, adicionar sementes, secar. A escola de ensino regular se tornou o lugar em que se aprende com olhos e ouvidos. O restante do corpo quase sempre está fora do processo. O corpo produz pensamento e memórias complexas. Deixar o corpo construir respostas aos desafios sem dizer o tempo inteiro o que uma criança precisa fazer é permitir que ela confie em si própria. Algumas folhas ficaram muito grossas e não secaram bem. Um grupo de crianças não dividiram bem a quantidade de semente, o que resultou em papéis-semente sem sementes. Ao fazer esse papel, você pode escolher a semente das plantas que quiser; nós tínhamos sementes de goiaba, rúcula, agrião, margaridas, cenoura, tomate e salsa.
Depois de pronto, você pode usar o papel-semente para convites, papel de carta, presentes, confete biodegradável, cartões de visita… Na escola, com as crianças, escrevemos poesias, sonhos e palavras bonitas nos papéis com tintas de terra. A terra do quintal da escola e dos barrancos de Costa Barros são as mesmas das tintas de nossos desenhos. Distribuimos os papéis-semente entre as crianças. A maioria escreveu “PAZ para pedreira”. Repetidas vezes li a palavra floresta, amor e dinheiro. Entendo o motivo da palavra dinheiro aparecer muitas vezes. Ter o que comer e viver com dignidade ainda é sonho de muita criança. Entre muitas palavras pintadas e desenhos escritos, Alice se preocupa com o tamanho da planta que ela vai semear.
As palavras, textos e desenhos foram plantados em vasos e nos quintais, na escola e nas casas. Quem tem quintal em casa levou semente que vira árvore. Quem gosta de flores levou semente de margaridas. Cenoura e tomate também foram sementes muito escolhidas. Alice foi a única que escolheu a semente pelo nome. Ela achou “rúcula” um nome bonito. O papel que um dia foi árvore, agora guardava sementes que voltariam pra terra pelas mãos das crianças. Reciclar, desenhar e pintar era só a estrada. Queria mesmo falar de semear, semear sonhos com palavras e gestos. Queria na verdade dizer que precisamos cuidar do nosso imaginário (daquilo que sonhamos e desejamos) como se cuida de uma semente. Cuidar da semente até que ela germine, cresça, vire árvore. Depois, cuidar da árvore para que ninguém a derrube. Semear palavra é assunto sério, de onde venho palavra é o desabrochar da voz do falar antigo. Sendo a força do falar antigo, o fundamento dinâmico da vida.
Foto: Professora Míriam Ribeiro
O percurso Aprendizagens Selvagem é um percurso de envolvimentos. É impossível se envolver com um lugar sem se envolver com as histórias daquele lugar e com as pessoas que vivem ali. O envolvimento não é dizer o que o outro deve fazer, mas se disponibilizar a refazer juntos possibilidades e caminhos. Quando nos disponibilizamos a ouvir, o outro vai falar das coisas que estão ocupando muito espaço no peito. E são justamente essas coisas, que ocupam muito espaço, que dão sentido à vida, porque a vida é feita pelo que abunda.
Que sejamos, então, abundantes e semeadores de boas e belas palavras.
02/09/2024
POR QUE ESCOLA? – por Veronica Pinheiro
“O boneco da tia é mais bonito porque ela brinca de argila há mais tempo”.
José, 7 anos
Semana passada meu pai me perguntou por que eu sempre volto a trabalhar em escola. Tomamos um café no final da tarde. Tentei dizer pra ele o que vou tentar dizer aqui.
A escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana no Brasil: como braço do Estado, ela se faz presente em periferias, aldeias e quilombos. São 47,3 milhões de crianças e adolescentes matriculados em 2023 no país, segundo o Censo Escolar. O diálogo com a educação básica é urgente, uma vez que mais de vinte por cento da população total do Brasil está vinculada a uma unidade escolar. Mais urgente ainda se torna porque a população escolar é composta pela camada mais vulnerável da sociedade: as crianças. E esse diálogo não é exclusivo para pais e educadores. Economistas, artistas, físicos, astrônomos, músicos… toda sociedade deveria estar comprometida com os rumos da educação e das infâncias. As crianças são as mais vulneráveis às crises climáticas e a todas as crises sociais existentes. Mudar o rumo das infâncias de nosso país é a única maneira de possibilitar futuro.
Há um provérbio que diz:
“Nós não herdamos o mundo de nossos antepassados, nós o pegamos emprestado dos nossos filhos.”¹
Os livros didáticos ainda falam de energia hidrelétrica sem falar dos impactos causados pelas hidrelétricas na vida. Sempre lembro de Ailton Krenak falando que a natureza não é “um recurso natural”, um almoxarifado de onde tiramos coisas. Essa informação precisa chegar às escolas. Os adultos, como entes da natureza, precisam tecer diálogos com as crianças. Um diálogo entre seres vivos. O sistema colonialista está a serviço de um pensamento estruturado, universalista, opressor e ele sabe exatamente o que está fazendo. A ele não interessa criar perspectivas reais de futuro. O Estado que regulamenta a educação no Brasil é o mesmo que sabe que, a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes sofrem situações de exploração sexual no país. O Estado a serviço do colonialismo está morto. Cabe a nós, vivos, tecer diálogos sobre a vida. As estruturas atendem agendas; a escola atende pessoas. E por atender diretamente as pessoas, necessita de vida.
Nós, que brincamos há mais tempo por aqui, podemos e devemos compartilhar com as crianças caminhos possíveis para construir “bonecos” e futuros. Li, numa revista de educação, que, nos Estados Unidos, os mesmos arquitetos que projetaram prisões projetaram escolas. As escolas em que estudei tranquilamente poderiam servir de locação para filmes ambientados em presídios: tinham muros altos, grades em escadas, grades em corredores e grades nos pavilhões. Chamávamos de “Carandiru” o anexo ao prédio onde cursei o Ensino Médio .
No Brasil, apenas 34,5% das escolas municipais possuem área verde². As escolas são puro cimento; sem luz natural; sem ventilação natural. Se seguirmos a lógica do pensamento do menino José, de 07 anos, os arquitetos, pessoas que brincam há muito tempo de projetar, poderiam projetar escolas mais bonitas e propor às instituições, de forma técnica, projetos que respeitam a vida das crianças e a natureza. Uma arquitetura para o bem viver das crianças e da comunidade escolar. Verdejar, arvorecer, ativar e acordar memórias é trabalho para uma comunidade. Uma professora com 35 crianças não consegue quebrar cimento para plantar árvore. Por isso, volto à escola com o Grupo Aprendizagens Selvagem. Volto com uma comunidade.
Ainda estamos discutindo coisas que já deveriam estar sendo praticadas. Nós, que estamos aqui brincando há mais tempo, temos essa mania de ficar discutindo as coisas ao invés de praticá-las. Mania de quem foi escolarizado pelo colonialismo.
O colonialismo “etariza”, segrega e diz que escola é coisa de professor e aluno. Se pegamos o mundo emprestado de nossos filhos, e eles estão na escola, é lá que devemos estar também, aprendendo com quem nos emprestou, aprendendo como devolver o que pegamos emprestado. Estar junto confluindo com as crianças não deve ser uma metáfora. A interação e a reciprocidade estão presentes em todos os fenômenos naturais. O contato é necessário para a manutenção da vida. Vivemos porque a vida tem uma teia sensível e super elaborada de contato e cooperação³.
Nesse ponto, unimos o pensamento de Nego Bispo ao do menino José: se a vida é circular e ela rende no compartilhamento, a experiência confluencia na condição de suporte da geração neta.
Resumindo a resposta, posso esperar que a mão que adestra ensine a ser livre.
_______
¹ Provérbio atribuído a indígenas originários do que hoje chamamos América do Norte.
² Dependência física existente à escola. Área verde, espaço de domínio escolar dotado de vegetação ou gramado, livre de impermeabilização, que desempenhe função educativa, ecológica, paisagística ou recreativa, propiciando a melhoria da qualidade estética, funcional e ambiental da escola, sendo recomendado seu uso pedagógico com o desenvolvimento de projetos de educação ambiental, como horta, jardim, pomar, viveiro de mudas de planta e canteiros ornamentais.
³“…a simbiose é ‘simplesmente a convivência com contato físico de organismos de espécies diferentes. Parceiros na simbiose, companheiros na simbiontes subsistem literalmente tocando um ao outro ou mesmo um dentro do outro, no mesmo lugar e no mesmo tempo.”
Margulis, Lynn. Planeta Simbiótico – um novo olhar para a evolução. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2022.
27/08/2024
O SENHOR DO QUINTAL – por Veronica Pinheiro
Os quintais que conheci eram regidos por senhoras. As senhoras dos quintais. Cresci sem um quintal para chamar de meu. No entanto, imergia semanalmente no quintal de Dona Irene, minha avó. Um quintal cheio de plantas, árvores e água. Planta para comer, para banhar, fazer chá, para benzer e para enfeitar os olhos. Quintais são lugares suspensos, onde se brinca de ser até chegar a hora de ser. Assim como eu, a maioria de meus pequenos companheiros nessa jornada de despertamento de memórias na Favela da Pedreira não tem um quintal em casa.
Andando por quilombos e aldeias fico pensando sobre quintais, terreiros e a ausência de lugares comunitários em espaços urbanos periféricos. A ausência desses espaços de brincar influencia no sentido comunitário, pois, quando os seres brincam, representam o mundo em sua volta e os mundos que carregam nas memórias. Brincando, o passado e o presente são reinventados. Brincar não é uma ação exclusiva da infância: de onde venho, brincam mulheres, homens, astros, plantas, animais. Seres encarnados e encantados também brincam. Era comum olhar pro céu e dizer que o Sol estava se escondendo; dizer que as árvores estavam dançando… que o vento cantava. Era comum também brincar com as entidades em casa.
A Escola Municipal Professor Escragnolle Dória tem um quintal grande e pouco utilizado por questões de segurança. O quintal é o espaço mais vulnerável da escola, exposto ao tempo e à “bala perdida”. Se as crianças da periferia não têm quintal em casa e não têm locais comunitários, onde brincar? Faço da sala de leitura um quintal, um quintal Selvagem com fogueira e luar. Entendemos que os passeios organizados pelo Grupo Aprendizagens junto à escola também precisavam ser momentos para brincadeiras. Ao passear com as crianças pela cidade do Rio de Janeiro, percebemos que, entre elas, acontecem movimentos profundos de ampliação de olhar sobre si e sobre o território; autorregulação das emoções e impulsos; além de aflorar o sentimento comunitário. Organicamente, ao sair da escola, vemos alunos “bagunceiros” se tornarem líderes, assumindo o cuidado dos colegas que necessitam de suporte. Uma criança segura a outra pelas mãos e se disponibiliza a passar o dia todo ao lado do colega que está com medo ou ansioso.
O quintal é o lado de fora, o lugar dos encontros e das construções afetivas, sagradas, comunitárias e festivas. Nossos passeios são um convite para fora. E algumas pessoas muito gentilmente têm colaborado para que possamos sair com segurança e estrutura. Fomos à Quinta da Boa Vista com o apoio financeiro de um ex-aluno da escola. Seu Altair estudou na Escragnolle nos anos 80 e, quando soube que estávamos levando as crianças para encontros com a natureza fora da escola, prontamente se disponibilizou para pagar ônibus e lanche. Seu Altair e sua esposa eram os anfitriões do quintal, igual acontece nas folias nos quilombos. Muitos quintais foram abertos naquela manhã.
Taiana Simões¹ abriu a porta dos Quintais Brincantes, trazendo pra brincadeira Bia Jabor e Rafael Cruz. Bia já faz parte da comunidade Selvagem e Rafael está nos convidando para brincar nos quintais da UNIRIO. A Quinta da Boa Vista seria apenas nossa localização na terra.
Taiana, depois do piquenique e da caminhada, falou:
“Conta a história que há muito, muito tempo, nessa mesma terra, morava um senhor chamado Quintas. O senhor Quintas amava o seu quintal e cuidava com todo carinho de tudo o que naquela terra crescia. Amava tanto e cuidava tanto que o quintal era a coisa mais linda de se ver. E não só de beleza vivia esse quintal. Todos os frutos que cresciam ali tinham algo de muito diferente dos de qualquer outro lugar. Eles eram enormes e muito, mas muito doces mesmo! Eram tão grandes que as laranjas eram do tamanho da cabeça das crianças que corriam por ali, as melancias chegavam a ser do tamanho da roda dos caminhões.
Era tanta fruta, grande e deliciosa que o quintal do senhor Quintas oferecia comida para toda a comunidade em volta. Fosse bicho gente ou bicho passarinho, macaco ou gambá, todos que passavam por ali tinham o que comer e uma boa prosa para trocar com o senhor Quintas.”
Me assustei! Conheço a Quinta desde criança e nunca havia ouvido falar do Senhor Quintas.
Fui acompanhando a narrativa atenta! Onde estava eu, que não conhecia aquele senhor incrível? Me dei conta de que o que Taiana contava era verdade criada, verdade literária que acontece na imaginação.
“A notícia desse quintal encantador, com frutos gigantes e deliciosos correu de boca em boca. E trouxe mais uma série de curiosos que só queriam pegar algo para si. E foi assim que, dia após dia, o quintal inteiro se entristecia, nada era como antes, nada era mais tão vibrante. E, conforme o tempo passou, o senhor Quintas viu seu quintal morrer pouco a pouco, planta por planta. Até que, sem saber mais o que fazer para salvar o seu tão querido quintal, o senhor Quintas começou a sentir uma tristeza tão grande, mas tão grande, que começou a cavar um buraco na terra, bem no meio do seu quintal. Cavou um buraco bem fundo e ali colocou seus dois pés, cobriu o buraco com terra e esperou, esperou, esperou, até que veio a chuva. Com a chegada da chuva na terra, os pés do senhor Quintas começaram a criar raízes, que se aprofundaram cada vez mais na terra. Suas pernas ficaram rígidas, se transformando em um tronco duro e muito firme. Seus braços e cabelos se voltaram para o céu, cresceram e se transformaram em galhos e folhas bem altos e vistosos de se ver. Assim, todas as partes do corpo do senhor Quintas se transformaram em uma grande e bela árvore, exceto uma parte que batia dentro do peito do senhor Quintas, marcando o ritmo de sua nova vida. Se tornou assim o homem Arvoredo, a árvore guardiã desse quintal.”
“Tia, seu Quintas existe?”
Respondi: “acho que sim”. Angélica, de 08 anos, já havia me explicado no início do ano em visita ao Jardim Botânico que a gente era meio árvore.
Percebendo a dúvida nos olhos de quem ouvia, Taiana entregou estetoscópios para as crianças escutarem o coração das árvores. Assim, a dúvida deixou de existir, todas as árvores daquele quintal tinham um coração pulsante. O senhor dos Quintais estava ali.
As crianças, mais atentas que eu, conseguiram ouvir o coração da jaca bebê. “Tem que cuidar das árvores, né, tia? Tá tudo vivo.”
Tudo está vivo. Depois de me dizer isso, Bia sai correndo para os braços de sua avó Lúcia. Até minha chegada à Escola Escragnolle, Lúcia era a professora responsável pela sala de leitura da unidade. Ela se aposentou semanas depois da minha chegada, porém está presente em todos os passeios como voluntária. Lúcia, de alguma forma, está plantada, trazendo vida à escola de outras formas. Durante muito tempo desejei ser vento. No entanto … junto com as crianças, tenho desejado ser árvore plantada.
Fotos das crianças da Escola Municipal Professor Escragnolle Dória
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¹Taiana Simões, educadora antirracista, com o olhar sensível para a natureza e as infâncias. Realiza trabalhos integrando diversas áreas do conhecimento como a alfabetização ecológica, o ensino de ciências, a contação de histórias, o letramento racial e a agroecologia.
História do senhor Quintas, de Henrique Santiago, o criador da Ecobé
20/08/2024
QUEM TEM O PODER DE REPRESENTAR TEM O PODER DE DEFINIR E DETERMINAR A IDENTIDADE – por Veronica Pinheiro
— Eu fiz mágica! — disse um menino de sete anos de idade quando conseguiu fotografar seu amigo com uma câmera profissional.
Ele olhou o visor da câmera, parou e quase não respirava. Eu vi seu corpo em silêncio absoluto. Vi o silêncio pela primeira vez. De fato, ele fez mágica. Um pajé sabe quando faz a cura, um professor sabe quando dá aula. E um mágico sabe quando faz mágica. Esse menino escolheu como representar seu amigo. Cuidadosamente escolheu ângulo e momento. Ele se viu no amigo e representou seu amigo como gostaria de ser representado. Talvez ele não saiba, mas quem tem o poder de representar pode determinar identidade. Mesmo sem saber, meu pequeno companheiro percebeu a força daquele ato.
As escolas de ensino regular, em sua maioria, mantêm os alunos o tempo todo em uma sala de aula apertada, com janelas fechadas e com iluminação artificial. Sentados em cadeiras desconfortáveis, passam horas sem olhar seus amigos nos olhos. Em silêncio. O silenciamento imposto, recorrente e institucional é violento, subjuga e aprisiona os sujeitos. Quais são as consequências de passar horas com alguém sem poder olhar nos olhos, sem olhar pra fora? Temos muitas críticas a esse modelo de educação, no entanto não podemos ignorar que, no Brasil, crianças e adolescentes urbanizados, principalmente nas periferias, estão tão vulnerabilizados que a escola pode se tornar um espaço de construções interessantes. Então… se a escola é um lugar de homogeneização e docilização de populações, ela também pode vir a ser um lugar de ruptura e insurgências.
São tantos direitos negados: direito de saber que é natureza; direito de brincar; direito à cidade; de ter acesso às manifestações do mundo natural…
Nesse nosso movimento de acordamento de memórias e fortalecimento dos territórios, compartilhamos o brincar, o caminhar e recebemos as crianças em espaços especiais para o Selvagem. As atividades, até nossa ida à Quinta da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro, eram fotografadas por profissionais que fazem parte da Comunidade Selvagem. Erika Hoch é uma dessas profissionais; generosa e amorosa, compartilha conosco seu olhar sobre os encontros através de registros fotográficos. Erika não estaria no Rio no dia da visita à Quinta. Nesse momento, também se uniu ao nosso grupo Carol Delgado. Carol, assim como Erika, traz a felicidade no olhar e nos gestos. O olhar das duas me é muito familiar, olhar de curiosidade, olhar de esperança. Quando olho nos olhos delas vejo as crianças que comigo compartilham essa jornada. A fotografia, além do lugar do registro, pode ser a manifestação do olhar. E o olhar pode ser construído. No texto “A função da Arte”, de Eduardo Galeano, o menino Diego, diante do maravilhamento de ver o mar pela primeira vez, pede: “Me ajuda a olhar.” Erika e Carol me ensinam a olhar.
Na Quinta da Boa Vista, Carol escolhe deixar que as crianças contem o que seus olhos viram. Ela entrega a câmera fotográfica na mão dos pequenos. Ensina a um como operar a câmera. Propõe combinados e acompanha o processo. A próxima criança a fotografar não seria ensinada por Carol, mas pelo colega que o antecedeu na atividade. Eu acompanho os movimentos de Carol e o movimento das crianças. Não dou muitas informações sobre as crianças previamente aos voluntários. Digo apenas que elas são solares e com muita energia. A turma que vivenciou esse passeio em especial é uma turma conhecida na escola por sua agitação. A Quinta era o lugar menos aconselhável para esse grupo, um local muito amplo e sem “atrações”. Decidi chegar ao local duas horas antes das crianças para procurar um lugar especial entre as árvores. Havia entre os professores da escola uma organização específica para conter possíveis situações de brigas entre as crianças.
Diante da amplidão e das muitas árvores, as crianças mais inquietas entraram em estado de contemplação e reflexão profunda de si.
— Você está vendo que eu nem estou fazendo bagunça hoje? — disse a menina de 7 anos — Não bati em ninguém e nem vou bater. Como faz pra voltar aqui?
Era dia de olhar e construir olhar. O lugar do registro é um lugar delicado. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. O direito de olhar e ser olhado é algo negado aos corpos dissidentes. Quando eu escrevo sobre as crianças da favela da Pedreira, sou eu representando e construindo olhar sobre o que são crianças da Pedreira. A herança colonialista diz que alguns humanos podem determinar a identidade de outros, e há quem se sinta confortável nessa função.
“Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e de determinar a identidade. […] A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer oportunidades para que as crianças e os/as jovens desenvolvessem capacidades de crítica e questionamentos dos sistemas das formas dominantes de representação da identidade e da diferença” Tomaz Tadeu da Silva
Temos umas três centenas de fotografias feitas pelas crianças. Confesso que não tenho recursos para compreender a complexidade da narrativa que construíram sobre os passeios fotografados por elas. Ando sabendo muito pouco e sentindo muito ultimamente. A maioria das fotografias são de sorrisos e abraços. Quando eu era criança, sabe como eram representadas as crianças das periferias em fotografias? Os livros didáticos que estudei só colocavam fotografias de pessoas pretas e pardas em situação de vulnerabilidade. Nos livros de ciências, por exemplo, sempre aparecia uma criança racializada nos capítulos que falavam de verminoses. Nos de história, pessoas negras sempre apareciam acorrentadas ou trabalhando em funções socialmente desprezíveis. Assim como um texto escrito, a fotografia é um texto repleto de intencionalidade. Não há neutralidade nas imagens, e as crianças entenderam isso.
Elas escolheram como gostariam de ser representadas e vistas: sorrindo, brincando e correndo. Sorrir, brincar e correr são atos de insubordinação para crianças em contexto de extrema violência. Os registros feitos pelas crianças são insubmissos à dor e à opressão imposta às crianças do Complexo da Pedreira.
Elas determinam como eu devo olhar para elas. Elas são a vida se desdobrando em vida.
A prática da fotografia na mão dos pequenos
aconteceu também em um passeio ao Pão de Açúcar
no dia 03 de julho de 2024.
13/08/2024
O SOL HÁ DE BRILHAR MAIS UMA VEZ – por Veronica Pinheiro
“O único jeito de guardar dados a longo prazo, tipo verdadeiro longo prazo, é em relações intergeracionais, onde dados são guardados em narrativas, narrativas intergeracionais. Podem durar quarenta, cinquenta, sessenta mil anos. Podem durar enquanto houver relações continuadas – aqueles dados durarão. É a única maneira de guardar dados a longo prazo”
Tyson Junkaporta¹
Um dia ouvi do mestre Nego Bispo: “Não somos decoloniais, somos contracoloniais. Você não precisa da academia para falar das coisas que sua avó lhe ensinou. Foram as coisas que sua avó lhe ensinou que mantiveram você viva”. Diariamente professores, educadores e estudantes me perguntam sobre referências bibliográficas. Fomos educados para confiar no que dizem os livros. Porém, antes de existirem livros sobre plantas medicinais, raizeiros, pajés, rezadeiras compartilhavam com suas comunidades medicinas e terapias. Os saberes intergeracionais seguem fluindo e confluindo. Não refluem. Os saberes acadêmicos refluem: por exemplo, a eugenia já teve validade científica. Hoje, a eugenia não tem comprovação nem validade para a ciência. Quando não há circularidade, você vai ter que voltar por onde você foi.
As narrativas intergeracionais são circulares: ao mesmo tempo que vai, algo fica; ao mesmo tempo que fica, vai. Uma educação que pensa despertar memórias busca fortalecer as conexões das crianças com o território, fortalecer vínculos, saberes e práticas de vida que lá existem. Na circularidade, o que já se foi, o que é e o que virá estão sensivelmente conectados. A narrativa é o fio que estrutura essa trama de vida. As narrativas guardam a consciência do que somos. As narrativas geracionais não são apenas para o despertamento de uma consciência sociohistórica, elas mantêm pilares que possibilitam uma leitura de si por meio dos seus próprios olhos.
Contamos histórias para pensar mundos possíveis. Mundos onde caibam os diversos, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. No mundo Bakongo, por exemplo, a palavra Ubuntu, não traduzível diretamente, exprime a consciência da relação entre o indivíduo, a comunidade e tudo o que existe. Segundo a filosofia africana Bakongo, quando nasce um ser humano (untu), nasce um sol. E o bem viver é alcançado quando todos os sóis estiverem acesos.
De certa forma, as histórias possibilitam que os sóis continuem brilhando. Quando Kauê Karai Tataendy, uma criança Guarani, me pergunta como eu organizo minhas oficinas e se ele pode levar os materiais para recriar junto com Flávio, seu amigo, os desenhos na aldeia, penso que, de alguma forma, estamos nos animando mais uma vez. O amor de Kauê por Flávio, somado ao desejo de compartilhar com o amigo tudo que aprendeu, mantêm os sóis um do outro acesos. Kauê se move para que o sol de Flávio continue brilhando.
O compartilhamento é a energia que nos move. Enquanto existirem confluências e compartilhamentos, o Sol há de brilhar mais uma vez.
Nos animemos mais uma vez. Nós somos filhos do sagrado.
Re existimos diariamente sob o Sol.
¹Tradução de Gerrie Schrik – A fala de Tyson Junkaporta pode ser acessada aqui https://emergencemagazine.org/interview/deep-time-diligence/
06/08/2024
A AVÓ, AS CRIANÇAS E AS ÁGUAS – por Veronica Pinheiro
“As águas são como nossas parentes. Antigamente, os meus avós diziam que não se jogava sujeira na água, pois é a mesma coisa que jogar uma sujeira no olho de nossa avó ou da nossa mãe”, kujá Iracema Gah Teh
Foto: Tania Grillo
Uma conversa líquida e circular. Confluências entre uma avó Kaingang, as crianças do Rio e as águas da Baía de Guanabara. Ela, do Rio Grande do Sul. Elas, do Rio de Janeiro, nascidas nas proximidades do Rio Acari. A Baía, um estuário de inúmeros rios, um corpo d’água parcialmente encerrado, formado pelo encontro das águas doces que se misturam com a água salgada do mar. A avó, as crianças e as águas se encontraram na cidade do Rio de Janeiro, no Morro do Pão de Açúcar. Na agenda escolar das crianças, a atividade consta como passeio escolar; chamo, porém, de Encontro. Um movimento de conexão e ampliação de olhar. Pois, se cada um enxerga com o olho que tem e entende apenas o que os pés reconhecem como caminho, quando seres com olhares diferentes, cujos pés reconhecem outros caminhos, se encontram, novas tramas de vida são estabelecidas. No encontro, os diversos se conectam de forma tão natural que um indivíduo pode começar a desejar outras possibilidades de se relacionar com a vida, com o cosmos e com ele mesmo. O encontro é o evento natural que mantém a vida. É assim na floresta, nas cordilheiras, nos quilombos… nas favelas.
Esta página de diário é um breve e superficial relato do encontro de uma avó Kaingang com as crianças no alto de um morro rodeado por águas. Em 3 de julho de 2024, recebemos as crianças na escola às 7h30 para o café da manhã. O ônibus rosa já nos esperava. A cada dia, mais pessoas se unem para sonhar junto caminhos de vida para a favela da Pedreira. Até o motorista, que também é dono do ônibus, se tornou um parceiro nas atividades do Grupo Aprendizagens na escola. Seu Jonas disse que a viagem do dia 03 era por conta dele e nada nos cobrou naquele dia. Da escola, levamos uma turma do 5º ano², professores e a querida diretora Daniele Oziene. A rotina de 40h semanais de trabalho somadas às burocracias e às muitas responsabilidades da função de diretor escolar numa escola no Município do Rio de Janeiro tornam momentos como esse muito especiais; Dani estava conosco. Esperavam-nos na Urca, na subida do teleférico, 6 voluntários da Comunidade Selvagem³, Rafael Cruz e Dona Iracema, com sua família Kaingang.
A quantidade de adultos é pensada para que, durante os deslocamentos a pé, as crianças não andem enfileiradas. É também para que os professores estejam deslocados da função de regente. Em grupos bem pequenos, sem uma voz que, o tempo todo, diz o que o grupo precisa observar, crianças e adultos podem prestar atenção em tudo, num único ponto ou em nada. Não entendo a necessidade ocidental de preencher todas as lacunas o tempo inteiro. Deixar que os olhos encontrem caminho; que os ouvidos encontrem caminho; que a pele encontre caminho é permitir que as memórias adormecidas pelas rotinas e pelo engessamento do processo escolar despertem. A educação ocidental anestesia. A vida, entretanto, é sinestésica. Acordar é reconectar com o que nos mantém vivos. Apesar de urbanizados, somos natureza. Nossa urbanidade é recente, artificial, acessória e imposta. Toda criança tem o direito de saber que é natureza. Quando nos entendemos como natureza, não nos sentimos sozinhos. As cidades são lotadas de gente, e, ainda assim, as pessoas se sentem sozinhas. Estar desconectado faz um indivíduo sentir solidão numa casa cheia de seres. Digo seres, porque a cidade e seus modos de ser e estar, reproduzidos na escola, criam modelos de conexão apenas entre os iguais. Num zoológico, os animais convivem apenas com seus iguais, como se na natureza fosse assim. Num condomínio, também, os iguais que compartilham aquele espaço. É assim também na maioria das escolas.
Foto: Carol Delgado
Fomos recebidos no Morro da Urca pelas águas. Uma imensa nuvem atravessava o maciço e nos escondia. Ficamos por alguns minutos dentro da nuvem. Cercados de água que umedecia peles e cabelos sem molhar. Generosamente fomos guardados nas águas dos rios de cima. A cena me lembrou uma casa de rezo cheia de fumaça.
Abraço de água doce. Por alguns minutos pensei que não conseguiríamos contemplar as águas da baía, nem o horizonte, não que isso fosse ruim. A beleza das águas de cima era tão encantadora que aquele abraço já tinha valido a viagem.
Foto: Carol Delgado
O encontro era com a avó, as crianças e as águas – as águas da baía e as águas que se movem dentro dos seres. A avó Iracema é kujá (liderança espiritual) do povo Kaingang, natural da Terra Indígena de Nonoai. Conhecedora das ervas medicinais e dos poderes da mata. É também Cacica da Retomada Gah Reh, que fica localizada no Morro Santana. Sempre há em nosso roteiro de visitação um momento para conversas. Sábia e muito atenta a tudo, Iracema entende que cada um vê com o olho que tem e compreende a partir das próprias perspectivas. Iracema trazia sobre sua cabeça seu cocar de penas, certamente as crianças da Pedreira nunca tinham visto, até aquele momento, alguém de cocar. Iracema, no entanto, partiu do lugar comum, e disse: “Eu sou Iracema, avó Kaingang”. Pronto! Uma avó, toda criança sabe o que é uma avó. Essa informação bastava para nos tornar uma família, ainda que temporária.
Foto: Carol Delgado
Rafael Cruz, ator e pesquisador das infâncias, foi quem começou a conversa. Ele gentilmente aceitou o convite do encontro e apresentou as águas da Baía de Guanabara com dados e palavras encantadas de gentileza. A mim coube provocar o grupo: quem aqui duvida que somos natureza? Das crianças, ouvi reflexões repletas de sabedoria. Enxergando a dúvida no olhar de alguns, perguntei à Cacica Iracema: algum dia a senhora duvidou que era natureza? Ela respondeu trazendo as águas pra conversar de maneira inusitada: nunca duvidei, porque sou água redonda. Paramos todos para ouvir com olhos e ouvidos. Até os visitantes do Parque do Bondinho que passavam e os funcionários do parque pararam para ouvir as águas que fluíam e confluíam da avó Iracema. Uma avó líquida e circular. Ainda me pego pensando sobre isso.
O povo Kaingang concebe dois tipos de água no mundo: Goj tej (água comprida, dos rios) e Goj ror (água redonda, as nascentes, os lagos). Essas águas são complementares, como toda a cosmologia Kaingang. Os irmãos Kame e Kainru são responsáveis pela origem do mundo, conforme os Kaingang. Foram eles quem criaram e atribuíram marcas a todas as plantas, animais e ao povo Kaingang. Tudo que existe na Terra tem uma metade criadora Kame ou Kainru. E cada metade tem poderes e energias diferentes que são opostas e complementares.
Kame – gêmeo ancestral da marca comprida – o Sol e os rios pertencem à metade Kame
Kainru – gêmeo ancestral da marca redonda – a Lua e as nascentes pertencem à metade Kainru
Foto: Carol Delgado
A conversa transitava entre conselho e cura, história e ciências, sorrisos e olhares. No colo da montanha, nossa avó ancestral, ouvimos a avó cacica falar sobre amar. Ao final de suas palavras, nos abraçamos todos com águas, em águas, sob o Sol. Os currículos pensam em relações étnico-raciais, por aqui, porém, pensamos em relações de vida. Para continuar pensando, deixo aqui transcrito parte do que ouvimos:
“A água é um sagrado, é uma vida para nós
Através dele, nós vivemos também.
Ele é o nosso sustento, ele faz parte de nós.
Ele faz parte de todo ser vivo, a água.
Jamais a gente vai sobreviver sem,
tanto a água salgada, como a água doce.
A água salgada é bom também para uma doença que dá na pele.
E a água doce, também, é muito bom para o corpo. Para qualquer ser vivo.
Quando eu falo ser vivo, também é a nossa mãe Terra, que sobrevive dela.
A árvore. Nós. Tudo isso que vive na terra.
Tudo que vive na água.
Então ela é muito sagrada.
Porque que a gente, antigamente, não sujava ela?
Eu digo, não sujava ela, a gente não bota coisa suja nela.
A minha vó e o meu vô diziam para mim:
‘Quando tu bota uma sujeira na água, tanto no olho da água, como na água doce, é a mesma coisa que tu estar botando uma sujeira no olho da tua avó, da tua mãe.’
Elas têm marca.
Tem a água que nós chamamos Goj ror, Goj ror.
Para nós, vocês devem saber, né?, que é quando a água nasce.
Esse se chama Goj ror.
A Guaíba, para nós, ele é ti ninó goj mag (o braço da água grande).
Porque que eu digo ti ninó goj mag (o braço da água grande)? Ele é doce ou é salgada?
Ti ninó … como que é o nome?
Ele é ti ninó do mar (o braço do mar)
É doce. É, ele é doce.
Então, de onde que ele vem?
São todos esses goj ror que desce nela.
Então, ele é goj tej.
E também tem o goj ror que desce nele, para complementação.
Então eles têm marca, eles complementam um ao outro. Como nós, Kaingang, tem nossas marcas Kamē e Kainhru
Se não fosse esses goj ror, nós não tinha como sobreviver.
Então são sagrado, faz nossa parte, nós faz parte dela”
Transcrição fala Gah Teh durante espetáculo de dança contemporânea Água redonda e comprida. O mesmo foi compartilhado por Iracema no encontro com as crianças.
__________
¹ kujá – pajé e líder indígena Iracema Gah Teh
² nosso desejo é levar todas 3 turmas de 5º ano da escola ao Pão de Açúcar. Até o momento, já levamos duas turmas.
³ Ana Paula Santos, Carol Delgado, Geórgia Macedo, Tania Grillo e Camille Santos
Agradecimentos:
Geórgia Macedo que tornou possível a vinda de Iracema. Geórgia é mestre em Antropologia Social pela UFRGS e bailarina. E atua com produção cultural, na parceria com artistas indígenas e como educadora de danças na cidade de Porto Alegre.
Rafael Cruz ator e pesquisador das Infâncias, membro do GITAKA, Grupo de pesquisa GITAKA: “Infâncias, Tradições Ancestrais e Cultura Ambiental”
Carol Delgado é antropóloga de formação e curiosa de natureza. Mãe, pesquisadora, escritora e fundadora do Puxadinho, um laboratório em rede de experimentações antropológicas para futuros plurais.
Família de Iracema Kaingang:
Angélica Kaingang, natural da Terra Indígena do Votouro, é graduada e mestre em serviço Serviço Social e Doutorando em Educação pela UFRGS
Nyane, 13 anos, desde a barriga acompanha sua mãe Angélica Domingos, pelas cidades e territórios indígenas, nas lutas dos povos indígenas.
25/06/2024
NA NATUREZA, NADA VIVE SOZINHO – por Veronica Pinheiro
Foto: Wagner Clayton
Começamos o último texto do semestre com as palavras da professora Miriam. Ela trabalha na Escola Escragnolle Dória em dois turnos, manhã e tarde, atendendo 62 crianças de 5 e seis anos de idade de segunda a sexta.
“Desde a chegada da equipe Selvagens em nossa escola, temos observado e experimentado um novo movimento dentro da escola. Tanto pelo acesso a materiais que não são tão comuns nas salas de aulas de escolas públicas, mas também por ter quem nos conduza a ter um olhar mais minucioso no que temos de mais rico ao nosso redor. Escolas em áreas conflagradas como as nossas, onde as crianças têm os ouvidos treinados para o tiro, fazê-las silenciar para ouvir os pássaros, o barulho do vento ou o que se passa dentro de si e transformar em arte, é quase mágico. Quase, a linha entre o mágico e o real é tão tênue que ora ou outra invadimos a sala de aula da colega para fotografar como uma urgência de querermos parar no tempo.
Vê-los pintar com a tinta que produziram a partir da terra encontrada no chão da escola, revelar fotos das folhas e galhos que caíram do quintal dali, observar a natureza que compõe o nosso território… Observar, criar, produzir. Uma sequência rica de significados que eu, enquanto professora, me dou o luxo e me permito também ser aluna naquele momento. Sento como meus alunos, espero meu pedaço de argila, me junto a eles com inúmeras perguntas, todos tentamos, fazemos o nosso melhor, sorrimos com o resultado, terminamos orgulhosos de nós mesmos pelo o que fomos capazes de criar. Voltamos para sala de aula certos de que todos somos talentosos, desmistificamos que todo professor sabe tudo. Voltamos para aula com um novo olhar sobre nós mesmos. Acho que todos que têm feito parte do projeto têm se sentido dessa forma. Somos levados a ter novas conclusões sobre nós mesmos, temos nos vistos como parte importante da natureza e temos percebido como ela nos impacta tanto quanto nossas ações a impactam.”
Anna Dantes, Madeleine Deschamps e eu tivemos longas conversas em dezembro de 2023 e janeiro de 2024 sobre caminhos de aprendizagens e sobre possibilidades de desdobramentos das oficinas e dos projetos realizados em 2023 com o Grupo Crianças. Falamos sobre criar vínculos com escolas e professores. Quando subitamente precisei retornar ao trabalho na Prefeitura do Rio, conversamos sobre como poderíamos ativar os estudos e pensamentos presentes nos ciclos Selvagem numa sala de aula. Em algum momento pensei em retornar ao trabalho como coordenadora pedagógica, mas aceitei o desafio de voltar como professora de sala de leitura numa escola de crianças. As crianças sempre estiveram presentes na minha vida, mas nunca estive como professora atendendo regularmente os pequenos em sala de aula.
Lembro de ficar feliz em me tornar a “professora da sala de leitura”. Lembro de rir e lembrar de minha avó lendo a borra do café na xícara, as nuvens e os olhos das crianças. Dorvelina, mãe de minha mãe, não sabia ler ou escrever em português, mas lia a vida e interpretava sonhos. Ler e interpretar, lá em casa, era coisa do cotidiano, quase nunca relacionada aos livros. “A gente olhava e lia a terra.” Tudo era texto e tudo poderia virar texto. Os livros chegaram lá em casa recentemente. Achei engraçado isso de ser a mediadora das rodas de leituras de uma escola de crianças. Agradeci em silêncio a gentileza que a vida me fez: estávamos diante da possibilidade de iniciar um percurso de Aprendizagens em diálogo com a vida.
O que é compartilhado nos diários é apenas uma parte do trabalho, pois nosso percurso é trilhado por muitos pés. Oficinas, passeios, organização de propostas e materiais só acontecem porque o Grupo Aprendizagens é formado por uma rede invisível que se expande, interligando cuidados preciosos. Chegamos ao Complexo da Pedreira sonhando despertar memórias e fortalecer as conexões das crianças com o território. Para além das problemáticas que tornam os dias difíceis, fazemos menção ao território ancestral, natural e orgânico. Lembramos às crianças e aos professores que somos natureza, natureza viva e pulsante.
Madá se preocupou com a carga horária semanal que eu teria de cumprir e como isso poderia me sobrecarregar. Juntas acreditamos e sonhamos orçamentos, passeios, oficinas e uma “festa cósmica” para o final do ano com crianças vestidas de estrelas e planetas. Encerramos o semestre felizes. Praticamos o bem viver numa terra que só é conhecida por seus males. O poeta disse que “Fundamental é mesmo o amor/É impossível ser feliz sozinho”. Apesar de todo desafio, tudo foi mais feliz e potente do que imaginávamos. A escola nos respondeu muito mais rápido do que esperávamos. Está sendo fundamental seguir em amor e juntos. Ubuntu, sou porque somos. Tal qual as árvores da floresta que só existem porque estão intimamente ligadas, o percurso Aprendizagens está intimamente ligado a uma teia de seres regenerantes.
Juntos aos relatos que recebemos de professores e grupos de pesquisas, neste semestre, fomos convidados pela Gerência de Relações Étnico-Raciais, da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, para a IV Jornada da GERER – Caminhos e perspectivas para futuros possíveis¹. Como resposta ao convite, preparamos um Guia de Aprendizagens Selvagem, GAS, para ser compartilhado com 1544 Escolas Públicas de Ensino Fundamental na cidade do Rio de Janeiro. “Cuidado não é troca, é compartilhamento”, já dizia Nego Bispo. Não criamos nada. Quando chegamos ao Complexo da Pedreira, já existiam muitos outros compartilhantes que nos receberam. Desde o algodoeiro na entrada da escola aos pássaros que nos visitam todas as tardes, agradecemos a toda vida e a todos os seres que estiveram conosco neste semestre.
Àwúré
¹Material Complementar da Jornada de Relações Étinico-raciais. https://sites.google.com/view/gerer-sme/jornadas-da-gerer/iv-jornada-da-gerer
18/06/2024
ONDE ESTÁ A MATA? ESTÁ DENTRO DO PEITO – por Veronica Pinheiro
A sala de leitura da escola se assemelha a uma biblioteca em organização e funcionalidade. Livros em prateleiras, divididos por assunto; mesas grandes e cadeiras. Um espaço planejado e que leva em conta a área de armazenamento, a área de atividade, a área de circulação. Algumas regrinhas gerais são comuns em ambientes de leitura: entrar somente com o material necessário para o estudo; entrar de forma “disciplinada”; manter a voz e os gestos em tom discreto para não atrapalhar os demais leitores.
As primeiras histórias que conheci não estavam em livros guardados em prateleiras. As primeiras narrativas e lições que aprendi saiam da boca de Dona Cassiana, uma anciã, que ficava no final da tarde sentada num banco de madeira, sob o pé de aroeira, lá no morro onde nasci. Para saber o final de uma história, às vezes, tínhamos que esperar o dia seguinte ou ir atrás de Dona Cassiana enquanto ela cuidava das plantas. Ela rezava as crianças e dava colo enquanto rezava. Era uma reza-história, cantada e coreografada com folhas. Lembro de um dia ter procurado por ela e não a ter encontrado. Nunca mais a vi. Pouco depois do sumiço de Dona Cassiana, sumiu o banco e o pé de aroeira. Mas as palavras contadas, cantadas e rezadas me acompanham até hoje.
Hoje, sou a velha que conta quadras para meninos. Essa semana, cheguei à sala de leitura e retirei todas as cadeiras. Retirei também as mesas e apaguei as luzes. E acendi minha fogueira no meio da sala. No chão, colchonetes, 15 exemplares de um mesmo livro e eu sentada tal como a velha Cassiana ficava esperando por mim.
Aprendi com Carlos Papá que o escuro acolhe todos, não fazendo distinção de pessoas. E foi no escuro da sala que nos encontramos com as narrativas de avós e compartilhamos cuidados e gentilezas. “O que é isso?” “Um acampamento, você não está vendo” Eu acompanhei a entrada deles somente com olhos e ouvidos, nada falei. “É um acampamento sim. Olha a fogueira.” “Vamos sentar porque está de noite e frio.” Era 8h da manhã e fazia 31ºC do lado de fora da sala, dentro da sala tempo e lugar deslocavam-se sem convenções.
Eles sentaram em roda. A primeira turma que recebi neste dia tinha 28 crianças presentes, a maioria com 8 anos de idade, e estavam curiosas para saber o que iria acontecer. Na primeira ação, eles formariam duplas de leitores. Pedi para que um aluno que já soubesse ler se unisse a um colega que ainda não soubesse ler. Feitas as duplas, eles precisariam escolher um cantinho na sala de leitura para ler a história. Cada dupla se aninhou e se escondeu da forma que pode e desejou. Montaram cabaninhas e criaram tocas para ler. Disse a eles que a aprendizagem é um processo em que todos colaboram da forma que podem. Eles assumiram o cuidado com seus amigos de turma. Fiquei observando como lentamente quem ouvia ia escorregando pelo colchonete até deitar para ouvir atentamente as palavras lidas pelo amigo. E sem ter intencionado, naquele momento estabelecemos uma outra relação com aquele chão. Todas as vezes em que deitamos no chão da sala de leitura tinha sido para nos proteger do tiroteio. Pela primeira vez, não era o medo que nos levava ao chão. Era a terra nos ensinado a fortalecer vínculos. A professora da turma entra pensando que a sala estava vazia e se surpreende com a cena e os gestos. Sensivelmente, ela se retira sem ser percebida.
Nossa segunda ação era sentar ao redor da fogueira novamente. Agora a história seria lida por mim, e acompanhada por todos, cada um com um exemplar do livro nas mãos. Era uma solenidade, as chamas da fogueira de led aqueciam nossa roda. Comecei assim:
“Sônia Rosa, a autora do livro, dedica este livro aos seus dois sobrinhos-netos: Phelipe de Oliveira Nunes e Vitória Oliveira Silva. Eu, Veronica, dedico esta leitura aos meus alunos presentes sentados ao redor da fogueira comigo.”
Os tesouros de Monifa é a história de uma menina que, no dia de seu aniversário, foi escolhida para ficar com o “tesouro” de sua família. Monifa era o nome da bisavó da avó da menina. Monifa chega ao Brasil num navio negreiro e escreve muitos diários cheios de sonhos, rezas e canções. Minha voz tentou acompanhar a solenidade do momento, mas meus olhos decidiram por si só regar a terra. Não só os meus, mas muitos olhos regaram a terra naquele dia. À medida que líamos, mais perto ficávamos um dos outros. A roda logo se tornou um ninho. Uma mão pequena e macia colhia as lágrimas que me saiam dos olhos para não molhar o livro. Outras mãos me amparam os ombros e as costas. Mais um par de mãos percorriam minhas tranças.
Não me lembro de já ter chorado na frente de uma turma. No começo do ano eu era “a tia que dava colo” para as crianças que choravam na semana de adaptação. No meio do acampamento de leitura, eu era cuidada pelas crianças que entenderam que, no processo de aprendizagens, cada um coopera como pode. Passei então a receber cuidados. Eu li a história, e eles liam os bilhetes de Monifa.
Ao redor da fogueira, sentados no chão nos abraçamos no fim da leitura.
Alguém falou que no nosso acampamento só faltou uma coisa: “marshmallow”. Outro acrescentou que faltaram duas coisas: “marshmallow” e a mata. Antes que eu conseguisse formular resposta, Enzo, que parece nunca estar ouvindo o que falamos, disse: “Faltou só ‘marshmallow’ mesmo, a mata tá dentro da cabeça.”
Monifa significa “eu tenho sorte”. Cheia de mata dentro, ali eu era a pessoa mais sortuda do mundo.
Fotos: Wagner Clayton
11/06/2024
EU NÃO SABIA QUE ERA TÃO BONITO – por Veronica Pinheiro
“A GENTE PRECISA APRENDER A SE ENVOLVER COM A TERRA, COM OS NOSSOS RIOS, FLORESTAS E MONTANHAS.
Envolver não significa essa bobagem de interesse privado de ser dono daquele rio.”
Ailton Krenak¹
Choveu tanto na tarde e na noite do dia 04 de junho na cidade do Rio de Janeiro que perdi a conta das pessoas que mandaram mensagem perguntando se a visita ao Pão de Açúcar, dia 05 de junho, seria cancelada. Chegamos à segunda imersão do Percurso Aprendizagens: o encontro das crianças com as águas da Baía de Guanabara. Quando confirmado o encontro, não havia previsão de chuvas para o dia do passeio. A previsão mudou, mas optei por confiar nas águas e no Sol. O encontro não foi desmarcado. Saí de casa com muita chuva. Chegamos à escola para encontrar as crianças debaixo de chuva. No entanto, optei por confiar nas águas e no Sol.
Tania e Ericka, companheiras de sonhos e Sol, foram direto para o local de visita. “Veronica, aqui não chove. Muitas nuvens.” “Diga ao Sol que contamos com ele. Diga a ele que as crianças já já sairão da escola”. Café da manhã servido na escola, era hora de embarcar no ônibus rosa e reencontrar nosso gentil motorista.
Um acordo não palavrado ficou firmado na Favela da Pedreira: Se o ônibus rosa está presente, as crianças vão passear; logo é preciso que elas saiam e retornem à favela com tranquilidade. Os caminhos que levam à escola são desobstruídos para que nosso ônibus passe, somos observados do embarque até a saída do complexo. As crianças não percebem que a comunidade de alguma forma também muda sua rotina para que elas vivam dias de alegrias. Me comoveu ver que a comunidade e o poder paralelo se preocupa com o bem-estar das crianças e professores.
Saímos da escola. Não chovia mais. “Vamos subir e ver nuvens; com o tempo nublado não dará pra ver nada.” Ouvi, não respondi, pois confiava nas águas e no Sol. A caminho do Pão de Açúcar, passamos pelo Rio Acari. Nosso rio querido, que corta toda região da escola. Um rio largo que nos ouve. Um rio testemunha da vida e do terror imposto à região. Um rio que ainda guarda seus encantos, jacarés e capivaras. O Rio Acari é um dos maiores cursos de água do Rio de Janeiro, ele é o motivo do nosso passeio². Acari é tão forte que macrobiologicamente resistiu até pouco tempo. Nos despedimos do rio e seguimos viagem. Percorremos 40 km até o Pão de Açúcar. Subimos o Morro da Urca e o Morro do Pão de Açúcar para observar de cima as águas da Baía de Guanabara.
Durante a vivência, as águas e o Sol nos receberam como quem recebe parentes queridos. Não chovia, as nuvens se recolheram num outro lugar para que pudéssemos contemplar tudo quanto se era possível ver das alturas. O Sol nos guardou na subida e descida dos morros, seu brilho refletido nas águas encantou todo grupo. Foi a primeira vez que não vi medo nos olhos das crianças. As crianças se abraçavam e andavam de mão dadas. Sorriam sorrisos largos e duradouros. Tinha hora que eu jurava que via os sorrisos delas refletidos no mar. Algumas choraram. Duas choraram muito e não sabiam dizer exatamente o porquê. Ao contrário dos sorrisos, os choros eram curtos e breves. Tenho certeza de que era só o mar que mora dentro do peito e que não quis se conter.
Éramos 10 adultos no passeio, e lá entendi que não haveria mediação. Cada adulto tinha 4 crianças para acompanhar. Andávamos bem próximos, era dia de festa. Eu pouco falei, a natureza não carece de mediador. As águas, o Sol, as Plantas, os Pássaros, os Micos, o Vento falavam tanto, tanto, que me assustei com tamanha receptividade. Tudo chamava muita atenção das crianças, os aviões que pousavam bem na nossa frente, os turistas falando inglês, as plaquinhas que um amigo lia para o outro que não sabia ler. “Tá escrito que a baleia vai passar aqui até setembro” “Jura! É hoje? Lê direito e veja se tem dia.” A baleia não passou no dia 05 de junho.
Muita coisa foi curada em nós naquele dia. Há quem tenha horror em ouvir que a educação pode curar. Aprendi com os mais velhos quilombolas e indígenas que tudo pode ser cura: cantos, palavras, comidas, abraços, conselhos. Quando estávamos nos encaminhando para descer, um helicóptero pousou no heliponto do Pão de Açúcar.
“Tia, o que o helicóptero quer?”
“Ele não quer nada, meu filho.”
“Tia é tiro?”
“Não. São pessoas passeando, elas entram no helicóptero para passear e ver toda cidade de cima.”
O menino de 11 anos só conhecia o helicóptero no contexto da guerra urbana. A polícia no Rio de Janeiro tem uma frota de helicópteros. As aeronaves blindadas são utilizadas em operações policiais, e os meninos sabem que quando tem helicóptero é que a situação está pior que o habitual. O helicóptero da reportagem eles também conheciam. Mas helicóptero de passeio? De passeio, não. Isso porque a cidade separa. A cidade tem muros rígidos para excluir muitos e guardar alguns. O capitalismo determina os significados que os signos terão dentro de uma mesma cidade: para meu aluno, helicóptero significa perigo; para turistas, diversão.
“Mas a minha observação sobre as cidades é que elas funcionam como um verdadeiro sumidouro de energia.” Ailton Krenak
“Tia, então a gente tá na Europa?”
A pergunta me doeu o peito, não pelo desconhecimento geográfico. Mas por esse menino entender que não faz parte daquele Rio de Janeiro. Porém era dia de festas e encontros de vida. Mais uma vez a vida presente na natureza, a mesma vida natureza que sustenta o menino, nos abraçou novamente. Suspensos no ar, dentro do teleférico éramos só gente, ar, montanha, água, pássaros, Sol e água. O mesmo menino chorou abraçado à diretora da escola. Ele me disse que não vai esquecer de cuidar da natureza.“Tia, eu não sabia que era tão bonito.” “Você é natureza, igualzinho a essas montanhas e as águas da baía.”
Esse passeio inaugurou um outro movimento de conversas sobre a vida das pessoas e sobre a vida dos rios na escola.
Ahh, quando descemos do bondinho, as nuvens recobriram os céus naquele lugar. Pedi a chuva para esperar a gente voltar pra casa. Ela nos ouviu.
Quando foi transferido o sentido da vida para ter coisas, a gente já começou a se afastar da Mãe Terra. Essa mãe maravilhosa que chama a atenção da gente, inclusive para falar: “Ei, vocês estão vivos”. Quando uma mãe dá uma bronca dentro de casa, ela não está só dando uma bronca para a gente não estragar a casa, ela está dando uma bronca para dizer: “Vocês estão vivos”. Pra gente não se alienar do sentido de estar vivo. (Ailton Krenak)
Fotos: Ericka Hoch
__________________
¹ “Trocamos nossa humanidade por coisas.” https://revistatrip.uol.com.br/trip-fm/ailton-krenak-trocamos-nossa-humanidade-por-coisas
² “Cadê o rio que estava aqui?” https://selvagemciclo.com.br/diario-de-aprendizagens/#tab-1717677150043-1
04/06/2024
ESSA SEMANA NÃO RECEBI BILHETES – por Veronica Pinheiro
A escola está fechada. Hoje não tem foto. Essa semana não vi as crianças. A escola está fechada. O acesso está mais difícil que o comum. “Usem crachá”. “Esperem antes de sair de casa”. Não saia de casa!
Alternamos entre semanas de encantamentos, euforia, alegrias e medo. Perigo difuso. Perigo concreto. Esta semana não recebi bilhetinhos, nem abraços de braços curtos.
Essa semana me lembrou meus primeiros dias na escola. Na ocasião, a sala de leitura ainda não podia ser usada. Em uma caixa colorida, eu colocava os livros que leria com as turmas em sala de aula. Levava na caixa livros para todas as crianças. Onde eu estivesse com aquela caixa, lá estava a sala de leitura. Era um exercício, meu e das crianças, de transformar o lugar. A mágica sempre estará no encontro. Formada a roda de leitura, a gente podia estar e ser o que bem quisesse.
No primeiro mês de aula, lemos juntos Manu e Mila, de André Alves. Numa turma do 3º ano do Ensino Fundamental, distribuí os livros para crianças de 7 e 8 anos de idade. Alfabetizadas em português, ou não, todas recebem um exemplar do livro. Se tem uma coisa que criança que não lê faz com facilidade é imaginar. Enquanto não somos obrigados a enquadrar o que pensamos, sonhamos e sentimos sem regras gramaticais, confiamos no repertório interno com muita força. O repertório interno é todo um mundo que a criança traz de casa – as brincadeiras, as crenças, os saberes, os sabores. A escola regular, em muitos momentos, ignora a vida vivida pelas crianças e trabalha para que elas façam o que a Base Comum Curricular espera delas.
Quando entrego livros nas mãos das crianças, digo que, mesmo que elas não entendam as palavras, podem ler cores, desenhos, símbolos e traços. Elas podem também fingir que estão lendo. Podem inclusive fechar os olhos e dormir enquanto eu leio. Antes que alguém julgue absurda a permissão que dou às crianças, trago uma informação: alguns alunos moram em locais onde acontecem bailes e festas que começam às 21h de um dia e terminam às 8h da manhã do outro dia.
Antes de iniciar a leitura digo tudo o que pode. Num ambiente que se especializou em dizer o que não pode, poder é subversão. Lemos em voz alta e com brilho nos olhos Mila e Manu, a história de dois amigos que procuravam a “ALEGRIA”. Foi uma leitura delicada que plantou pensamentos bonitos nas crianças e em mim. Durante a leitura, recebi dos gestores da unidade uma notificação de perigo e que as crianças não poderiam sair das salas. Corredores e banheiros são nossos lugares mais vulneráveis. Lembro de terminarmos a história deitados no chão da sala porque o tiroteio estava muito perto. Lembro de compartilhar um cuidado que eu não sabia que era capaz de compartilhar. Lembro de desejar de todo coração nunca mais ver as crianças deitadas no chão para se proteger de tiros.
Lembro também de passar 2h em absoluto silêncio ao chegar em casa; era um silêncio da boca pra fora porque dentro existia uma barulheira de causar medo. Fazia tempo que eu não sentia medo. Medo por mim, que saí da zona de perigo. Medo pelas crianças que dormiriam lá.
Quatro meses depois desse episódio, recebemos orientações para ficarmos em casa. Apenas um dia na semana a escola abriu, mas as crianças não apareceram. Eu estava lá com tintas, livros e uma fogueira artificial. Comprei uma fogueirinha de LED que simula chamas reais. Uma tentativa de aquecer os corações gelados de medo. Mas as crianças não estavam lá. Sentada à beira da fogueira de faz de conta, ouvi a voz de uma professora que pouco fala comigo. Ela entendeu o convite, conversamos a manhã inteira, ela me contou de suas turmas e trajetória em escolas. Descobrimos, por conta da fogueira, que temos muitos sonhos em comum. De alguma forma, nos aquecemos uma à outra… Saí da favela cantando um samba antigo de seu Nelson Cavaquinho. O mesmo samba que eu cantava quando eu era jovem e voltava tarde da universidade. Eu cantava para espantar o medo de subir sozinha o morro onde eu morava. Cantava para aquecer o coração e espantar o medo, assim meu avô ensinou. No último dia de escola aberta, cantei para sair da escola.
“Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha estação primeira
Não sei quantas vezes
Subi o morro cantando
Sempre o Sol me queimando
E assim vou me acabando
Quando o tempo avisar
Que eu não posso mais cantar
Sei que vou sentir saudade
Ao lado do meu violão
E da minha mocidade”
Enquanto escrevo, recebi a mensagem que podemos retornar. Que sejam bons os dias que virão.
Awrê
28/05/2024
LER A TERRA – por Veronica Pinheiro
Me lembro da conversa que tivemos com o barro no encontro Cosmovisões da floresta, no dia 13 de maio de 2023, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio). O encontro entrelaçou os projetos Ore ypy rã – Tempo de Origem e o Selvagem em um dia de exposição e atividades com cantos, danças, conversas. Diante de um vaso de cerâmica marajoara, Francy Baniwa começou a falar sobre como as mulheres Baniwa conversam com a argila, que é um ser muito antigo e sagrado. De onde eu venho, o barro também é sagrado. Lembro do barro vermelho que cobria toda a comunidade e de como tocávamos com a mão no chão e no coração antes de dançar ou jogar capoeira. Lá em casa, o barro era nossa avó; berço originário e colo derradeiro. O barro só era colhido mediante as necessidades. Levei isso para as oficinas com argila.
Andando pelo bairro de Costa Barros, onde a escola está localizada, entre barrancos e barracos, a quebrada do terreno ocasionada pela chuva, deslizamento ou pela ação do homem revela as cores guardadas na terra. Texturas e tonalidades de marrom e matizes avermelhadas colorem e revelam propriedades físicas, químicas e mineralógicas do solo. Durante o planejamento das oficinas de plantio das espécies frutíferas da Nhe’ëry com Gerrie Schrik, me foi feita a seguinte pergunta: Como é o solo da escola? Não tendo as respostas técnicas, pude falar com detalhes sobre o que vi. E via as cores da terra nas escavações e barrancos. Olhar pra terra é uma prática que tento passar para as crianças.
“Ninguém fazia análises de solo, conhecíamos o solo só pelo olhar. Só de olhar para a terra já sabíamos o que plantar. Conhecíamos a vegetação. Numa terra que dá muita leguminosa nativa, plantava-se feijão; numa terra que dá muita gramínea nativa, plantava-se milho e arroz. É a linguagem cósmica. É simples. Não é preciso fazer análises de solo porque a terra já diz o que está disposta a oferecer.” Nego Bispo
A terra diz. Passamos na escola uma semana olhando a terra. As crianças e eu. Faixas de terra ao redor da escola que não foram cobertas pelo cimento foram os textos da semana. Em sala, eu e as crianças lemos e conversamos sobre a “Carta da Terra”. Curioso, as crianças nem sabem mais o que é uma carta. Elas escrevem recadinhos em papéis pra mim, mas chamam o bilhete de mensagem. Expliquei o que era uma carta, para que servia e como era composta. “A Terra pode escrever uma carta?”, “Não! ela não tem braços nem mão. Ela deve ter ditado e alguém escreveu: tipo Deus com Moisés”.
Depois de muita conversa, saímos quintal afora. Parecia uma expedição: cadernos, canetas, um galho para apoiar na subida. O livro estava fora da sala de leitura. Lemos o livro mais antigo de todos: lemos a terra. Por um tempo, só observamos as cores do solo; por outros, só os pequenos insetos e animaizinhos que viviam ali sem que ninguém notasse. “Tia, mora muita gente aqui!”, “Eu sei, você acha que a escola só tinha móveis e livros? A escola é habitada por seres vivos mesmo quando nós não estamos nela”. Formigas, lagartos, aranhas, plantas, muitos pássaros. As crianças do 1º ano se espantaram. Elas não sabiam que tantos pássaros diferentes visitavam aquele quintal no final da tarde. Ficamos sentados em silêncio no meio da quadra depois da história contada. Eu disse que eles receberiam visitas. Visitas aladas, coloridas e cantantes. Tive a sensação de serem as mesmas aves que me acordam em casa. Certamente, não são as mesmas aves, mas é bonito pensar que elas me acompanham até a Pedreira.
Tentei conversar com o senhorzinho que está sempre plantando num pedaço de terra no alto do morro. Certamente ele é a pessoa mais adequada para falarmos sobre as oficinas de plantio e de pigmentos de terra. Ele se relaciona diariamente com a terra: eu vejo quando passo às 7h da manhã pelo seu quintal. Numa região com o segundo menor índice de desenvolvimento humano, existe um homem farto de verde. Solo-planta-homem suspensos e escondidos no verde à beira do asfalto. Enquanto a insegurança alimentar diariamente circula entre a população local, o senhor, que não se desconectou da terra, cuida e é cuidado. Marcamos de visitá-lo, pretendemos chegar com uma cesta de delicadezas, e de alguma forma ser gentil com quem gentilmente pisa sobre a terra.
Pretendemos também levar para ele um quadro pintado com tintas preparadas com as terras do território e da escola. E de alguma forma estabelecer ali um diálogo tendo como partida nosso berço comum: a relação com a terra. As oficinas são movimentos iniciais, são sementes. Germinando as sementes, algumas memórias de vida são despertadas. A vida despertada está no território, nas memórias guardadas na terra e adormecidas nos corpos. Ao estabelecermos uma parceria com uma escola de ensino regular, sonhamos com a ideia de escolas vivas em ambientes urbanos e periféricos. Trazemos como proposta o fortalecimento do território, dos saberes e das práticas de vida que lá existem. Nesse movimento, tentamos identificar quem são os guardiões do bem viver; quem são os seres, que em meio a tantas dificuldades impostas, guardam práticas que sustentam cosmologias ancestrais.
Não existe um modelo único de oficina aplicável para toda e qualquer escola e território. Já compartilhamos oficinas de tintas naturais em outros momentos. Para as crianças da escola Escragnolle, partimos da “Carta da Terra” e chegamos aos pigmentos e pinturas. Ao convidá-las a aprender mais sobre o lugar onde elas vivem, ouvi repetidamente as histórias de violência e medo. Perguntei se elas sabiam de onde eram aquelas tintas da oficina. Algumas crianças desconfiaram que a tinta era barro. “Parece tinta, mas tem cheiro de terra”. Perguntei se elas sabiam que a terra da região da escola era uma terra cheia de cores. Perguntei se elas conheciam o senhor gentil que conseguia ter uma forma diferente de ser e viver na favela. As crianças, assim como os pássaros, sabem de muita coisa. Os pequenos me trouxeram o nome e uma possível data de visita ao senhor.
As crianças disseram que não sabiam que era importante conhecer de terra, de plantas e de quintal. Durante a semana as crianças me presentearam com terras, urucum e flores pigmentadas. Presentes de crianças da Pedreira. Talvez os mais bonitos que já recebi na vida.
Agora estamos mapeando os caminhos verdes da favela. As cores da terra do quintal da escola pintam de amarelo e tons de vermelho os mapas da vida da Pedreira.
Fotos: Wagner Clayton
21/05/2024
SERÃO PERMITIDAS APROPRIAÇÕES E RELEITURAS – por Veronica Pinheiro
“Não tenho nenhuma perspectiva com relação a um novo mundo. Eu não acredito num novo mundo. Eu acredito que nós vamos ter que resolver o que a gente vai fazer com este que a gente está estragando. A ideia de um novo mundo está dentro de uma lógica que sugere que o meu sapato acabou, eu compro um novo.”
Ailton Krenak
O ano: 2024. As duas reflexões chegaram a mim no mesmo dia: a primeira, um vídeo, do qual transcrevi um trecho da entrevista de Ailton Krenak; a segunda, um edital da Mostra Municipal de Multilinguagens, de onde copiei a frase que intitula este texto.
Esta semana o diário seria sobre a oficina “Cores e terra – pigmentos e pintura”. Porém, no último dia da semana, ainda em expediente, recebi o edital da 4ª Mostra Municipal de Multilinguagens. Minha tarefa era entender como poderíamos inscrever a escola e os trabalhos que estamos desenvolvendo na mostra. Não sei vocês, mas eu leio editais e me atento às miudezas e aos detalhes. Eram tantas orientações pedagógicas somadas a um punhado de siglas e objetivos gerais e específicos. Assumo aqui que sou cismada com leis, diretrizes e pedagogias. As práticas, o não dito, o estabelecido, as escolhas e o fôlego das propostas me interessam mais. A princípio, li para entender em qual linguagem artístico-pedagógica poderíamos inscrever a escola (dança, teatro, música e/ou artes visuais). Depois não consegui parar de pensar sobre o que li.
O tema da mostra – Brasil e seus brasis, a influência dos povos originários na formação da nossa identidade cultural brasileira, à luz da Lei 11.645¹ – tem uma série de agendas a cumprir. Era tanta demanda bonita (competências para o século XXI²; conjugar os 4Cs³; trabalhar temas transversais⁴; incluir a questão sócio ambiental e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS⁵; ampliar visão de sociedade e de mundo; focar na Agenda 2030 com a Coordenadoria de Diversidade⁶; não esquecer da Base Comum Curricular – BNCC⁷; implementar a Lei 11.645) que até fiquei tonta.
Este texto poderia ter parado no título. Entretanto, convido a todos a pensar em como a gente vai resolver este mundo que estamos estragando. “Serão permitidas ‘apropriações’ e ou releituras’”. Esta frase me saltou aos olhos, automaticamente disse: “não entendi”. Ou entendi tudo. A sentença (frase ou oração; intencionalmente escolho a palavra SENTENÇA) escrita na página 15 do edital diz tanto sobre as relações étnico-raciais propostas pelas instituições e suas escolhas pedagógicas. Porém as instituições são compostas e representadas por pessoas. E como pessoas podemos juntos pensar em possibilidades para reescrever perspectivas e realidades.
Não há neutralidade num texto. Aprendi estudando linguística que em cada signo “dorme um monstro”. Se me atento ao não dito, como ignorar o dito? O escrito?
“O corpo de um negro ou de um índigena está impregnado de cultura e memória, traz as marcas de dor e sofrimento que a colonização impingiu. Essas peles não são fantasias. Portanto, apropriação cultural não é homenagem, é violência simbólica exercida de forma sutil ou explícita. Ninguém tem o direito de usar um cocar e pintar a cara enquanto apoia o genocídio indígena. Um branco não pode cantar samba e continuar destilando racismo.”⁸
Certamente alguém vai tentar explicar e apresentar contextos para justificar a sentença que tanto me doeu os olhos. Pode até explicar, mas quem valoriza documentos e papéis não sou eu. Meu povo guarda memórias e saberes em cantos, em práticas e em rezos. Não sou eu quem exige que tratados e acordos sejam validados por escrito e protocolados. São as instituições. São as instituições que dizem “vale o que está escrito”. E estava escrito:
“Serão permitidas ‘apropriações’”
E se está escrito pode ser reescrito. Que possamos, a partir de 2024, ressecrever coletivamente os caminhos e as possibilidades de coexistência. Toda cultura é resultado de anos de interações sociais e naturais; por isso, a afirmação da identidade é um movimento orgânico. É importante ouvir mais; por exemplo, ouvir como pessoas indígenas gostariam de ser apresentadas e representadas. Muita gente não sabe que um grafismos não é apensas uma pintura; tantas outras, desconhecem que um canto pode trazer memórias antigas e palavras de cura. Que em 2024, possamos entender que a melhor forma de honrar uma tradição é fortalecendo os territórios e respeitando todas as manifestações de vida presentes neles.
²https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000234311
³O conceito dos 4C’s foi apresentado pela associação National Education Association (NEA), em complemento às atividades do “21st Century Skills”, movimento educacional do século 21 que visa capacitar os educadores para avançarem em sua própria prática. Os 4Cs são: pensamento crítico; colaboração; comunicação; criatividade.
⁴ Os temas transversais definidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais são: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Temas Locais. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/implementacao/contextualizacao_temas_contemporaneos.pdf
⁵ São 17 os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pelas Nações Unidas. http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel
⁷ http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
⁸Apropriação cultural / Rodney William. — São Paulo : Pólen, 2019.
14/05/2024
SUMAUMANOS – por Veronica Pinheiro
“Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”,
“Todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”.
Às 7h30 do dia 07 de maio de 2024, a diretora, como todos os dias, abriu o portão da escola. No lugar de “bom dia”, ouvimos: “Não dormi de tanta alegria! Eu queria que amanhecesse logo pra vir pra escola.”
Pronunciadas as sentenças, ouvimos vozes sequenciadas como num jogral: “Eu também”. “Eu também”. “Eu também”.
Não reforcei o coro, mas eu também.
Era o dia da primeira imersão do Grupo Aprendizagens. Nosso destino: Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Nesse movimento de despertamento de memórias, provocamos encontros. Alguns são entre espécies, outros não. Para nossa imersão pensamos no encontro das crianças com as árvores. Tínhamos um roteiro alinhavado: receber as crianças na escola; café da manhã; embarque no ônibus; chegada no Jardim Botânico; visita ao museu e à exposição Mbaé Kaá; passeio no jardim; piquenique; meditação e jogos teatrais; retorno à escola; e almoço. Uma linha longa e sensível prespontava de verde nossas expectativas.
Se “só existe o experimentar e o resto não nos diz respeito”¹, o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza, que também somos? Muito provavelmente, chegaremos ao último diário do ano, em dezembro, sem a resposta, mas essa pergunta nos move. Repetidas vezes falamos em semeadura; em palavras germinantes. No cenário ideal, quem planta uma roça sabe o que vai colher e sabe o tempo de colheita do que foi plantado. E quem planta sonhos? Encontros? Quem planta água, árvores e florestas?
Levar as crianças ao Jardim Botânico para que elas encontrassem as árvores não compõe uma estratégia pedagógica. É muito mais simples: toda criança tem o direito de saber que é natureza e de ter acesso às manifestações do mundo natural.
“Tia, isso não é tiro. É fogos. Fica tranquila.” “Tia, esse barulho é do helicóptero da reportagem, o helicóptero da polícia tem outro barulho.” Na favela da Pedreira, muitas crianças de menos de 10 anos sabem reconhecer os sons do horror e da guerra. Porém, não conhecem os sons resultantes do encontro do vento com a copa das árvores. No dia 07 de maio de 2024, dia do passeio, a favela amanheceu tranquila e o Sol apareceu cedinho e bem quente, apesar de estarmos no outono. A última terça tinha gosto de docinho de festa.
Da escola, éramos um total de 42 pessoas². Do Grupo Aprendizagens, 6³. 1 ônibus rosa-choque e 1 motorista super gentil. A cor do ônibus é estratégica, precisamos entrar e sair da favela em segurança. O tal ônibus rosa se tornou uma personagem querida entre crianças e adultos, ele já ganhou nome e sua visita está sendo aguardada por outras turmas da escola.
A visita ao jardim começou e terminou diante da Sumaúma (Ceiba pentandra). No começo, “Sumaúma: Copa, Casa, Cosmos”, obra de Estevão Ciavatta com narração de Regina Casé, nos imergiu virtualmente na Sumaúma. Fomos recebidos pela equipe do educativo do Museu; Daiani Araújo e Thalyta Sousa receberam as crianças com muita delicadeza e conduziram todo o grupo até a obra Sumaúma. Na sala de projeção, todos, sem exceção, ouviram com o coração as palavras da árvore. Pela primeira vez, muitos dos presentes se deram conta que uma árvore tem muito a dizer sobre si e sobre a vida. Alguns quase não piscavam, outros ouviam de olhos fechados. Todos sorriam com lábios e olhos.
“Tia, faz o mapa pra chegar da escola até aqui. Quero trazer minha família pra ouvir a árvore.”
“Farei um mapa do metrô da Pavuna até aqui. Será muito fácil chegar.”
Subimos as escadas de madeira em pequenos grupos de 7 pessoas e no segundo andar, dentro da exposição Mbaé Kaá aprofundamos algumas conversas sobre plantas e a relação dos povos indígenas com elas, ao redor da instalação Jardim Viva Viva. Arte Guarani, natureza, ciência, Barbosa Rodrigues e as janelas do prédio. Após a conversa sobre a exposição, as crianças correram para janela. Ali me toquei que as janelas das salas de aula da escola não têm vista. O gesto coletivo de olhar para fora trouxe uma inquietação ao grupo. Muitos encontros estavam por acontecer. Abraços entre crianças e educadores do museu encerraram a primeira parte do passeio.
Dentro do Jardim, as crianças olhavam pra todas as direções possíveis. Enxergavam com olhos, ouvidos, pés, pele e coração. Pausa para admirar a água fresca descendo das pedras. Pausa para sentir o frescor das águas. Por um minuto ou mais não ouvi vozes; corações e bocas se calaram para o olho ver direito. Findo o silêncio que saudava as águas, aos poucos a euforia tomou novamente o grupo. “Não vou mais lavar essa mão aqui. Toquei na água da cachoeira.” Não falei nada. O menino acreditava que tinha tocado as águas, mal sabia que as águas tinham tocado nele. Ele agora carrega água fresca dentro, lavar ou não a mão é detalhe.
“Tia, o bambu falou!” Antes que eu tecesse algum comentário…
“Por que não tem panda lá em cima?”
Antes que eu falasse qualquer coisa… um peixe gigante, o tambaqui que vive no Lago Frei Leandro, se tornou mais interessante que a resposta. Caminhamos por alguns minutos, atravessamos a pequena ponte e o pequeno portal para o parquinho das crianças. Lá, tivemos uma pausa pro lanche e para meditação. Cantamos pra Terra. De olhos fechados fomos árvore. Raízes. Tronco. Galhos. Folhas. Nosso passeio se aproximava do fim, era hora de retornar ao ônibus. Pegamos um caminho diferente dentro do jardim, não poderíamos ir embora sem encontrar a Sumaúma plantada no Jardim.
Com raízes muito profundas que trazem água para a superfície mesmo na época seca, a Sumaúma é considerada a mãe da floresta e pode chegar a 70 metros, o que equivale a um edifício de 24 andares. De onde eu venho, na sumaúma vive Iroko, (do iorubá Íròkò) que é guardião da ancestralidade e dos antepassados, seio da natureza e morada de todos os Orixás; primeira árvore que se fez plantar na Terra. Muitos povos indígenas afirmam que as grandes sapopemas da sumaúma representam um portal para outro mundo. Uma árvore sagrada para diversos povos da floresta, uma grande mãe, que protege todos. Os Huni Kuï dizem “Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”, “todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”. Num espaço pluriversal de diálogos, a sumaúma é tudo isso e mais um pouco.
Li um documento da EMBRAPA sobre a Sumaúma e pensei que a equipe que escreveu o texto para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento deveria ter visitado o Jardim Botânico do Rio junto com as crianças, pois os técnicos do governo só conseguiram apresentar ao público os múltiplos usos e alternativas econômicas sobre a sumaúma. As crianças não. Assim como os babás e pajés, as crianças se conectaram com a árvore. Sonhos e seiva se misturaram. À medida que nossa roda se formava ao redor das sapopemas da sumaúma, memórias verdes eram despertadas. Em tempo de sonho, meus pequenos companheiros sonharam ser árvore e viver num jardim. Sonho é seiva, líquido que circula mantendo o tempo circular. Num tempo de seiva, Angélica de 10 anos chegou à seguinte conclusão: “Encontramos a árvore, entramos dentro dela agora somos SUMAUMANOS”.
Voltando à pergunta que nos movimenta: o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza que também somos? Segundo a menina Angélica, podemos virar um pouco árvore.
¹in Mbaé Kaá o que tem na mata: A Botânica Nomenclatura Indígena, de João Barbosa Rodrigues. Dantes Editora, 2018.
² 37 alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, 3 professores, coordenadora pedagógica e diretora adjunta
³ Luany da mediação de visita ao Jardim; Paula Novaes da mediação de atividade de respiração e jogos teatrais; Tania Grillo da mediação durante a exposição Mbaé Kaá, e 3 integrantes da equipe de voluntários, Bia Jabor, Eliane Brígida, Evellyn.
Fotografia: Éricka Hoch;
Coordenação e medicação nas atividades de Veronica Pinheiro .
07/05/2024
DE SOL EM SOL – por Veronica Pinheiro
Foto: Wagner Clayton
Todo MUNTU (ser humano) é o Sol vivo, percebido como um “poder”, “um fenômeno da veneração perpétua, da concepção à morte” e além. Uma vez trazido ao mundo físico se inicia uma tarefa sagrada (a mais importante para civilizações africanas): cuidar desse MUNTU para que ele brilhe como o Sol do meio dia.¹
Observe: a cosmologia africana dos Bantu-Kongo, ideia compartilhada pelo dr. Fu-Kiau, apresenta o cuidado com as crianças como uma arte que precisa ser honrada.
Pensando no universo escolar, ser professor de crianças é uma atividade considerada de menor prestígio na sociedade brasileira; uma atividade realizada geralmente por mulheres e por pessoas de baixo poder aquisitivo. Existe uma hierarquia estabelecida entre os profissionais de educação e quem leciona na Educação Infantil e Ensino Fundamental são desrespeitados dentro da própria categoria. É comum um professor universitário se ofender ao ser perguntado em que escola ele trabalha. “Escola? Não trabalho em escola. Sou professor da Universidade fulana de tal.”
Curiosamente, muitos professores que se apresentam publicamente como decoloniais (ou contra-coloniais) são apegados ao pensamento hierárquico europeu, que vê a educação infantil e o Ensino Fundamental como um lugar de menos prestígio intelectual.
A professora Jacqueline Siano esteve presente na minha banca de qualificação do mestrado, ela fez a seguinte observação: “Você pesquisa confluências afropindorâmicas e práticas contracoloniais no ensino. Você precisa voltar para escola!”
Voltei.
Volto prenhe de caminhos e possibilidades. Trago no coração algumas ideias para adiar o fim do mundo. Há quem diga que volto pluriversalizada. Eu digo que volto povoada. Povoada por seres, narrativas, tempos e espaços. Tenho andado cada vez mais acompanhada. Nesta volta, muitas memórias foram despertadas no corpo de carne e no corpo memória. Nessas memórias, conheci e despertei memórias solares.
Quem é o Sol? Quantas narrativas conhecemos sobre sua origem, a origem do mundo e sua participação como fonte vital de energia?
Eu trazia duas memórias solares: a de casa, repetida em versos e nas práticas diárias, que me dizia que nós éramos como o Sol; a da escola dizia que o Sol é uma estrela localizada na Via Láctea, a estrela mais próxima do planeta Terra e a maior de todo o Sistema Solar. A escola dizia que era impossível que eu fosse Sol. Como a escola é autorizada a dizer o que é certo e errado, esqueci que era Sol e fiquei com a versão da escola. Essa visão reducionista de existência apaga sóis em dia pleno.
Kuaray (Guarani); Abe (Desana); Mãyõn (Maxakali); Kamoi (Baniwa); Sol (Português); Bari (Huni Kuin); Pawa (Ashaninka); Wei (Macuxi) são mais que palavras utilizadas para designar o Sol; são epistemologias solares. Palavras geradoras, acompanhadas de vida e mundos. Tenho um gosto especial por narrativas que começam com “Antes o mundo não existia”. Esse tempo antes do tempo existir traz ensinamentos profundos de cuidado e manutenção da existência. Os mitos de origem não existem para alimentar os ouvidos do mundo, mas para vibrar vida.
Despertando memórias solares, alguns vazios foram preenchidos com escutas e pesquisas; em breve o Ciclo Sol apresentará uma série de falas sobre o Sol². O pensamento lá de casa reapareceu em livros e teses. “Deixa meu Sol aceso”, fala de meu pai, apresenta vestígios de uma filosofia antiga, trazida ao Brasil por pessoas negras durante a travessia do Atlântico entre os séculos XVI ao XIX (tráfico de pessoas promovido por Portugal é a expressão mais precisa). No pensamento Bantu-Kongo, quatro grandes “sóis” regem os processos de formação e mudança. O primeiro (Sol Musoni) é o Sol do “ir para”, todos os começos; o segundo (Sol Kala) é o Sol de todos os nascimentos; o terceiro (Sol Tukula) é o Sol da maturidade, liderança e criatividade; o quarto (Sol Luvèmba) é o Sol da última e maior mudança de todas, a morte¹.
Nunca empreguei tanto a palavra Sol no plural quanto nesses últimos dias. Plural em significados e existências. Coexistências continuamente formando, mudando, expandindo. De sol em sol, se pensarmos no processo de solar de formação Bantu-Kongo, o Grupo Aprendizagens encontra-se no segundo sol. Estamos nascendo. Nascendo e propondo nascimentos. Para isso, temos semanalmente reuniões de planejamento e estudo (com pessoas da equipe Selvagem); mensalmente nos reunimos com os professores da escola parceira e com os voluntários do grupo.
Foto: Wagner Clayton
Nosso último rompimento, foi receber na escola a visita da ceramista Angélica Arechavala (voluntária que acompanhou o Grupo Crianças e agora apoia o Grupo Aprendizagens). Pode parecer simples, mas a escola está localizada numa região desfavorável para receber visitas. Nossa ideia é estreitar parcerias e criar uma rede orgânica entre territórios, isso inclui trazer pessoas de fora para conhecer a comunidade escolar e levar a comunidade escolar para conhecer outros lugares.
Para que mais um Sol vivo fosse incluído na mediação das oficinas de cerâmicas, contamos com a articulação da escola, que disponibilizou pessoas para buscar Angélica e trazê-la pelo caminho mais seguro. Ao compartilhar com um cientista a potência daquele encontro que durou 10 horas, recebi o seguinte comentário:
“Os objetos dobram o espaço-tempo, sentem essa curvatura e se movem de acordo. Você é um sol. A chegada da ceramista adiciona um novo sol além de você. Isso desloca a posição do primeiro sol, e principalmente dos demais planetinhas que são seus aluninhos kkkkkk que estavam acostumados à configuração anterior. Por isso, eles estavam mais próximos girando e orbitando em torno de você”.
O que teve de tão potente nesse encontro? Eu pude sentar e tocar em crianças que geralmente não me permitem muita aproximação. Crianças que conhecem o horror bem de perto confiaram em nós no último encontro. Era um ambiente de muita confiança e cuidado: direção, coordenação e professores nos acompanharam em todo tempo, em cada espaço. A presença de Angélica dobrou o espaço-tempo, gerando deslocamentos solares. Estamos caminhando para gerar Tukula, o Sol da maturidade. Que ele chegue em boa hora.
“O Sol caminha devagar, mas atravessa o mundo” – Provérbio Africano
¹Fu-Kiau, Kia Bunseki e Lukondo-Wamba, A.M. KINDEZI: A Arte Kongo de Cuidar de Crianças. Com introdução de Marimba Ani. Tradução para o brasileiro por Mo Maiê. Rede Africanidades
²O Ciclo é composto por 19 falas pluriversais de Catarina Delfina Tupi-Guarani, Fabio Scarano, Moisés Piyãko (Ashaninka), Catarina Aydar, Carlos Papá (Guarani), Aliny Pires, Dua Busë (Huni Kuin), José Miguel Wisnik, Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Júlia de Carvalho Hansen, Francisco Baniwa, Aza Njeri, Anacleto Tukano, Carla Wisu (Dessano), Camila Mota, Marcelo Gleiser, Eduardo Góes Neves e Ailton Krenak.
30/04/2024
O SOL SONHAVA AMANHECER – por Veronica Pinheiro
“Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou o Sol
Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou a água, o vento, a vida no planeta
Por isso você não pode ter medo do escuro.
O escuro é a mãe de todo o universo, inclusive de Deus.
O escuro não escolhe ninguém.”
Poética Guarani narrada por Carlos Papá¹
Foto: Veronica Pinheiro
O diálogo a seguir abre caminhos para a segunda Oficina Aprendizagens, que o Selvagem pensou para a Casa das Crianças:
- Preciso de uma sala escura.
- Não temos uma sala escura. Você não pode usar a Sala de Leitura com a luz apagada?
- Posso. Mas ela não é escura o suficiente. E se alguém, sem querer, acender as luzes da sala, perdemos esta etapa do trabalho.
- Crianças têm medo do escuro.
- Crianças têm medo da relação que criaram para elas com o escuro. Vai dar certo, elas estarão carregando o Sol dentro do peito. Vamos construir uma boa relação com a escuridão.
- Tem a antiga salinha do médico. Não sei se é escura o suficiente, mas eu te levo lá.
A salinha do médico ganhou camadas de tecido preto, gentilmente colocadas pelo professor Wagner, tornando-se o nosso laboratório de imagens e sons. A oficina era sobre o Sol e a relação de vida que ele estabelece com a Terra. A palavra “relação” aparecerá escrita ou subentendida em todos os textos do diário, e não será por descuido. A oficina, mais especificamente, era de cianotipia, processo fotográfico artesanal, criado no século XIX, que utiliza sais de ferro para a produção da cópia fotográfica em tons de azul. A sala cedida, inicialmente, era para a preparação dos químicos, para sensibilizar e secar os papéis na primeira etapa. E, para a impressão das imagens, a luz do Sol. A sala está se tornando um lugar para pensar sobre as coisas que sentimos quando estamos longe da luz. Para as crianças, luz significa bem, coisa boa; e escuridão significa mal, coisa ruim. Entre a luz e a escuridão, o pensamento euro-cristão-monoteísta criou distâncias fixas preenchidas por medos.
A escolha das oficinas é um grande apanhado de inquietações. Buscamos atividades em que a natureza seja protagonista. E nos concentramos para que o protagonismo não se confunda com utilidade ou recurso. Cuidamos para que ninguém pense que usamos a luz do sol para revelar fotografias. Não usamos a natureza, somos seres compartilhantes. Diante do sol os corpos dançam – o corpo da água, dos humanos, das plantas, dos sais. De que nos adiantam atividades onde há uma ebulição sinestésica, que, no final, só gera prazer aos humanos e ofende às árvores, às águas, à terra?
Foto: Wagner Clayton
Antes da oficina de fotografia artesanal, conversamos sobre os textos que a luz do Sol escreve na terra. Falamos sobre escuridão (de onde saímos todos), sobre fotossíntese, foto e sínteses. Três textos foram compartilhados com os alunos da escola: A vida do sol na Terra¹, Iori descobre o Sol e Taynôh, Ho Shamêh Tahe. Um vídeo sobre o Sol foi exibido. Pintamos o Sol em tecidos de algodão; tecemos raios solares para pulseiras; fizemos registros fotográficos; sensibilizamos papéis no laboratório escuro. Com qual objetivo? Despertar memórias solares.
A escola constrói esquecimentos. Por anos, acordei antes do Sol, chegava na escola bem cedinho e voltava para casa quando o Sol já estava se pondo. Trabalhava na escola e ensinava sobre as coisas da vida. Naquela época, estive tão distante do Sol que meu corpo se esqueceu de muita coisa. Desaprendi a suar e a produzir vitamina D. Meu corpo tinha falta de Sol.
Se a escola constrói esquecimentos, contamos histórias para acordar sentidos e memórias.
“Se tiver dificuldade para achar o caminho, pergunte a meu filho Kuaray, o pequeno Sol, que ele saberá guiar vocês.”¹
Em diálogo com o mito Guarani, conhecemos um pouco sobre Kuaray, filho de Nhanderu’i. Conversamos sobre caminhada e escuta.
A mãe do Sol em algum momento parou de ouvir o Sol porque ficou furiosa quando foi picada no dedo por uma enorme abelha mamangava.
Foto: Wagner Clayton
Os pequenos sóis que estavam diante de mim quiseram falar. Eu parei para ouvi-los. Eram narrativas silenciadas. Compreendi ali um pouco da relação deles comigo e com a escola. Algumas crianças sem mãe, muitas sem pai, tendo que ser um Sol que brilha sozinho na Terra. Crianças de 5 a 7 anos que conversam sobre conselho tutelar, abandonos e desejos de ser Sol.
Na leitura de Iori descobre o sol, de Oswaldo Faustino, na verdade é o Sol que descobre Iori. Em Iorubá, Iori quer dizer “cabeça que voa alto”. Exercitamos imaginar quem era o Sol e o que ele fazia na Terra. No final dessa atividade, recebi vários sóis pintados e nomeados com nomes femininos. Sorri e falei alto: “Vocês aprenderam isso com os Macuxi?”. “Wei” significa “Sol”. Sony Ferseck me disse que, para a cultura do povo Macuxi, o Sol é uma entidade feminina². As crianças entenderam o exercício de pensar em outras formas de ser e estar no mundo. Pensaram no Sol como quem alimenta as plantas todas as manhãs e disseram: “O Sol é mãe”. Eu sorri. Nunca tinha pensado nessa possibilidade. Confluímos. Meus pequenos companheiros de jornada iluminaram mais uma vez meu caminho na Pedreira³.
Deste livro, surge a frase mais doce que li na semana: “O sol sonhava amanhecer”.
Sonhei com o Sol e partimos para a última leitura e oficina.
Taynôh, Ho Shamên Tahe, o menino que tinha cem anos, é um livro polilíngue (Puri, Guarani Mbya, português e espanhol) de Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri). A leitura foi rápida e generosa. Fomos guiados por uma água doce e profunda, conversamos sobre não plantar esquecimentos.
Durante esse encontro, sistematizamos todas as etapas da cianotipia. Depois de ter explicado tudo o que iria acontecer e os resultados que teríamos, pulei etapas e descumpri os combinados. A turma acompanhou a oficina seguindo a professora na sala escura, no Sol. Mas as impressões não saíram no papel. Letícia, de 10 anos, fez a seguinte observação: “Para que as coisas aconteçam na terra, todos os elementos precisam estar presentes. Você sensibilizou os papéis com água. Não usou os sais. ‘Tudo acontece em presença’, não é?”. “É. Tudo precisa estar presente, Letícia.”
Vitor, de 10 anos, conclui: “Então bora voltar pro escuro e começar tudo de novo”;
Começamos de novo. E quando colocamos no Sol os papéis, sem pular etapas e sem ausências, o Sol escreveu em azul nos papéis. Ali estavam nossas fotografias azuladas, retratando as folhas que colhemos no quintal.
Fotos: Wagner Clayton
¹https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2023/11/CADERNO79_PAPA_KANGUA.pdf
²Ferseck, Sony. Weiyamî: mulheres que fazem Sol. Boa Vista, RR: Wei Editora, 2022.
³Pedreira é o nome do complexo de favelas onde a escola está localizada.
23/04/2024
CADÊ O RIO QUE ESTAVA AQUI? – por Veronica Pinheiro
Turma do 1º ano Roda de Leituras: A natureza que vive aqui
Foto: Professor Wagner Clayton
Os livros didáticos de história do Brasil sempre apresentaram a vida dos povos indígenas e quilombolas de forma preconceituosa. As lacunas estabelecidas, intencionalmente, nos ensino básico e superior formou, deformou e conformou gerações. Ao apagamento sistemático de produção de saberes produzido por grupos contra-hegemônicos¹, chamamos de EPISTEMICÍDIO. Quando o conhecimento científico se torna a única maneira de ler e entender a vida, fica estabelecido uma estrutura monocultural que tenta desqualificar outras formas de conhecimento.
Ouvi, mês passado, num evento de uma universidade federal, que ”somos vira-latas”. A fala veio de uma doutoranda bem intencionada que tentava explicar que a mestiçagem estrutura toda a forma de ser e existir do brasileiro. Vira-latas são SRD, cães sem raça definida, sem origem delimitada com misturas de duas ou mais raças. Com todo amor que tenho aos vira-latas, o pensamento que compara o povo brasileiro a cães sem origem delimitada é perverso do começo ao fim.
Começo a contar histórias indígenas e afro-pindorâmicas da seguinte forma:
Há quinhentos anos, não existia um povo chamado de brasileiro. Quem morava aqui (Rio de Janeiro) eram outros povos. Eram nações que falavam línguas diferentes, tinham seu próprio jeito de ser e seu próprio nome. E sempre perguntam: Quem vivia aqui?
A armadilha colonial é tão bem feita que levamos às crianças apenas as informações contidas nos livros. Fazemos isso, mesmo sabendo que os colonizadores, que tentaram identificar o nome de cada povo, criaram muitas confusões por desconhecer a língua falada ou por simplesmente preferir genericamente designar nações.
A escola onde estamos tecendo memórias está localizada próxima aos rios Acari (peixes), Irajá (cuia de mel) e Pavuna (lugar atoladiço). Os rios dão nome aos bairros. E às suas margens, além de mata ciliar, encontramos fios de memória para nossas tessituras.
No ciclo presencial AYVU PARÁ, que aconteceu no dia 31 de maio de 2023 no Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, Carlos Papá mediou aulas com saberes profundos sobre a Nhe’ërÿ (o lugar onde os espíritos se banham, assim os Guarani chamam a Mata Atlântica). Durante os dias de encontro, a caminho do restaurante onde almoçamos, Papá me fez a seguinte pergunta: “O que você está ouvindo?”
Era hora de almoço, um dia de semana na Barra Funda, São Paulo capital. Eu ouvia crianças indo ou voltando da escola, carros e ônibus na avenida Matarazzo, gente passando. Papá vendo que eu não entendi a pergunta, parou, olhou para a tampa de um bueiro e disse: “Você não ouve o rio? Tem um rio preso aqui dentro.”
Depois da escuta ser gentilmente conduzida, ouvi o rio. Sua voz era diferente dos rios que eu tinha acabado de ouvir em viagam no Recôncavo Baiano. Uma voz densa. Era tanta força e vida que eu fiquei ali por alguns minutos.
Os rios sabem de muitas coisas. Certamente eles sabem da origem de muitas coisas. Nada nesse território tem origem desconhecida. A questão é: quem estamos ouvindo? Os livros didáticos trazem informações sobre pessoas indígenas e quilombolas, porém raramente indígenas e quilombolas participam da organização dos conteúdos. Mais raro ainda é encontrar parcerias que não tratem pessoas indígenas e quilombolas como objetos informantes ou interlocutores-informantes.
Sonho com o dia que poderei, como professora, colocar nas referências dos meus textos e planejamento de aula: “palavras do Rio Acari” ou “canto do beija-flor que pousou na janela da sala”.
A lei 11.645 torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio. Na prática, os livros são a referência, e as aulas são encontros para repasses de números, dados, datas e informações sobre algo desconhecido. A história e a cultura idígena e afro-diaspórica se estabelecem em presença, não em referência. O mito ou o itã são memórias vivas de povos vivos. A corporeidade é o lugar de articulações e agências de vida. O território vibra a força da vida; sendo ao mesmo tempo corpo, chão, rio, ar e todos os seres que existem naquele lugar. Por isso, insistimos em falar de escolas vivas. Escolas de presença, com memórias vivas.
Para isso, precisamos refazer percursos. Como professora, devo estar disponível aos processos de desaprendizagens. De deseducação. Preciso criar outra relação com o tempo/bimestre/cronograma/agenda. O que fala o rio Acari me importa mais que o que contam os livros. Quando as crianças me perguntam: “Qual povo vivia aqui?”
Eu respondo: “Cadê o rio que estava aqui? Algum rio passa por aqui? Porque os rios certamente sabem mais sobre esse lugar do que os livros que li.”
A pergunta rendeu: Agora temos um projeto junto a coordenadora pedagógica da unidade para a escola e comunidade escolar. Cadê o rio que estava aqui? O que os rios dizem sobre nós?
Se você ouve rios e sabe de coisas líquidas, mais ou menos torrenciais, precisamos de você para construir percursos. Para caminhar pelas águas, temos uma canoa chamada Encantada. E nela sempre cabe mais um. Aceita o convite?
Apresentação da sala de Leitura e o 4º ano para escola: A culpa não é da chuva
Fotos: Professor Wagner Clayton
¹ Entende-se por movimentos contra-hegemônicos as práticas de resistência aos discurso de gestão dominantes que buscam contestar e escapar à disciplina da ordem do sistema capitalista. SULLIVAN, S; SPICER, A; BÖHM, S. Becoming global (un)civil society: Counter-Hegemonic Struggle and the Indymedia Network. Globalizations, 8(5), 703–717. https://doi.org/10.1080/14747731.2011.617571
16/04/2024
DESENHOS DA FALA – por Veronica Pinheiro
“Tem gente me ouvindo?
Quem tá me ouvindo bate uma palma.
Quem tá me ouvindo bate duas palmas.
Quem tá me ouvindo bate três palmas!”
Professores espalhados pelo Brasil lançam mão dessa quadrinha para obter a atenção das crianças para uma atividade. Como professora, muitas vezes me bastava que os alunos me disponibilizassem seus ouvidos, olhos e mãos. Existe uma tal régua que mede a eficiência de um professor e nas escolas a conhecemos pela alcunha de “domínio ou controle de classe”. Quanto mais quieta uma turma, mais eficiente é o regente. O professor em atividade é chamado de professor regente. O comportamento da turma e o desempenho nas avaliações são os critérios máximos para avaliar um professor. Por quê? Porque são pontos observados quantitativamente; são índices facilmente observáveis. Nunca vi secretarias ou programas educacionais medindo o quanto uma turma ou um professor está feliz no bimestre.
A felicidade e o bem-estar não compõem os objetivos gerais ou específicos de um planejamento escolar. Quanto está feliz o professor da turma A? Qual a turma mais feliz da escola? Felicidade é subversão em espaços de formação. A escola é uma estrutura social que representa esquemas de poder e, para isso, as pessoas que ocupam esse espaço assumem papéis sociais. Para garantir sua adaptação e permanência na função, um professor adota a máscara social do regente, se apresentando publicamente muitas vezes como um indivíduo austero. Dá um trabalho danado ser gentil na escola, sabe? Alunos não reconhecem a gentileza como características de um regente. Para eles, adultos são máquinas de dizer “não”; adultos determinam onde, quando e como.
Na prática, “uma turma boa permanece sentada em silêncio ouvindo e escrevendo”. Delicado, né? Porque um professor que tem 40 alunos em turma não consegue trabalhar se a turma não estiver sentada, né? Tudo é feito para ninguém questionar o modelo estabelecido.
Diante de toda potência dos corpos, docentes e discentes, o sistema educacional regular quer dos professores apenas voz e mãos. Dos alunos, os professores querem ouvidos, olhos e mãos.
Atendo semanalmente 14 turmas, passo 1h40 com cada uma delas. Confesso que tenho minhas máscaras sociais. Quando percebo que tenho a atenção de uma turma retiro a máscara da regente, algumas turmas entendem o código e seguimos de boa ao som de músicas, lendo, escrevendo e observando como a natureza está presente na escola. Porém, uma turma já percebeu que componho uma personagem para dar aula. Esses meninos, mais espertos que eu, não me deixam falar, eles não me emprestam seus ouvidos. Diante do desafio, busquei os recursos que tenho para termos qualidade em nossos encontros.
Levei argila para aula e pensei: “Quem sabe o contato com a terra crie um tempo de escuta de qualidade?” O processo de criar com argila está também associado a práticas meditativas de concentração plena. O tato, o contato, a interação com a terra podem promover um senso de comunidade e conexão entre as pessoas do grupo. Mas não deu certo com eles.
Tentei várias coisas. Algumas funcionaram parcialmente.
Lembrei da experiência que vivi com jovens artistas Guarani na preparação do Ciclo Nhe’ërÿ em maio de 2023. Vi quando eles cantaram e dançaram diante de uma tela em branco. Antes de pintar, eles cantaram as memórias da Nhe’ërÿ e honraram a Nhanderu com danças e palavras sagradas. Quando sentiram em seus espíritos que estavam autorizados para representar a Nhe’ërÿ com desenhos, desenharam as palavras cantadas e faladas.
Foi quando resolvi parar de ler histórias para o terceiro ano e começar a desenhar no quadro as histórias do livro. De Elias Yaguakãg, As aventuras do Menino Kawã foram desenhadas no quadro branco e, enquanto a turma ficava empenhada em reproduzir as imagens no caderno meia-pauta, eu aproveitava para contar (às vezes, ler) as histórias. Capítulo por capítulo, as palavras ganharam imagens que eram apagadas do quadro no final da aula. Percebi que as mesmas imagens ganharam lugar nos olhos, cadernos e na memória criada em aula. Um dia, esqueci o quadro desenhado e a professora de inglês da turma não entendeu os desenhos. Então eles contaram para ela sobre Kawã, o menino indígena que era protegido pela Ka’apora’ãga. A professora me procurou na hora do almoço dizendo com sorriso nos olhos: “Eles ouviram e sabem cada detalhe da história. Eles não só te ouvem, eles estão te escutando”.
Já que chamamos nossos compartilhamentos de semeadura, precisamos saber o que a terra pode dar antes de lançar a semente. Eu queria os ouvidos, mas eles são visuais. Não ia dar certo, né?
Eles escutam com os olhos!
Desenhos: construção coletiva da Turma 1401 com a professora Veronica
09/04/2024
PISANDO SUAVEMENTE NA TERRA OU PRIMEIRO BIMESTRE ESCOLAR – por Veronica Pinheiro
Colagem: Lívia, 7 anos | Aula: Eu sou natureza
Foto: Veronica Pinheiro
Chegamos ao Complexo da Pedreira, por uma escola. Temos muitas críticas ao sistema educacional que homogeiniza pensamentos e modos. A crítica é ampla, não está direcionada a professores ou a uma secretaria de educação específica. A escola de ensino regular cumpre bem o seu papel no projeto da imposição civilizatória europeia. Essa imposição traz como consequência, para os povos afro-pindorâmicos, uma distorção de identidade, uma vez que a escola nos ensina a ver por meio dos olhos do colonizador. Já disse Leonardo Boff:
“Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.”
Ao ignorar saberes e ciências que não estão contidos, intencionalmente, em seus manuais, a escola provoca um processo de desterritorialização de crianças dentro de favelas, quilombos e aldeias; e assim deslegitima os conhecimentos trazidos pelas crianças e famílias, obrigando alunos a adotar a língua e a linguagem do dominador.
Já testemunhei (como aluna, professora, coordenadora pedagógica e diretora escolar) muitas violências físicas e simbólicas cometidas dentro da escola. A violência simbólica é a violência “invisível”, que subjuga e aprisiona os sujeitos. Temos muitas críticas, no entanto não podemos ignorar que, no Brasil, crianças e adolescentes urbanizados, principalmente nas periferias, estão tão vulnerabilizados que a escola pode se tornar um espaço de construções interessantes. Então… se a escola é um lugar de homogeneização e docilização de populações, ela também pode vir a ser um lugar de ruptura.
Qual seria então o elemento disruptivo?
Cris Takuá, minha mestra, me ensina a não apostar em respostas prontas, mas na semeadura de possibilidades de transformação que sustentam mundos. Acreditamos no fortalecimento dos territórios através do acordamento de memórias recentes e memórias muito antigas. Sendo o tempo circular, o que será e o que já foi estão sensivelmente conectados. Contar histórias para acordar não é apenas para o despertamento de uma consciência sócio-histórica, mas para firmar pilares que possibilitem uma leitura de si por meio dos seus próprios olhos.
Por esses e outros motivos, não poderíamos, porém, chegar à escola simplesmente dizendo a professores e a alunos que eles precisam pensar de outra forma. Estamos construindo diálogos, vínculos e não aplicando uma proposta esvaziada de contextos. Chegamos pisando na terra suavemente. Muitos pais de alunos estudaram quando crianças na E.M.P. Escragnolle Dória e foram alunos das professoras que dão aula a seus filhos. Algumas professoras trabalham há mais de 15 anos aqui. É fundamental ouvir essas histórias.
Encerramos o primeiro bimestre animados. A professora do primeiro ano nos convidou para planejarmos juntos as atividades dos próximos bimestres, incluindo em seu planejamento a ideia de uma escola viva. Alguns professores estão acompanhando voluntariamente as oficinas das crianças na escola e as rodas de leituras. Outros me acharam no Instagram e chegaram ao Selvagem.
Diretoras e coordenadora pedagógica também começaram a sonhar conosco. Até o Sol, tema do ciclo de estudos Selvagem em 2024, passará a fazer oficialmente parte do Projeto Pedagógico Anual da escola – PPA. Não fizemos palestras ou reuniões para falar dos ciclos para a equipe pedagógica, o proselitismo não faz parte do pensamento Selvagem. Como se deu então as parcerias? Pela magia do encontro. O encontro é capaz de criar vínculos de vida de maneira orgânica, natural e confluente.
“Que possamos então nos animar
e nos animar uma vez mais,
Nhamandu pai verdadeiro primeiro!”¹
Foto: Veronica Pinheiro
¹A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani I. Pierre Clastres; tradução Níeia Adan Bonatti. – Campinas, SP.
02/04/2024
TEMPO E AMOR – por Veronica Pinheiro
Imaginemos partículas no espaço.
Cada partícula é um ponto de energia.
No entanto, nada existe em si só,
tudo existe porque há uma dança.
Neste cosmos flexível,
cada corpo que irrompe
é um novo desenho e
transforma tudo ao redor.¹
Anna Dantes
Em minha casa, aprendi que para se educar uma criança é preciso uma comunidade.
“nada existe em si só”
Poder voltar à escola como comunidade, pertencendo e trazendo comigo a comunidade Selvagem, me coloca noutro lugar, um lugar expandido. Trabalhei como professora em escolas, durante muitos anos fui repreendida por trazer afetos e sorrisos na mesma mochila em que trazia os livros. Nasci e fui educada em comunidade. Aprendi em casa a amar com as mãos; trabalhávamos cantando e cuidando uns dos outros. Meu avô Antônio ensinou a meu pai que o canto espanta os medos e protege a casa. O cuidado com as crianças era compartilhado. Compartilhada também era a água, a comida, as dores e as alegrias.
Uma vez ouvi que eu era feliz demais pra quem trabalhava como professora em escola pública. A observação veio de uma outra professora. Na ocasião, ela estava responsável por organizar o quadro de horário e os tempos de aula de todos os professores. Naquele ano, eu conseguia cumprir toda minha carga horária em três dias por semana. No entanto, após o observado, fui colocada para trabalhar cinco dias por semana de 7h às 17h. A punição era passar mais tempo na escola. Repleta de tempos vagos, aproveitei para conhecer melhor meu local de trabalho. Foi assim que eu aprendi a observar alunos, funcionários e todas as vidas que compunham uma unidade escolar. Ali nasceu uma companhia de teatro com os alunos do 6° ano, fruto de tempos vagos preenchidos com poemas e canções.
Na tentativa de punir afetos, recorreram ao tempo. Porém, na seara de Iroko, o tempo não é castigo. Tempo é força. Iroko é a própria representação da dimensão do tempo, pouco conhecido dos seres vivos e mortos, nascidos ou por nascer. Guardião da ancestralidade, Iroko rege os tempos e fortalece os vínculos entre o passado e o presente. Iroko é a primeira árvore que se fez plantar na Terra. Para os que descendem dos bantos, equivale ao Inquice Kitembu: o vento transformador e a árvore o corpo do tempo.
Volto à sala de aula em outros tempos, volto com uma comunidade aquilombada, prenha de seres e sonhos. São tempos de dança. Tempos de afetos largos. Afetos acolhidos. Vejo na Escola Municipal Professor Escragnólle Dória que, aos poucos, crianças, funcionários, professores e equipe diretiva se permitem entrar nessa nossa dança Selvagem. Ousamos despertar memórias guardadas pelo tempo. Estamos escrevendo bilhetes ao vento transformador; a pedreira onde se localiza a escola já foi conhecida como o “Morro da Ventania”. Através da arte, criamos diálogos sensíveis na tentativa de acordar nos seres urbanizados que somos a natureza que também somos.
Nesse universo que se chama escola, minha comunidade Selvagem dança expandindo vida. Afetando e sendo afetada. Minha comunidade me respalda.
“Enquanto o universo se expande, o amor aglutina.”²
Foto: Veronica Pinheiro
NOTAS:
1 e 2 Caderno Selvagem – Flecha 6, Tempo e amor
https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2023/10/CADERNO49_FLECHA_6.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=PeMBCABxXCQ&t=620s&ab_channel=SELVAGEMciclodeestudossobreavida
26/03/2024
“NA FLORESTA, EU CONSIGO FECHAR OS OLHOS” – por Veronica Pinheiro
Desenho colorido por Manuella 10 anos
Oficina 1 – O sol e floresta
Quando conectamos os seres urbanos que somos com a natureza que também somos, pegamos o caminho de volta pra casa. Voltar é um movimento tão importante quanto ir. É comum na educação falarmos de “progresso”, “avanço” e “desenvolvimento”. Parece que a vida é um movimento só de ida.
“Investir no seu desenvolvimento, com um olhar atento para o processo de aprendizagem de todo e de cada aluno é fundamental para construir trajetórias de avanço”¹. Desenvolver para avançar, Secretaria de Educação Carioca.
Numa proposta contracolonial de ensino, dizemos que desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Afirmamos que nosso caminho é de envolvimentos.
Na busca de práticas de envolvimento, nossas oficinas de Aprendizagens Vivas evocam saberes e fazeres presentes no cotidiano e na memória. Entendemos que a corporeidade é o lugar de registros e agência, onde se articulam e se transmitem mundos. Pensamos em oficinas sinestésicas (sons, aromas, texturas, sabores e saberes), que, a partir da expressão artística, buscam possibilitar um espaço de envolvimento, criatividade e despertamento de memórias.
De onde venho, dizem que arte é a conversa das almas; por isso, cantamos enquanto trabalhamos e dançamos enquanto lutamos. A arte e sua potência de convocação de um corpo coletivo pode, pela liberação dos sentidos, romper espaço e tempo. Romper espaço e tempo na tentativa de conectar seres urbanizados que somos com a natureza que também somos.
Nossa primeira oficina na escola aconteceu em dia de operação policial na comunidade. Fazenda Botafogo é uma região conhecida pelos altos índices de roubos de cargas e tráfico de drogas e animais silvestres. Romper com tempo e espaço era tudo o que eu queria naquele dia 14 de março. Começamos falando do sol e da selva. No dia anterior, nós tínhamos andado pela parte de trás do quintal da escola para ficar embaixo das árvores e ver de onde vinha a argila. Muitos não sabiam o que era argila, vários não sabiam do que era feita a argila. Ryan explica pra turma:
– Argila é a massinha de terra.
Distribuídas argilas de muitas cores aos alunos, pedi que eles ouvissem a história com a argila nas mãos e que tentassem modelar com os olhos fechados. As mãos precisariam seguir o que a música falava. A oficina foi realizada com turmas do 2° ano do ensino fundamental (crianças com 7 anos de idade), as mesmas turmas que apresentam dificuldades em sentar para ouvir minhas aulas.
Duas semanas antes, eu havia tentado uma atividade que pedia para que fechassem os olhos e quase nenhuma criança da turma conseguira; o incômodo entre elas foi tamanho que pesquisei sobre o tal medo do olho fechado. “Nictofobia, medo irracional do escuro”. No caso das crianças da escola, o medo do escuro não é irracional; desde pequenos são ensinados a estar atentos e vigilantes. Os perigos são reais.
No dia da oficina, no entanto, sentados e com a argila nas mãos, caminhávamos em pensamento pela floresta. Enquanto as almas conversavam, ouvi a seguinte frase:
– Na floresta, eu consigo fechar os olhos.
Depois disso, não lembro de muita coisa.
Foto: Professor Wagner Clayton
¹Coordenadoria de Ensino Fundamental Habilidades Curriculares 1º Bimestre 2024 Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura do Rio de Janeiro
19/03/2024
APAGA QUE TÁ FEIO! – por Veronica Pinheiro
Sala de leitura, livro 3
Leia os trechos a seguir em voz alta:
“E não era muito inteligente também. Ele tinha construído a casa de palha. Dá para acreditar? Quero dizer, quem tem a cabeça no lugar não constrói uma casa de palha.”
“Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”
“Esse era um pouco mais esperto, mas não muito. Tinha construído a casa com lenha.”
“Então fui até a casa do próximo vizinho. Esse sujeito era irmão do Primeiro e do Segundo Porquinho. Devia ser o crânio da família. A casa dele era de tijolos.”¹
Será que a história dos três porquinhos ocorreu daquele jeito mesmo? E se o lobo resolvesse contar a coisa toda do seu ponto de vista?
O lobo contou e ficou pior. Publicado pela Companhia das Letrinhas, o livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, é um livro infantil que compõe o acervo das salas de leitura das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. Só na escola em que trabalho são 32 exemplares. Uma turma de Ensino Fundamental 1 tem em média 32 crianças, portanto se trata de uma obra recomendada para ser lida em classe. Além disso, em 2013 e 2014, o texto foi colocado nos cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação carioca, suprimindo alguns trechos que classificam como ignorantes os sujeitos que constroem casas de palha ou lenha. Porém, nas duas edições do material pedagógico destinadas às crianças do 4º ano do EF aparece o trecho “Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”
O livro A verdadeira história dos três porquinhos deveria ser um texto para inocentar o Lobo Mau. A intenção descrita no livro é trazer ao conhecimento do leitor que o lobo foi vítima de armação. No formato de um diário, o lobo fala sua versão da estória; e fico triste que ninguém tenha sinalizado: apaga esse trecho, tá feio. Pelo contrário, o desabafo do lobo foi escrito, revisado, publicado e distribuído para crianças do ensino fundamental.
Gostaria de trazer novamente uma informação que aparece no diário da primeira semana: a Pedreira, favela onde está localizada a escola em que dou aula, possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Ao caminhar pela estrada principal do bairro vemos muitas casas de lenha.
Foto da Estrada de Botafogo. Acervo Pessoal Lenon Suhett, Pesquisa Geografia e Comunidade Escolar
(Lenon e Veronica foram diretores de escola juntos de 2019 a 2021)
A verdadeira história dos três porquinhos fere diretamente as crianças, a comunidade e as populações tradicionais que, manifestando abundância, conhecimentos ancestrais e relação com a terra, constroem suas casas com palha, lenha e terra.
Carter G. Woodson fala que o sistema educacional eurocentrado está a serviço da deseducação do negro estadunidense e convoca a população negra a desenvolver e executar um programa próprio. Ler o diário de um lobo me fez lembrar do professor Woodson e pensar que precisamos de práticas educacionais decoloniais efetivas e não instagramáveis.
Foto de casa na Aldeia Guarani Rio Silveira. Acervo pessoal de Veronica Pinheiro
Ao longo do trimestre, vamos construir nossa casinha com bambu, palha e argila. As crianças precisam saber que o que o lobo chama de “pouco inteligente” chamamos de conhecimento tradicional, bioconstrução, e que é preciso saber muita coisa para se levantar uma casa sem comprar nada. Povos indígenas e quilombolas conhecem muito sobre solo, plantas, sabem onde o sol nasce e onde fica a lua em relação à casa construída; e tudo isso é sobre relacionamento. Recontaremos histórias, ativaremos fazeres, saberes e memórias.
Que o sol nos ajude nessa caminhada.
O lobo já deixou escrito o que ele pensa. Não esperemos nada dele.
Casa no quilombo São José. O quilombo São José existe há cerca de 150 anos e está localizado na cidade de Valença (RJ).
É uma comunidade de descendentes de escravos que vieram da Angola e do Congo, atualmente cerca de 200 quilombolas
moram no local e suas casas são feitas de adobe, pau-a-pique e telhado de palha.
Foto: Acervo pessoal de Veronica Pinheiro
¹SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.
12/03/2024
AQUELA TIA ALI VAI CONVERSAR COM VOCÊ – por Veronica Pinheiro
Na primeira semana de aula, minha função era acolher os que choravam. Achei graça. Depois entendi o tamanho da responsabilidade. Meus pequenos companheiros falavam de uma tal dor na barriga e, além das lágrimas, traziam nos olhos o desamparo.
Ao recebê-los, eu dizia que ficaria ali o tempo que fosse necessário. Perguntava onde o medo estava. E as mãozinhas iam direto para a barriga. É fome? Para alívio do meu coração, as respostas foram todas negativas. Surgia então a última pergunta: eu acho que vi medo nos seus olhos; você tem medo de quê?
De maneira geral, o processo de escolarização desterritorializa dentro do território. Deixa a identidade da criança em segundo plano, determina o que é importante ou não para se saber, determina o que comer, como se vestir, distância o sagrado e impõe novos modos de vida. O tal do conhecimento universal, os conhecimentos básicos e o ensino fundamental norteiam os currículos. Aos poucos, um indivíduo vira uma classe; aos poucos, os corpos são docilizados. E quando menos esperamos… todos os desenhos são pintados dentro da linha.
São tantos os complicadores sociais que a escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana, invadindo aldeias, quilombos e periferias como braço do Estado. A escola apresenta o mundo às crianças. E para muitos, em muitos lugares, é a única instituição habilitada para transmitir conhecimento. No entanto, se existe um pensamento que norteia, se o mesmo está a serviço do colonialismo para sujeição dos sujeitos e adormecimento das memórias… deve haver um pensamento que suleia.
Sugiro que busquemos sulear os modos de se estar na escola. Criemos ambientes seguros para professores e crianças pintarem fora das linhas que contornam os desenhos. Aceitemos o bagunceiro e seu corpo insubmisso. Penso que, durante o processo de suleamento, as memórias de vida e princípios de sustentação dos territórios serão despertados. Sulear é pluriversalizar os modos de existir e se relacionar com a vida.
De certa forma, aquelas crianças, que choraram na primeira semana de aula, sabiam que precisariam deixar, além da casa, um tanto de si pra fora dos muros da escola. Sei que alguém vai dizer: Mas algumas crianças vão sorrindo! É, eu sei, e essas me preocupam mais.
05/03/2024
A CAMINHO DA PEDREIRA – por Veronica Pinheiro
Chegamos à Pedreira. Um complexo com o menor IDH da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Chegamos ao antigo Morro da Ventania, onde o vento corria solto e falava alto. Dizem que quando o vento assobiava na Pedreira, nada mais se ouvia. O Morro da Pedreira está localizado no Bairro de Fazenda Botafogo, entre Pavuna, Costa Barros e Acari. Curiosamente, o vento não fala mais naquele lugar. Os escombros de uma antiga senzala, um cemitério de escravos, alguns troncos de tortura e uma pedreira desativada são as camadas mais recentes sob o solo desse caminho que começamos a trilhar.
Uma antiga linha de trem cortava a mata densa da fazenda Botafogo. O trem expresso transportava, na década de 1970, pessoas à procura de trabalho e de um novo lar. Estas histórias ainda são ouvidas no território: “Cheguei na Pedreira em 04 de setembro de 1970. Até aqui, eu morei em outros lugares. Vim do Espírito Santo, mas sou de Minas Gerais. Vim com marido e seis filhos”, diz dona Geralda, uma das primeiras moradoras do complexo da Pedreira.
Mapa da Pedreira – João, 6 anos
O trem transformou o lugar onde o vento cantava numa intersecção de corpos-territórios. Corpos em trânsito confluíram, se fortaleceram e construíram uma comunidade. “Quando a gente confluencia, não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende”, diz Nego Bispo em seu livro A terra dá, a terra quer (Ubu Editora, 2023). A confluência é uma força que amplia. Esta força trouxe o Selvagem até aqui. Uma confluência solar: Sol, vento, pedreira, memórias guardadas na terra e trazida nos corpos. A corporeidade é um lugar de registros e agência, nela se articulam e se transmitem mundos.
Nosso caminho na Pedreira é junto à Escola Municipal Professor Escragnolle Dória, para nós, Casa das Crianças. Acreditamos na confluência dos corpos – discentes, docentes, plantas, cores, vento, Sol. Em 2024, iniciamos um percurso sobre aprendizagens vivas dentro de uma escola. A sala de leituras da escola será nosso núcleo de irradiação Selvagem. Lá receberemos 439 crianças por semana e 19 professores por mês. Serão 200 dias letivos; 8 oficinas de artes (para crianças e professores) e um grande encontro festivo no final do ano. Na mediação desse movimento, estarei como professora das rodas de leituras e como coordenadora das atividades de artes. Em 10 dias de aula, já passamos por tantas coisas: de medo de bate-bola no bailinho de carnaval a medo de bala perdida durante o turno escolar. Já lemos 2 livros, choramos, sorrimos e brincamos também.
Nesse percurso Selvagem, compartilharemos com crianças e professores reflexões para a construção de uma escola viva. Compartilhamos uma outra forma de ser e estar no mundo, lembrando que a vida e o bem viver devem fazer parte do cotidiano escolar. Não estamos a serviço da educação. Para além de cumprir uma diretriz nacional¹, subimos a pedreira ativando memórias, saberes e fazeres. Um percurso solar para sentir, ouvir, criar e brincar. Seguiremos por aqui semeando palavras, mudas e mundos. Guiados pelos ventos, estamos sob a luz do Sol, a serviço da vida.
¹ A Lei nº 11.645, de 10 março de 2008 torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores, as licenciaturas.
07/10/2024
CARTA A VERONICA PINHEIRO – por Cristine Takuá
Saudações, Veronica,
Nesta manhã de Sol, saúdo sua existência e nossas lutas, sonhos e anseios, que vêm há muitas gerações. Nos rastros de nossas avozinhas, seguimos buscando reencantar esse mundo através de nosso trabalhinho, esse ciclo de aprendizagem que miro e vejo como uma canoinha colorida e iluminada que convida crianças, jovens e todos os seres a acordar, despertando as memórias mais profundas.
Nesses últimos meses, compartilhando com você o Diário de Aprendizagens, aprendi muito com suas caminhadas e reflexões. Eu aqui na minha Tekoa e você na escolinha em que atua ficamos sonhando um futuro mais encantado para todas as crianças. É tão maravilhosa essa possibilidade de transformação a que anseiam as escolas vivas que hoje alguns pesquisadores, professores e curiosos vêm buscando se aproximar e entender o que vem a ser essa proposta de furar a bolha da monocultura mental nos processos educativos.
Os mais velhinhos vêm há muitas gerações buscando fortalecer os seus terreiros, suas práticas através das narrativas e dos rituais, e me pego sempre a refletir sobre esse discurso do fim do mundo que pretende bloquear e frear nossos sonhos. A cada dia me sinto mais animada em seguir remando contra a maré, e permanecer caminhando lentamente, semeando na micropolítica possibilidades de metamorfosear as nossas relações.
Te agradeço
Te honro
E reafirmo minha imensa alegria em remar junto com você.
E nessa intenção de não deixar de sonhar, queria te perguntar: quais são os seus sonhos para o nosso ciclo de aprendizagem? O que mais te motiva e anima nesse momento?
Seguimos, querida, como formiguinhas trabalhando, trabalhando…
Cooperando, transformando…
Semeando e sonhando…
30/09/2024
CARTA A VERONICA PINHEIRO – por Cristine Takuá
Saudações, querida Verô.
Te escrevo num dia de chuva ouvindo os pássaros cantando felizes, mas com o pensamento longe sentindo o luto em que me encontro por perdas recentes e pelos parentes plantinhas e bichinhos, que vêm sendo queimados pelo fogo que não cessa nesse nosso Brasil, onde muitos humanos exaltam a mercadoria acima das vidas todas.
Te encontrar por esses tempos nessa caminhada que agora, juntas, estamos trilhando, me animou e me encorajou a não deixar de acreditar. Sua sensibilidade e encantamento com as crianças me fez não me sentir sozinha nos meus sonhos e anseios. Queria agradecer a sua existência e a sua força.
Eu cresci sem conhecer minhas avós e isso sempre me causou um vazio profundo, uma ausência, uma falta de alguém que me desse a direção. Quando criança, sempre que ia dormir, eu rezava pedindo pra sonhar com elas, saber como elas eram, receber algum ensinamento mesmo em sonho. Em alguns momentos da minha vida, tive o privilégio de encontrá-las em meus sonhos e foram momentos muito importantes pra mim. Mas segui sempre sentindo essa ausência.
A vida me presenteou com algumas avós-gente e avós-plantas. A avó de meus filhos, que foi minha sogra, se chamava Kunhã Tatá. Ela foi uma grande avózinha pra mim, me orientou, ensinou e mostrou caminhos.
Aos 24 anos, conheci uma medicina sagrada que me mostrou muitos caminhos, me fez olhar para dentro de mim mesma. Essa medicina, feita de um cipó e uma folha, se tornou minha professora, e comecei a estudar com ela. Ao longo desses anos, ela me mostrou minhas avós e começou a me ensinar um saber sagrado de que uma das minhas avós, a mãe de meu pai, era mestra: a arte de partejar. E, assim, essa medicina foi me mostrando como as criancinhas nascem. No início, não entendi por que ela estava me mostrando aquilo, mas, um tempinho depois, compreendi, quando tive a honra de fazer o primeiro parto, e depois outro e outro… Sigo aprendendo…
A Araucária, esse ser tão antigo, um dia também se apresentou a mim como sendo minha avó. Me disse, numa longa noite de concentração espiritual, que eu não precisava mais sentir essa ausência que me acompanhou por toda a infância, pois ela era uma avózinha pra mim.
O tempo é o grande mestre da vida. Saber respeitar e entender suas delicadezas é uma ensenhança para quem se permite ter paciência. O cuidado e o afeto caminham juntos nesse processo de busca por entendimento. E, aos poucos, vão se revelando e nos direcionando para onde desejamos chegar.
Para mim, está sendo muito importante acompanhar seus passos, ler seus pensamentos e inquietações, poder aprender com você e compartilhar o que sinto, faço e penso. Juntas seguiremos remando essa canoinha que sonha em transformar, semear e ativar/animar mentes e corações.
Sou profundamente grata por ter o privilégio de caminhar junto nesse propósito selvagem de conceber a vida, num mundo onde o excesso de informação e a robotização humana seguem alucinadamente entorpecendo as mentes, adoecendo os corpos e silenciando os sonhos.
Vou encerrando essa carta num dia de muita concentração, após ter passado a noite toda na Opy, a grande sala de aula da Escola Viva Guarani. Entre rezos e meditações, amanheci sentindo os galos chamando o Sol, os pássaros comemorando o seu reluzir e as criancinhas acordando felizes após uma longa noite de sonhos compartilhados à luz e à magia do fogo.
Somos sementes, minha irmã, e seguiremos juntas a cada novo raiar de Sol.
Saúdo sua existência e as que nos antecederam.
Arte: Jeisson Castillo
27/09/2024
QUAIS CÓDIGOS DECIFRAMOS? – por Cristine Takuá
Foto: Cris Takuá
A natureza dá sentido à vida e, nela, tudo tem seu equilíbrio. É como uma imensa teia, onde tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está para acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que, com sua delicadeza e sabedoria, vão nos guiando e nos ensinando como bem viver, que em Guarani se fala: Teko Porã. É um conceito filosófico, político, social e espiritual que expressa exatamente essa grande Teia, onde vivemos em harmonia e respeito.
Foto: Carlos Papá
Carlos Papá fala que, desde criança, os Guarani aprendem os códigos para poder caminhar e viver na floresta.
“Eu andava pelas florestas para poder decifrar os códigos, porque, a cada dia, quando se passa na mesma floresta, mesmo que seja um lugar por onde você já passou, ele já mudou. Neste lugar onde você passou não tinha formiga, aí, no outro dia, você passa por lá e têm formigas ou um besouro. Então, você tem que analisar… As paisagens mudam, né?
Por exemplo: você faz um quadro, você pinta uma árvore, aí você pensa assim: ‘Acho que faltou uma lagarta na folha. Acho que vou fazer uma lagarta na folha. Só que aí só vou fazer amanhã, hoje não vai dar, porque eu estou cansado ou com sono, aí eu vou fazer amanhã a lagarta. Ou uma borboleta voando’. Mas você deixa tudo pra amanhã.
Foto: Carlos Papá
E aí é a mesma coisa com a natureza. Quando você está num lugar, fica em silêncio.Talvez não tenha pássaro ou água escorrendo. Aí você olha, fixa bem, marca bem o jeito que era. Aí você volta pra casa, no dia seguinte, ou três ou quatro dias depois, você volta para o mesmo lugar de novo, analisa tudo. Está diferente, porque talvez tenha chovido ou agora tenha um pássaro, um tucano ou um grilo. Ou talvez tenha uma borboleta voando, uma borboleta sem estar. Então mudou a paisagem, não é a mesma coisa.
Eu fazia essa leitura: por que mudou? E a luz do Sol que bateu neste dia em que eu estava vendo. Essa luz que bateu estava clara. Depois de três dias, a luz não era a mesma coisa, porque o Sol estava meio escondido, as nuvens estavam baixas. Então, as coisas mudam. E aí você vê o grilo ali namorando ou o grilo ali. Você olha para o grilo e fixa aquele tempo daquele jeito. Aí, no outro dia, você volta lá de novo: o grilo não está mais lá e o tempo está maravilhoso, tem tempo bom. Só que o grilo não está mais lá.
Então, eu comecei a perceber os códigos das coisas que estão ali. Quer dizer, se você vê um tempo ruim, o grilo está ali de forma ao contrário, oposta, assim ou assim, na sua direção. Esses são os códigos que você tem para perceber que o tempo amanhã vai mudar, vai continuar igual, se vai fazer frio ou vai chover. Então, o grilo parece uma bússola que tem uma indicação… Então, você vai guardar isso na memória: quando o grilo está assim, é porque no dia seguinte vai dar tempo bom. Então, o grilo está se preparando pra ir pra cima, porque amanhã haverá um tempo bom e é o jeito dele comer uma folha nova. Então, ele está indo. Agora, se está assim, é porque no dia seguinte vai fazer muito frio e ele está indo para um lugar que nem é no chão e nem pra cima, está no lugar que tem menos corrente de ar frio. Então, ele está procurando lugar para se esconder, para ter menos corrente de ar, porque em cima é muita corrente de ar frio e embaixo também, porque embaixo o chão é muito frio. E aí, fica meio que no meio, para que não tenha uma corrente de ar frio.
Então, tudo isso a gente tem que estar percebendo, decifrando os códigos para saber caminhar e viver bem.”
Fotos: Cris Takuá
Aos poucos vamos crescendo e aprendendo os códigos que nos revelam os caminhos que vamos seguir. Porém, na escola, somos direcionados a aprender sinais e códigos que são desconectados da vida. Um monte de teorias de letras e números que acabam nos afastando do sentido real e natural dessa convivência, que nos é ancestral dentro da memória que habita em nosso interior.
Quais os códigos que conseguimos decifrar hoje? Quem alcança o entendimento das mensagens que trazem os Tupã, deuses do trovão? Quem entende os sinais das Jataí, as abelhinhas sensíveis nativas da Nhe’ëry? Quem dialoga com as formigas, quando estão num longo carreirão carregando folhas, muitas vezes maiores que elas mesmas, em direção a um lugar seguro? Quem sente e observa o caminhar das nuvens? Os sopros dos ventos? As ondas do mar que vão e vêm num equilíbrio muito próprio delas?
Sinto que é necessário nos reconectarmos com esses sinais da vida selvagem, que nos mostram exatamente o sentido de nossa existência. Séculos e séculos da razão humana ignoraram a sabedoria dos códigos da floresta.
Convoco e convido a todos e todas a se tornarem selvagens, se permitirem sentir, escutar e enxergar esses sinais que todos os dias pulsam ao nosso redor.
Foto: Carlos Papá
20/09/2024
A ESCOLA VIVE EM MIM – por Cristine Takuá
Foto: Cris Takuá
Nessa última semana que passou, aconteceram fatos muito fortes e de profundas reflexões em minha caminhada.
Há dois anos e meio, me desinseri da escola estadual da minha comunidade por me sentir um corpo estranho em meio a ordem, obediência, disciplina, grade curricular e tantas prisões, que estavam me perturbando os sonhos. Ao sair desabrocharam as Escolas Vivas, essa semeadura tão potente e animadora que venho coordenando junto com Carlos Papá, Sueli e Isael Maxakali, Dua Busë e Netë Huni Kuin, Francy e Francisco Baniwa e João Paulo Tukano e Carla Wisu.
Remando essa canoinha de acordamento de memórias com afeto e cuidado, venho percebendo o quanto a “escola”, esse ser complexo e cheio de possibilidades, continua me atravessando e inspirando os meus passos na vida.
Impulsionando diálogos e trocas de experiências, vivenciei na Escola Viva Guarani, dias atrás, a visita da sala do quinto ano da escola infantil da minha comunidade, a sala do Kauê.
Por que as crianças perguntam tanto?
Fotos: Cris Takuá
Recebemos as crianças e a professora que, com muita curiosidade, vieram buscar saber mais das plantinhas que curam. Eu e Papá as levamos para caminhar e coletar algumas plantas usadas na medicina tradicional Guarani. Depois conversamos sobre cada uma delas. Papá brincando, mas falando com seriedade, foi perguntando a eles os nomes das plantinhas. Alguns sabiam o nome em Guarani, outros, o nome em português. E assim Papá foi explicando as plantinhas uma a uma, os nomes e suas qualidades, como e para quê são usadas.
Foi uma atividade muito interessante e as crianças ficavam fazendo perguntas sobre as plantas, sobre seus usos e também sobre o nosso corpo e os momentos de resguardo, de dieta e de luto.
Uma menina perguntou: “Por que temos que cortar os cabelos quando ficamos menstruadas pela primeira vez?”. A partir dessa pergunta, surgiu toda uma conversa sobre o tempo do resguardo e a importância desse momento de recolhimento para a menina que está virando mulher. Esses ensinamentos são muito sagrados e preciosos para a vida.
Foto: Djeguaka
Foi muito bonito e emocionante ver as crianças perguntando, tão animadas e atentas, escutando sobre esses saberes tão sensíveis e necessários.
Depois fomos visitar as abelhinhas e conversamos sobre a importância da cera de abelha para os rituais de nomeação das criancinhas, que acontecem em todo início de ano.
No dia seguinte a esse encontro, tínhamos um compromisso em Santos, para acompanhar a aula da Licenciatura Intercultural Indígena, que está fazendo a formação dos professores indígenas de São Paulo. Nesse dia foram trabalhadas atividades relacionadas à ação e aos saberes indígenas na escola. O tema foram os jogos educativos. Cada grupo apresentou sua pesquisa e as possibilidades de, em sala de aula, trazer essas brincadeiras para as crianças. Foi muito bonito e alegre o encontro com os 40 professores, alunos da Licenciatura da Unifesp.
Foto: Carlos Papá
Mas, nesse dia, antes de ir para Santos, Papá se sentiu inspirado a ir visitar a sua madrinha Rete, que fez o seu parto há 54 anos. Lá fomos, numa outra comunidade a três horas e meia da nossa casa. Foi um encontro muito lindo e cheio de recordações. Ela disse que estava aguardando ele, já pressentia que ele estava por vir. Ela nos contou muitas histórias sobre o parto, sobre a vida e as caminhadas dela enquanto mulher, rezadora e parteira.
Foto: Djeguaka
No dia seguinte, após essas caminhadas de aprendizagens, recebemos um encontro dos professores que atuam na escola aqui da nossa comunidade. Eram dez professores: três dos anos iniciais e sete dos anos finais do ensino médio. Esse encontro foi para dialogar sobre a retomada da “Ação Saberes Indígenas na Escola”, para a produção de material didático bilíngue. Há dez anos, eu havia coordenado essa ação quando estava na escola estadual, mas poucos professores participavam; Carlos Papá era o mestre dos saberes, que orientava sobre as narrativas, sobre a língua Guarani e os saberes tradicionais.
Esse encontro foi um momento de muita reflexão pra mim, pois percebi que eu saí da escola, mas a escola não saiu de mim e segue me motivando a animar os outros a não desistirem de sonhar e lutar por seus ideais.
Nesse mesmo dia tivemos a notícia da partida de um grande mestre e professor que encantou. Xamoi Alcindo Wherá Tupã foi um guardião do fogo, rezador e conhecedor das palavras e dos saberes profundos. Falamos sobre ele para o grupo de professores.
Finalizamos esse dia na Opy, na verdadeira Escola, rezando, cantando e meditando até o amanhecer do dia.
Assim seguimos animando e remando essa canoinha da transformação, as Escolas Vivas…..
Foto tirada do documentário: “Whera Tupã e o Fogo Sagrado”
13/09/2024
EMBAÚBA, FIBRA MÁGICA E MÃE DO TEMPO – por Cristine Takuá
Desenho: Isael Maxakali
O povo Guarani nomeia a embaúba de amba’y, o povo Maxakali de tuthi: ela é uma planta mágica e muito sagrada para muitos povos. Há dias estou envolvida com seus encantos, observando suas formas, seus saberes e potências. Dias atrás recebemos a visita dos coordenadores da Escola Viva Maxakali, Isael e Sueli, junto com a tia Juraci e os netinhos. Caminhamos pela floresta, coletamos mudas de embaúba e tiramos sua fibra que, além de ser matéria-prima para tecer, também é usada em cerimônias espirituais. As mulheres Maxakali sempre andam com um macinho de linhas de embaúba para rezar seus filhos, caso sintam algum desconforto físico ou espiritual.
Sueli Maxakali disse que a embaúba, tuthi, é a fibra-mãe porque ela é mágica, e pode fazer com que as mulheres se transformem em sucuris. Ela também pode produzir abelhas, realizar caças e tecer caminhos que chegam até as aldeias celestes. É muito forte a relação das mulheres com esta planta-espírito, e seus saberes são repassados há muitas gerações através do canto. Quando fomos na mata para cortar e tirar sua fibra, houve toda uma preparação com cantos e pedidos de licença para iniciar o trabalho. Não só no momento de extração da fibra, mas em todas as etapas da produção: ao raspar, tirar a linha, secar, enrolar o fio com saliva, há uma relação e uma conexão com os povos-espíritos, os yãmĩyxop. E, através dessas relações com essas árvores-mães em cada fio entrelaçado, vão se tecendo, com os cantos, história e memórias ancestrais.
Fotos: Carlos Papá
Há uma narrativa que conta como, engolindo uma linha de embaúba feita pela mãe, uma mulher ancestral se transformou em sucuri. Essa é a história de kãyãtut, a mulher que vira “cobra-mãe” ou “cobra grande”, por meio de uma linha de embaúba, e se vinga do marido que se recusava a cuidar dela durante o resguardo menstrual. Em vez de cuidar de sua esposa e preparar sua comida, ele preferiu ir caçar antas. A esposa, enfurecida, pediu para sua mãe fazer uma linha de embaúba bastante grossa e comprida e se embrenhou na mata. Na floresta, ela enfiou a linha em seu corpo, fazendo-a entrar pelo ânus e sair pela boca. Amarrou a extremidade superior numa árvore e a esticou até se transformar – ela mesma – em sucuri. Ao virar cobra, a mulher atraiu o marido imitando a voz das antas e, quando ele chegou até ela, o cercou, o prendeu e o engoliu. Em seguida, submergiu nas águas profundas de uma lagoa. Quando ela saiu da água, o marido, ainda vivo dentro dela, cortou a pele da sua barriga com um caco de pedra e saiu voando, pois tinha se transformado em pássaro. A mulher-cobra, ferida profundamente, se agitou contra as árvores até morrer.
Foto: Cris Takuá
São muitas as narrativas que trazem a embaúba como parte de memórias muito antigas. Tanto os humanos quanto os animais, como aves, formigas e preguiças, honram e exaltam sua existência.
Hoje, me preparando para finalizar o diário desta semana, logo de manhã encontrei uma preguiça toda tranquila na floresta. Lembrei de Sueli e Isael e de todos os meus parentes Maxakali, que sonham com a floresta viva de novo. Mandei uma foto.
Logo em seguida Isael me respondeu cantando para preguiça, e assim também fiz.
Fiquei escutando o canto-rezo de Isael com a preguiça, que gosta tanto das embaúbas e veio logo cedo dar um salve e alegrar nosso amanhecer….
Um pouquinho depois, Isael me envia um desenho que ele fez da embaúba e da preguiça.
Assim seguimos nossas conexões nas Escolas Vivas, cantando, sonhando e caminhando lentamente….
Fotos: Cris Takuá
06/09/2024
QUINTAIS MEDICINAIS E A BUSCA PELO BEM VIVER – por Cristine Takuá
Desenho: Fabiano Kuaray
Cultivo medicinas sagradas
Para nossa família se curar
O coração se alegrar
E a mente se libertar
Dos preconceitos
Dessa humanidade imperfeita
Da desunião dos
Que não sabem Amar.
Vamos seguindo
Vamos seguindo …
Caminhando sempre
Devagar
Um dia, com firmeza
A sabedoria
Podemos encontrar
Os quintais medicinais e os viveiros de plantas que curam são caminhos de encontro com as possibilidades de viver de uma boa e bela forma nos territórios em que habitamos. Existem muitas plantas, seres sagrados e grandes mestres de conhecimento. Elas nos curam, nos alegram e nos alimentam, e permitem que nos coloquemos no nosso lugar, no equilíbrio que necessitamos para caminhar tranquilamente.
Há muitas e muitas gerações, avózinhas dialogam com as plantas e nos curam dos males do dia a dia, seja uma dor de barriga, febre, dor de cabeça ou ansiedade, mal olhado e susto. Tudo curamos com as plantinhas. Desde criança, me encanto com um quintal todo florido. Dentro da beleza e das cores das plantinhas, não havia flor que não fosse remédio.
Me lembro de males que me afetaram na minha infância e que afetam meus filhos em suas infâncias. Todos foram curados com plantas. Sigo neste estudo de aprendizagem, observando e, às vezes, sonhando, buscando olhar na direção em que elas me orientam. Foi dessa forma que aprendi que as dores da alma se curam com nossas mestras, as plantinhas mágicas e protetoras.
Há uma sensível delicadeza nesse processo de diálogo que busquei praticar em sala de aula de filosofia. Caminhando com os alunos, reconhecendo e pesquisando as histórias e usos de algumas plantas da Nhe’ërÿ.
Já há alguns anos, venho convidando jovens a praticar o estudo com plantas de visão, que mostram os caminhos e as direções, revelando memórias e ativando possibilidades de transformação para encontrar o Bem Viver.
Assim, vou seguindo e sonhando com as Escolas Vivas, florindo através da cura da Terra e do corpo, buscando um sentido para a vida e para nossa luta diária.
Fotos: Carlos Papá
30/08/2024
A FORÇA E SABEDORIA DO FOGO – por Cris Takuá
Foto: Carlos Papá
Da origem do fogo
“Antigamente, quando os Guarani ainda não conheciam o fogo, acabavam comendo cru todas as coisas que os antigos caçavam, frutas que colhiam e precisavam assar. Eles passavam muita dificuldade por não conhecer o fogo.
Então, um dia, um Guarani Mbya viu um abutre voar lá no alto e pensou: “Eu acho que vou ter que conversar com alguém. Como que eu posso fazer para cozinhar as coisas ou até mesmo me esquentar quando faz frio. Como posso resolver? Alguém nesse mundo deve saber. Bom, vou começar pelo abutre”.
O abutre voava lá no alto e o Guarani estava só esperando a oportunidade. Um dia, o abutre estava tomando Sol pousado no chão, então o Guarani Mbya chegou bem devagarinho. Devagarinho, perguntou assim:
“Tomando Solzinho, tomando Sol?”
O abutre falou: “E o que você anda fazendo? Você vai se esquentar também?” Ele respondeu: “Sim, eu vou me esquentar também”.
Aí sentou ali do lado. O abutre começou a ter uma curiosidade e perguntou pra ele:
“E você, o que anda fazendo?”
Aí ele: “Ah, eu estou tentando descobrir como fazer fogo, porque o Sol esquenta. Quando o Sol está quente, todos nós nos aquecemos, mas quando não tem Sol, quando está frio, a gente sofre muito. Então, eu queria descobrir como fazer fogo. E aí eu queria saber: quem será que é o guardião do fogo? Eu quero saber também qual é o animal deste mundo, qual é a ave deste mundo, que é o guardião do fogo?”
Aí o abutre olhou bem assim e falou: “Ah, o guardião do fogo sou eu”.
O Guarani falou: “É mesmo?”
“É, quando não tem o Sol, quando o Sol não vem ao mundo, nós nos aquecemos com fogo”, disse o abutre.
“É mesmo?”, perguntou o Guarani.
“O nosso criador falou que, se eu entregar esse fogo para alguém um dia, eu voaria mais alto que todos, eu conseguiria voar mais alto do que as nuvens”, disse o abutre. “Nunca pensei em dar para alguém o fogo, porque até hoje eu voo baixo. Eu não consigo voar lá em cima.”
O Guarani Mbya respondeu: “Ah, então você falou com a pessoa certa! Eu estou querendo fazer fogo, eu quero lidar com fogo, quero dominar o fogo, quero poder cozinhar os alimentos”.
Aí disse o abutre: “Ah sim, podemos combinar então. Eu quero voar mais para cima, quero conhecer um pouco mais as nuvens lá em cima. E também, eu gostaria muito de comer as folhas de tabaco, as folhas de tabaco plantadas”.
O Guarani Mbya respondeu: “Ah, então você falou com a pessoa certa, eu vou plantar tabaco. A hora que estiver pronto, você vem comer as folhas. Assim fica combinado”.
Foto: Cris Takuá
Aí no outro dia, o Guarani Mbya pegou as sementes de tabaco e começou a fazer sua roça. Plantou tabaco, e plantou bastante mesmo. Cuidou com o maior carinho e, quando a folha ficou bonita, toda vistosa no ponto do colher, o Guarani Mbya chamou de longe: “Está pronto! Agora pode vir!”
Aí o abutre chegou e falou assim: “Muito obrigado! Então, fazemos nosso acordo. Amanhã eu venho com o pessoal e, no outro dia, depois que a gente for embora, você vai pegar o fogo. Esse é nosso acordo. E aí a gente vai deixar um instrumento também para você. Quando você precisar fazer seu fogo, você vai ter que fazer esse instrumento. É como seu arco: você vai pegar uma vareta firme e fazer o furo na outra madeira. Com esse arco, você vai achar uma maneira mais fácil de rodar, girar a madeira. Por conta da temperatura alta na ponta da madeira, pega o fogo. Assim você vai aprender, vai praticando”.
O Guarani Mbya viu muitos abutres na roça dele, comendo as folhas. Alguns abutres até levavam as folhas de tabaco. Tinha até filhotes, muitos abutres mesmo. Eles comeram todas as folhas e, à tarde, todos começaram a voar e ir embora.
Ele olhou para a roça e nada. No outro dia, voltou lá e estava tudo seco. Ele viu, na ponta da roça, uma madeira pegando fogo. Ele ficou tão feliz que ficou lá, cuidando do fogo. Fez uma oca em cima e ficou cuidando do fogo, durante muito tempo, até que aquela madeira chegou ao fim. Ele não sabia mais o que fazer e lembrou do instrumento que o abutre tinha deixado. Ele procurou por ali e, de repente, encontrou: um arco, uma madeira e uma vareta, ali, uma varetinha, e uma outra madeira com furo. Ele começou a fazer testes e se dedicou a praticar por bastante tempo. Um dia ele já estava quase desistindo, mas tentou de novo, e percebeu que estava saindo fumaça no lugar do furo. Ele começou a soprar, colocou as varetas, e elas começaram a pegar fogo. Ele ficou tão feliz!
Ele entendeu que o abutre tinha entregado o fogo e o segredo do fogo. O abutre não podia mais ser o guardião do fogo.
Hoje, o abutre vive em cima das nuvens. É o pássaro que voa mais alto, mas ele não é mais o dominante do fogo. O Guarani Mbya que ficou como guardião do fogo.”
(Carlos Papa Mirim Poty, Guarani Mbya)
Foto: Cris Takuá
Assim como os Guarani, muitos povos indígenas têm suas narrativas ancestrais sobre a origem do fogo e sua significância para a cosmologia de suas tradições. Ao longo da história, modos de fazer roça e práticas de manejo integrado ao fogo foram ferramentas de uso muito importante para conservação da biodiversidade, tendo aspectos ecológicos, sociais e culturais de muitos povos. Porém, de forma inadequada empregaram essa técnica para desmatamentos criminosos, causando o desequilíbrio das florestas e de nossas vidas. Essas violências relacionados ao mau uso do fogo, ou o seu uso abusivo e descuidado, estão totalmente ligadas a políticas da monoculturas de exportação, ao café, ao gado, ao agronegócio, à mineração, à urbanização e ao capitalismo de um modo geral, que não respeitam as vidas vegetais, animais e minerais, nem mesmo as vidas humanas.
O fogo também é um elemento muito antigo conectado à espiritualidade. Rituais e cerimônias de cura têm no fogo a base da transformação, que pode ser para proteger uma pessoa que faleceu e garantir a seu espírito um retorno tranquilo. Também é tradicionalmente usado para espantar os maus espíritos e, devido a isso, o fogo costuma acompanhar as noites, aceso logo após o pôr do sol, se mantendo até o amanhecer do dia. Em muitas culturas, quando alguém morre, costuma-se queimar a casa onde a pessoa morava e todos os seus pertences, para que o espírito se desprenda da terra e não deixe lembranças.
Fotos: Cris Takuá
Muitos são os saberes e conhecimentos relacionados ao fogo. Ele é sagrado e existe há milhares e milhares de tempos. Um grande ensinamento que um ancião de mais de cem anos fala é que a tecnologia indígena permite a regeneração. O fogo não é usado de qualquer maneira, ele é rezado, primeiro é pedido licença e permissão e seu uso é controlado.
Quando empregado na agricultura comunitária, ele avança mais sobre cipós e pequenas plantas, previstas para serem queimadas. Em seguida, as mulheres plantam primeiro as plantas de ciclo rápido, como milho, feijão, melancias. Depois vem a capoeira e, com ela, os animais e pequenos seres. Os animais trazem sementes, que vão aos poucos germinando. A segunda queima, a coivara, é uma seleção mais fina de pontos férteis. A partir daí, é plantada a batata-doce, que aproveita particularmente o potássio das cinzas. Muitos povos chegam a preparar comida nos locais das roças para aproveitar as cinzas como nutriente. As plantas introduzidas no primeiro plantio são as mais tolerantes ao fogo, vindo depois as frutíferas, destinadas à caça. Hoje, muitos têm empregado técnicas de agrofloresta, até para recuperar solos demasiadamente degradados pela ação humana.
De um modo geral, o que ensina a agricultura indígena é o que a arrogância colonial se negou a aprender com ela. A arrogância acabou destruindo a vegetação, o que endurece o terreno, diminui sua permeabilidade, aumentando o escoamento de nutrientes e acentuando a erosão, impedindo a acumulação de húmus e perdendo a água.
Saber caminhar de forma respeitosa e suave na Terra e saber como se relacionar com os elementos sagrados – água, fogo, terra e ar – é fundamental para que possamos entender os limites dessa nossa humanidade.
Esses são ensinamentos vivos em muitas culturas. E a prática desses saberes e fazeres é resistência num mundo onde o dinheiro pretende comprar até almas.
É necessário romper com as barreiras da arrogância e enxergar que existem muitos mundos possíveis. A semeadura mais importante hoje é a mental!
Ampliar a consciência para que o respeito para com todas as formas de vida possa existir novamente!
O fogo é sagrado!
Fotos: Carlos Papá
22/08/2024
SONHO DA TERRA VIVA – por Cristine Takuá
Foto: Cristine Takuá
Essa terra é nossa.
Nũhũ yãgmũ yõg hãm.
Por que essa terra é nossa?
Sem a terra não tem escola diferenciada. Sem a terra não tem saúde diferenciada. Porque nós lutamos para conquistar a terra. Realizamos nosso sonho e hoje vamos criar muitos projetos em cima da terra. Da nossa terra. Por que nós chamamos Aldeia-Escola-Floresta? Porque onde tem aldeia, tudo é “sala de aula”. Onde tem árvore e sombra é “sala de aula”. As crianças vão cantar o nosso ritual. Imitam. Na beira do rio, elas vão brincar, cantar e escrever na areia. Tudo é “sala de aula” dentro da aldeia. Todos os homens vão para dentro do mato e vão cantando dentro do mato. Vão tirando madeira e vão cantando. Por isso, colocamos o nome Aldeia-Escola-Floresta, porque toda a aldeia é escola. Onde tem sombra, as mulheres vão se juntar e fazer os artesanatos. As crianças vão chegando, escutando do lado e aprendendo também. A aldeia inteira é escola. Onde tem casa de ritual é escola verdadeira, muito importante. Vai ter canto, história, cultura, comida tradicional. Nós, comunidade da Aldeia-Escola-Floresta, queremos terra para Yãmĩyxop, para crianças, para o futuro. Porque nós nascemos todos junto com a floresta, nascemos todos juntos com a caça. Essa terra é nossa mãe porque ela alimenta todos nós. Os nossos cantos registram todas as caças. Alguns bichos que perdemos, o canto registra. E os desenhos também representam os animais. Tem bichos grandes que perdemos, mas registramos os seus nomes. Nosso canto fala seus nomes. Nós, Maxakali, somos sofredores, mas nosso Yãmĩy nos acompanham. Todos os dias os Yãmĩy saem comigo, com todos os Maxakali.
Fotos: Carlos Papá
Por que eu falo Aldeia-Escola-Floresta?
Se eu sair daqui, se eu for para o mato, o meu Yãmĩy está me acompanhando, eu vou cantando dentro do mato. Se eu brincar no rio, outro Yãmĩy vai me acompanhar. Eu vou imitar qualquer bicho: peixe, jacaré, andorinha, vou fazer seus cantos. Por isso é que chamamos Aldeia-Escola-Floresta. Aqui, a minha casa é escola, porque estamos passando o nosso conhecimento para os jovens que estão aprendendo agora.
Nós somos professores. Nós estamos falando. Eles estão escutando as falas. Pegamos a palavra boa para esperar a nossa memória, para não cair. Tem que crescer. Ter o conhecimento diferente, pegar o outro conhecimento para crescer a Aldeia-Escola-Floresta.
Nosso sonho é pegar a terra e recuperar. Porque ela precisa ser curada, precisa de tratamento. Porque a terra é viva. Terra fala, terra olha a gente e terra grita. Mas o fazendeiro não escuta que a terra está gritando e precisa de socorro. Por isso que nós queremos reflorestar, e fazer a Aldeia-Escola-Floresta.
Palavras-sonho de Isael Maxakali
Artes: Marcos Maxakali
Foto: Cristine Takuá
No início de agosto, fomos visitar a Escola Viva Maxakali na Aldeia-Escola-Floresta. Foi um encontro muito emocionante, onde conseguimos dialogar, ouvir os cantos dos espíritos, desenhar com as crianças, os jovens, os pajés e as mulheres anciãs.
A arte é um portal muito poderoso para os Maxakali, pois eles transformam a memória dos cantos em desenho com uma habilidade e concentração muito encantadora.
Com o apoio do Selvagem e do Instituto Tomie Ohtake, realizamos uma oficina de três dias e dialogamos sobre o território, sobre os animais espíritos de cada ritual, sobre os alimentos tradicionais e todos os seres que habitam o território.
Da esquerda para a direita, artes de Marineide Maxakali, Juan Maxakali e Jurema Maxakali.
Mesmo a floresta tendo sido quase que totalmente devastada, os Maxakali guardam a memória de todos os animais e vegetais nos cantos, dezenas de espécies de abelhas e de plantas.
Um sonho que venho semeando em meu coração e em meus pensamentos é de conectar o Hãmhī, Terra Viva, um projeto maravilhoso de reflorestamento e implementação de quintais agroflorestais nas aldeias Maxakali, com as ações da Escola Viva e com a cura do corpo e do espírito. São muitos os desafios que as comunidades enfrentam hoje, como o lixo, a tristeza da perda da floresta, a falta de caça, o preconceito dos não indígenas, que vivem nos entornos das aldeias e na cidade. Todos esses desafios acabam levando ao alcoolismo e à tristeza. São muitos os problemas que exigem uma força de resistência e de ampliação da consciência para a transformação na ação da micropolítica do dia a dia, do próprio terreiro que nos rodeia.
Foto: Carlos Maxakali
As palavras-sonho de Isael Maxakali são profundas intenções que são sopradas em palavras por muitos Maxakali, homens e mulheres que anseiam ver a floresta viva, as crianças felizes e o suspiro tranquilo do Bem Viver em seus territórios.
Na caminhada que fizemos chegando na Aldeia-Escola-Floresta, tivemos a sensível possibilidade de perceber a força e beleza da resistência das mulheres que, com suas cores e risos, transformam os desafios em poesias a cada novo amanhecer.
Resistir para Existir
Sonhar para não deixar de Acreditar
Que é possível metamorfosear as relações
E fazer brotar uma realidade de mais encantos
Viva viva as Escolas Vivas!
Foto: Cristine Takuá
Foto: Carlos Papá
15/08/2024
ACORDAR DO DIA – por Cris Takuá
Desenho: Isael Maxakali
CANTO DO POVO DE UM LUGAR
Música de Caetano Veloso traduzida para Maxakali
Todo dia o Sol levanta
E a gente canta o Sol de todo dia
Finda a tarde a terra cora
E a gente chora porque finda a tarde
Quando à noite a lua mansa
E a gente dança venerando a noite
TIKMÛ’ÛN KUTEX HÃM PUXET TU
Mãyõn yã hãm tup pip ma xupep
Hakmû tuk kutex mõkumak hãmtup pip ma
Mõnãm tûmnãg tu yã nãm te hãm’atã nãhã
Iîg mûg potaha ãmãxãgnãg yî
Mãyõnhex ãmniy pipma nõgtap
Yîg mû ãte hãm yãg ûmõg me’ex ãmnîyhã
Arte: Isael Maxakali
Na bruma suave que envolve o amanhecer, crianças, jovens, avózinhas e adultos se misturam numa melodia de risos, cantos e contação de sonhos. A fumaça da fogueira, junto ao foguinho que faz o café ou esquenta a água para o chimarrão, se faz presente. Pássaros cantam e encantam os momentos que a cada novo momento vivemos no acordar do dia.
O Sol é considerado um guia e um criador, uma fonte de vida e energia, um ser sagrado que aquece e ilumina, com suas camadas radiantes, para nos encorajar a animar a caminhada dos anseios e desafios. Cada povo, em sua memória ancestral, o nomeia à sua forma: os Guarani o chamam de Kuaray ou Nhamandu, quando se referem à sua divindade, os Maxakali, de Mãyõn, os Baniwa, de Kamoi e os Huni Kuï, de Bari.
Foto: Cadu Castro, aldeia Rio silveira
Muitos sábios anciãos dizem que o Sol se levanta todos os dias somente por conta da preciosa presença das criancinhas aqui na Terra. É por elas, segundo eles, que o sagrado Sol ainda vem, mesmo com tantas contradições humanas.
Hoje, muitos crescem tendo medo dele, sempre pensando nas mudanças climáticas e no aquecimento do planeta, mas não se lembram, ao acordar e ao entardecer, de reverenciá-lo. Os povos indígenas, desde crianças, são ensinados a honrar e reverenciar o Sol, a lua e todas as entidades do céu e da Terra, os visíveis e invisíveis. E imersos, nessa poética de resistência, cada um, a seu modo, busca seguir os rastros de seus antepassados com respeito, delicadeza e beleza.
Desenho: Jose Vhera Guarani
NHAMANDU TENONDE
Nosso Deus Sol Primeiro
Nhamandu tenonde
Oyvarapy py
Imba’ekuaa gui
Onhembojera
Pytuymã mbyte gui
Nhanderu
Nhamandu tenonde
Nhamandu tenonde
Tenonde
Tenonde
Foto: Cris Takuá
08/08/2024
JEROKY, BROTO FLEXÍVEL – por Cris Takuá
Foto: Alexandre Maxakali
“Tudo que nasce é como um broto. Tudo que brota, dança: ojeroky. Assim, dançando, as coisas surgem e crescem. O termo Guarani jeroky é traduzido como “dança”, mas, se nos aprofundarmos em sua raiz, significa “desabrochar-se como uma nova semente”.
“A nova semente germina na escuridão do subsolo e dela desponta a raiz que vai se propagando. Aparece a primeira folha que, dançando, precisa sair do subterrâneo em busca de luz. Com nossos corpos acontece o mesmo: precisamos dançar para sair do ventre materno em direção à luz.”
Carlos Papa e Anai Vera
(https://piseagrama.org/artigos/jeroky-a-danca-do-broto/)
Foto: Cris Takuá
Em meio à profundeza do escuro, há milhares e milhares de tempos fez-se desabrochar a vida e tudo que habita o mundo, assim nos contam os pensadores Guarani.
Desde a gestação na barriga de sua mãe, o bebezinho dança, baila e surge de forma natural ao mundo. E a partir desse momento, como um pequeno broto, cada um de nós vai desabrochando, até começar a engatinhar, caminhar e trilhar os caminhos dos nossos sonhos e anseios.
Foto: Carlos Papá
Curiosamente observo que, ao longo da vida, somos moldados pelas escolas não vivas e pelas cidades concretizadas e quadradas a sempre andar em linha reta, sempre sentar com o corpo dobrado na cadeira.
Com isso, desaprendemos o princípio básico do Jeroky, como nos faz praticar a Escola Viva da floresta. Caminhar na mata é bailar, dançar feito um “broto flexível”. Assim como sentar debaixo de uma árvore para contar e ouvir histórias, nossos corpos se mantêm em constante harmonia na melodia da floresta.
Quando nos permitimos sentir nosso corpo e os movimentos naturais que as florestas nos ensinam a conviver, passamos a nos conectar com a vida que pulsa e é incrivelmente selvagem.
Foto: Cris Takuá
Foto: Alexandre Maxakali
*Vídeo de Carlos Papa – Jeroky
https://youtu.be/mlipzvcQ9wM?si=kexo4c8AEEwNVAV0
20/06/2024
A FORÇA DAS MONTANHAS – por Cris Takuá
Foto: Carlos Papá
Avózinha montanha
A força das pedras
Em meio à imersão da Espagiria
Muito profundos os ensinamentos
trazidos de tempos muito antigos
A cura é um delicado diálogo
Com os elementos
Com todos seres
Que nos possibilita a transformação
E tece laços de animação
Para o fortalecimento das crianças
dos Territórios
E o acordamento das memórias
Viva viva as Escolas Vivas
Viva os laboratórios vivos
Das Casas de Essências.
Foto: Ju Nabuco
Caminhando por entre montanhas e vales, chegamos em São Gonçalo do Rio das Pedras em Minas Gerais, terra sagrada de muitas pedras e histórias. Durante três dias acompanhei os coordenadores das Escolas Vivas Guarani e Tukano-Desana-Tuyuka, e três jovens que foram junto. Falamos de História, Filosofia, Alquimia e Espagiria (a arte de produzir remédios, separar e unir, extrair e purificar através da sensível arte de conhecer a matéria dos seres).
Dialogamos sobre conhecimentos profundos e, através da troca entre o grupo reunido, sentimos que o conhecimento, quando entra dentro da gente, ele fixa e não sai mais. A partir das disposição em escutar com atenção nos permitimos sentir e perceber o que nos rodeia. Tudo o que desce do céu e sobe da Terra transmuta e nos orienta nessa caminhada de estudos e aprofundamentos na busca do Bem Viver.
Fotos: Ju Nabuco
O sonho das Escolas Vivas é ativar, animar e criar teias de afetos e cuidados, onde possamos caminhar cuidando de quem cuida e incentivar a semeadura dos saberes. Quando plantamos um jardim dentro nós a gente assume a responsabilidade de ser um agente multiplicador e capaz de ultrapassar a barreira do visível e a enxergar e dialogar com os seres invisíveis.
Um grande amante das plantas foi Paracelso, filósofo e médico do século XVI. Ele dizia que os humanos começam a adoecer quando se afastam de Deus, a natureza. Ele dizia que:
“Quem nada conhece, nada ama.
Quem nada pode fazer, nada compreende. Quem nada compreende, nada vale. Mas quem compreende também ama, observa, vê…
Quanto mais conhecimento houver inerente numa coisa,
Tanto maior o amor…
Aquele que imagina que todos os frutos amadurecem ao mesmo tempo, como as cerejas, nada sabe a respeito das uvas.”
Assim passamos três dias dialogando, colhendo plantas e preparando remedinhos e, nesses momentos tão sensíveis, aprendemos que a força do céu que está na planta desperta a força que habita em nós. Mas nos processos criativos de transformação da matéria precisamos de atenção e concentração. Pois a dispersão pela fala demasiada e a desatenção provocam o desperdício do tempo.
Foto: Ju Nabuco
Dessa forma pude sentir e compreender a profunda relação com os elementos fogo, terra, água e ar e com os seres elementais: vegetais, animais, minerais e universais. Numa profunda conexão de tempos ancestrais onde filosofias Guarani, Tukano, Maxakali e lá do Egito se cruzaram e dialogaram numa profundeza encantadora.
Os jovens se inspiraram, cantaram, choraram e poetizaram suas percepções e inspirações de seguir caminhando, fortalecendo as Escolas Vivas e o sonho de alcançar a boa e bela forma de ser e estar em seus territórios.
Foto: Ju Nabuco
13/06/2024
PALAVRAS SOPRADAS – por Cris Takuá
Arte de Juliana Russo
Boas e belas palavras
Massageiam a alma atenta.
Pensamentos invadem de magia meu ser
Em busca de entendimento
Dos mistérios das ciências da floresta.
As palavras como um sopro
Saem ecoando nossos pensamentos,
Voam e bailam no ar
Em busca dos conhecimentos,
Mas nem sempre se fazem
Claras e entendíveis
Aos seres que as recebem,
Podendo causar arrepio ou
Profunda emoção.
Como é difícil a suave comunicação
Em um mundo mergulhado em informação!
As palavras curam,
Alegram
E também machucam
Se mal colocadas!
Precisamos cuidar de nossas palavras
Para que os sentimentos
Não perturbem nossos sonhos
E nosso caminhar.
Prossigo minha pesquisa
Ora sonhando
Ora acordada
Mirando seres sagrados
E buscando sabedoria e tranquilidade
Para seguir poetizando meu silêncio
Múltiplo e profuso.
A certeza a cada novo amanhecer
De mais harmonia
De mais alegria
Entre os seres
Entre o visível e o invisível
Entre o indivisível que habita
Na terra e no mar.
É preciso calar,
É preciso amar,
É preciso sentir mais,
É preciso ser a gente mesmo
A cada instante,
A cada suspiro de nosso viver.
Vai caminhante antes do dia nascer,
Vai caminhante antes dos sonhos
A noite tecer…
Arte de Fabiano Kuaray
Para os humanos, a palavra, esse código ancestral comunica pensamentos e constrói pontes entre os mundos. Há muitos e muitos séculos, cantamos, rezamos, pronunciamos e sopramos mensagens de transformação.
Saber se colocar, entrar e sair de todos os lugares é uma ética para se dispor a conviver com a diversidade de seres que pensam e anseiam alcançar a sensível sabedoria de sentir sua própria sombra.
Disputas ideológicas muitas vezes causam atritos e podem afastar a energia que construímos e nomeamos como amizade, respeito e troca de conhecimento.
Refazer ou reconstruir a teia das relações nos exige uma capacidade de compreender a imperfeição que habita em nossa humanidade, tão machucada pelas contradições do dia a dia.
Quando compreendermos que o amor é uma partícula invisível que une e nos faz enxergar a nós mesmos, entenderemos que nada, ninguém e nenhuma palavra mal soprada poderá acabar com uma amizade verdadeira.
06/06/2024
ANDAR COM CONSCIÊNCIA – por Cris Takuá
Arte: Fabiano Kuaray
Ero Tori (Façam surgir a consciência)
Ero Tori Tori
Ero Ta kua (Façam alcançar o som do conhecimento )
Ero Ta kua ta kua….
Quando sentimos os ensinamentos transmitidos pelos mestres e mestras do saber, percebemos que somos direcionados a aprender a nos colocar no mundo, na relação com tudo e com todos que nos rodeiam. Todos os seres possuem uma profunda interação com a grande teia da vida, desde que desabrocham nesse mundo. Nós, humanos, somos seres imperfeitos, mas capazes de uma transformação possível para alcançar o Arandu, a sensível sabedoria de sentir a nossa própria sombra. Mas, para isso, temos que estar dispostos a andar com consciência, andar sentindo o som do conhecimento, que nos possibilita enxergar para além das aparências.
As crianças são seres sensíveis, observam cada sentido das coisas. Tenho observado em muitos momentos as crianças questionando os adultos por suas atitudes contraditórias. Alcançar e andar com consciência compreende superar a contradição nas ações diárias. Sinto e vejo abelhas, formigas, cachorros, galinhas e tartarugas com sensibilidades e ações conscientes muito mais equilibradas do que a de muitos humanos.
O grande mistério da vida está em atravessar o portal do que os nossos olhos nos possibilitam ver e mergulhar no infinito mundo das redes de conexões dos saberes e fazeres que são os códigos de acesso ao entendimento. Durante os muitos anos em que dei aula numa escola, insistentemente eu sempre cutucava meus alunos para sentirem e estarem atentos à consciência ao caminhar, ao falar e ao se manifestar no mundo. Nem sempre eu era compreendida por eles ou por algumas lideranças, que sempre achavam que eu estava querendo falar de política. Uai? Política?
O que será a política do nosso próprio terreiro senão a de respeitar todas as formas de vida? As montanhas, os rios, as formigas e as cotias. Semear a micropolítica é algo muito encantado, porém desafiador. São séculos de deterioração do Teko Porã, a boa e bela maneira de Ser e Estar num território. Andar com consciência compreende se permitir a praticar essa delicada e sofisticada tecnologia ancestral, o Bem Viver.
Foto: Anna Dantes
Desde que saí/fui tirada da sala de aula formal, curiosamente, por todos os lugares em que tenho caminhado, me encontro com crianças, em oficinas, rodas de conversa e vivências. E escutando e percebendo o modo como elas concebem a relação das coisas, me surpreendo com a capacidade que as crianças têm de andar com consciência, de sentir o som de tudo que as rodeia.
Criança deveria ser liderança nesse mundo de tantos humanos desmemorizados e sem consciência!
Séculos se passaram e a nossa humanidade escravizou plantas, peixes e montanhas em nome de uma razão delirante, que passou a julgar e comprar/descartar tudo que não corresponde ao padrão estabelecido. Preocupados com o desenvolvimento, a ordem e o progresso, adultos humanos criam leis e fazem guerras.
Enquanto isso, crianças em todo o mundo estão a observar esse descompasso e a se posicionar perante a ética que permeia nossos envolvimentos com a vida e não o desenvolvimento dos seres viventes.
Qual a ética que envolve suas relações no dia a dia?
Para andar com consciência e alcançar o som do entendimento das coisas devemos silenciar e escutar mais as crianças.
Foto: Vhera Poty
30/05/2024
AVÓZINHA DO MUNDO: ARAUCÁRIA – por Cris Takuá
Hoje sonhei com a avózinha das florestas
A grandiosa mestra
Conhecedora dos sábios segredos
Da ciência das ciências dos mistérios.
Em poucas palavras ela foi me tecendo
Pensamentos, me revelando caminhos
Me orientando e mostrando a
Incrível delicadeza que habita
Na simplicidade das coisas.
Meu espírito voou e percorreu
Vales e montanhas
Bailou, rodopiou e sentiu
A profunda liberdade que reside
Na morada sagrada dos espíritos secretos.
Não há saber maior que o Amor!
A cada dia nos surpreendemos
Com as revelações que surgem
No novo amanhecer
Na noite fria mergulhei em busca de entendimento
E pra minha surpresa,
A grande mestra lá estava
Em seu trono sagrado sentada
A me esperar
Nas longas caudas de uma Araucária
Com sua flauta e seu Maracá
Só me aguardando pra junto a ela
Prosseguir com a cantiga
E soprar poesias para os quatro cantos
A fim de colorir e massagear
Os seres dessa Terra!
Cansados e sofridos
Pela falta de entendimento.
Oh seres caminhantes, despertai-vos
Desse sono profundo
E sentis a saborosa magia
Que mora no silêncio cantante
Dos pensamentos seus!!!!
Foto: Carlos Papa Tekoa Yvyty Porã, RS
Há milhares e milhares de tempos surgiu esse ser sagrado Kuri, como chamam os Guarani a araucária. Essa árvore tão antiga é uma avózinha vegetal do mundo. Registros arqueológicos mostram sua existência e resistência há muitos séculos. Nesses tempos todos, as araucárias já presenciaram muita luta, resistência e também muita beleza; uma memória ativa que, lá do alto de suas verdes copas, presenciam.
Nas últimas semanas estamos presenciando no Rio Grande do Sul um profundo desequilíbrio atingindo a vida de seres humanos e não humanos. O transbordamento do Rio Guaíba, do Rio Taquari e de tantos rios que, machucados pelas duras ações humanas, não aguentaram a pressão da chuva grande e inundaram, destruíram e deixaram seu recado.
Os Ija kuery, guardiões de tudo que habita nessa Terra, estão cansados dos seres humanos, imperfeitos e desajustados. Há muito tempo estão a observar as pegadas tão pesadas do agronegócio, da mineração, do desamor e do desrespeito para com a diversidade das formas de vida.
Gravura a bico de pena por Percy Lau, Arequipa, 1903
Rio de Janeiro, 1972. Fonte: Tipos e Aspectos do Brasil IBGE 1966
O marco temporal, essa tese anticonstitucional, que permite a revisão e o abuso das terras indígenas já demarcadas, é o ápice da ignorância e do abuso humano, que não consegue enxergar que sem floresta viva não haverá vida possível. A luta e o rezo constantes para garantir e proteger os territórios ancestrais dos povos indígenas são justamente para que todas as formas de vida possam viver: araucárias, cotias, pacas, abelhas, ametistas, montanhas, rios e peixes.
Há duas noites, concentrada na Opy’i, casa de reza, em diálogo e estudo com plantas professoras, o espírito da Kuri veio falar comigo. Ela era bem velha e grande. Me disse calmamente que está lá do alto assistindo a toda a confusão e sofrimento que está acontecendo. Viu muitos parentes vegetais, animais morrendo afogados, arrastados pela lama, pela água brava e nada pôde fazer. Ela somente assistiu, silenciosamente, com seus bracinhos como se estivessem em forma de saudação, que reverencia todos os dias o sol, a lua e a vida, pedindo força e proteção. Ela ficou um tempo me mostrando as grandes florestas que já existiram de araucárias e que hoje estão reduzidas a algumas. Me mostrou também a força do petyngua, cachimbo Guarani feito do nó do pinho dela, e o quanto cada um que o carrega consigo deve respeitá-lo. Me recordou imagens muito belas de mulheres, preparando farinha de pinhão com seus pilões, cenas antigas onde tudo era profundamente interligado. Aos poucos as imagens e a voz dela foram desaparecendo e fui aos poucos voltando e, ao olhar para o fogo, que estava intensamente vivo, senti de me levantar e compartilhar com os jovens que comigo estavam aquela experiência mágica e muito proveitosa que havia sentido, presenciado e aprendido mergulhada em profundas mirações.
Pintura: Jose Vera, RS
Ao amanhecer do dia refletindo sobre toda a noite de estudos e aprendizados, me recordei de passagens do livro a “Queda do Céu” de Davi Kopenawa….
“No começo a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá eram tão poucos quanto nós agora na floresta. Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. Seus antepassados mais sábios, a quem Omama criou e a quem deu suas palavras, morreram. Depois disso, seus filhos e netos tiveram muitos filhos. Começaram a rejeitar os dizeres de seus antigos como se fossem mentiras e foram aos poucos se esquecendo deles. Derrubaram toda a floresta de sua terra para fazer roças cada vez maiores. Omama tinha ensinado a seus pais o uso de algumas ferramentas metálicas. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido embaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grande quantidade. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso os fez esquecer a beleza da floresta. Pensaram: “Nossas mãos são mesmo habilidosas para fazer coisas! Só nós somos tão engenhosos! Somos mesmo o povo da mercadoria! Podemos ficar cada vez mais numerosos sem nunca passar necessidade! Vamos criar também peles de papel para trocar!”. Então fizeram o papel do dinheiro proliferar por toda parte, assim como as panelas e as caixas de metal, os facões e os machados, facas e tesouras, motores e rádios, espingardas, roupas e telhas de metal. Eles também capturaram a luz dos raios que caem sobre a terra. Ficaram muito satisfeitos consigo mesmos. Visitando uns aos outros em suas cidades, todos os brancos acabaram por imitar o mesmo jeito. E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se espalharam por toda a terra dos seus ancestrais. É o meu pensamento. Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite.”
(Davi Kopenawa, “Paixão pela mercadoria”, em A Queda do Céu)
Pintura rupestre de Araucária, Pirai do Sul, PR
23/05/2024
CORPO – CASA – TERRITÓRIO – por Cris Takuá
Arte de Cris Takuá
Nosso corpo é território
É casa, é morada ancestral
Nossa casa é a floresta
E através dela atravessamos
um cristalino portal
Nosso território é beira do rio,
É montanha e manguezal
Somos o emaranhado de uma teia
de colorido natural.
A floresta pulsa
e os seres sagrados que nela habitam
estão a nos observar em meio ao vendaval
Respeitar os espíritos da floresta
Deveria ser o princípio inicial
das relações de transmissão de saberes
e conhecimentos
desse nosso mundo atual.
Arte de Kaue Karai Tataendy
Tecendo mundos vamos aprendendo a nos relacionar com os espaços que nos circundam. Desde a primeira morada que nos acolhe no útero de nossas mães começamos a perceber e a sentir a dimensão dos muitos territórios que habitamos. Nessa grande teia de relações somos concebidos com modos de pensar e existir conectados com uma memória ancestral, um acervo de saberes e fazeres que habita nossos corpos e existe em muitas camadas. O corpo, casa, território, esse mundo de conexões profundas está passando por modificações significativas devido ao processo de mecanização das relações. A inteligência artificial, cada vez mais presente na vida e nas convivências humanas, tem feito com que as ferramentas ancestrais de comunicação, como a telepatia, a intuição e os sonhos fiquem silenciados no dia a dia de muitos seres.
A nossa grande morada, a nossa casa sagrada, é a floresta. E ela não está presente somente dentro da nossa casa, mas nas cachoeiras, nas montanhas, em todos os espaços onde se constitui o tekoa, que é o território onde se vive, onde se planta, onde se cria, onde se brinca, onde se é possível conviver de uma forma coletiva, de uma forma verdadeira. Sinto que todo o nosso corpo, toda a forma como a gente se coloca no mundo, estão sendo chamados para uma transformação, um redirecionamento. Independente das nossas origens, das nossas posições políticas, filosóficas ou epistemológicas, precisamos ter um compromisso ético com a vida e, assim, conseguir equilibrar o sopro de amor que sai das nossas palavras com o compasso dos nossos passos ao caminhar. Esse é o grande desafio que temos que superar para conseguirmos avançar, com coerência e serenidade, sem sermos constantemente contraditórios nas nossas ações.
Arte de Jera Mirim
Ao longo da história, a humanidade se escorou em uma razão que não coloca os outros seres no diálogo. Os humanos criaram, inventaram, modificaram, destruíram o equilíbrio da natureza. E esqueceram de perceber que as formigas, as abelhas, o vento, as montanhas, os rios e todos os seres que habitam aqui neste planeta, seres visíveis e invisíveis, seres, animais, seres vegetais, seres minerais, eles também possuem uma coletividade, uma dinâmica de vida que pulsa dentro desse território que é o grande planeta Terra. Mas nós, humanos, insistimos em querer ser maiores, em querer ser mais pensantes e donos desse mundo todo. E, em nome disso, causamos todo desequilíbrio nessa humanidade que a gente julga e pensa ser.
Não tem como nos dissociarmos da natureza, porque nós somos a natureza e tudo está interligado. Nenhum humano consegue viver e sobreviver se não tiver água para beber, se não tiver um ar puro para respirar. Todo o processo capitalista e colonizador, em muitos lugares no mundo, impôs um modo de ver e pensar o tempo, e isso afetou os processos de transmissão de conhecimento. Há uma monocultura que rege os alimentos, que rege as epistemologias e os processos de cura e doença. Isso precisa ser compreendido de um modo que os indivíduos percebam que nós não somos nada além de um pequeno grão nessa grande teia que relaciona a vida. Quando penso em casa, corpo e território, percebo o quanto nós, humanos, somos dotados de um grande potencial que é a nossa própria mente. O nosso pensamento é capaz de muito desenvolvimento e criatividade, que podemos nós mesmos nos proporcionar ou nos direcionar a aprender.
As formigas, as abelhas e as plantas são seres muito inteligentes, assim como todos os seres minerais. Eles pulsam a cada dia, se transformam e se recompõem. E nós, humanos, estamos constantemente nos dividindo por classes, etnias, cor de pele, classe social. Mas somos todos humanos e fomos colocados todos neste mesmo barco, que é essa morada sagrada, que é essa casa-território onde habitamos e compartilhamos de lutas e sonhos, de expectativas e querências a cada dia. Se habituar a isso e enxergar de uma forma clara e plena é a missão que cada um de nós carrega nessa morada territorial. Com as nossas sensibilidades, com nossas especificidades culturais, espirituais, somos capazes de alcançar essa grande coletividade que habita a casa planeta Terra, e assim reativar o cuidado e a atenção com o nosso próprio corpo, com a nossa mente e espírito.
Arte de Alexandre Wera Popygua
16/05/2024
ENTRE RIOS, MONTANHAS E CRIANÇAS – por Cris Takuá
Arte coletiva.
Foto: Cris Takuá
Vida Rios
“ Os Rios são veias visíveis
Existem os Rios subterrâneos
e os Rios voadores.
Rios como flechas da memória
Neurotransmissores
Rios Micélios Neurônios
Os Rios não são Rios, somos nós
São tudo.
São evidências do corpo da Terra
Vidências trazem a visão.
A pele da Terra é o céu.”
*** Anna Dantes, Puerto Berrio,
Colômbia- maio/2024 ***
Residência “Actuar por lo vivo” sobre a bacia do rio Magddalena. Puerto Berio, 3 de maio de 2024.
Foto: Digo Fiães
Os rios são as veias da Terra, são espíritos que caminham serpenteando, deslizando entre pedras e águas cristalinas. Brotam de montanhas antigas e acariciam nossas peles com a possibilidade da vida. Pelos quatro cantos do mundo e ao longo da história, humanos não souberam respeitar a existência dos rios. Mudaram seus percursos, contaminaram seus corpos com dejetos de mineração, agrotóxicos e lixo – muito lixo.
Hoje, crianças estão a refletir e, mais do que isso, estão sentindo as duras consequências dos hematomas nas camadas profundas da Terra. Através de sua sensibilidade estão mediando os conflitos entre os mundos e entre os tempos, com o objetivo de regenerar os vínculos com os seus territórios ancestrais.
Um caminho que vem se desenhando possível é sentir e pensar o rio, diante de todas as suas feridas e complexidades. E assim cantar para o Rio, conversar com ele e escutar suas profundas mensagens. Esses são desafios que seres sensíveis estão conseguindo alcançar.
Fotos: Lina Cuartas e Cris Takuá
Caminhando nas margens do Rio Madalena em Puerto Berrio, na Colômbia, no início de maio, recordei memórias antigas de crianças brincando e plantinhas brotando nas margens dos rios do mundo. Me conectei com o sagrado Guaíba lá no Rio Grande do Sul, cansado, machucado com toda a confusão humana, e algo ressoou em mim em forma de canção….
Yxyry Porã Mbaraete
Yxyry Porã Mbaraete
Yxyry reo Para Guaxu aguã.
Yxyry reo Para Guaxu aguã.
💦💧🩵💦💧
Um canto para o belo Rio Madalena, Guaíba, Taquari, Rio Doce e Paraopeba.
As montanhas são como avózinhas – nos abraçam e nos protegem. Muitas águas brotam do alto das montanhas, por isso elas têm profundas conexões com os rios que deságuam no mar.
São caminhos!
Rios, Montanhas e Crianças
Seres que nos ensinam.
Precisamos escutar mais
E respeitar a vida desses seres tão sagrados!
Foto: Maria Inês
09/05/2024
TABACO, MESTRE DO SABER – por Cris Takuá
Foto: Carlos Papá
Curandeiro ancestral
O sopro do cachimbo
O sopro do rapé
O sopro do amor
Das palavras
Das canções que
Explodem do universo
Interior das inquietações íntimas
De nosso Ser…
O sopro limpa
Alivia e dissipa
As mágoas e as ansiedades.
A maldade existe!
Mas não é nada comparada
À força que habita na fumaça
Das medicinas sagradas
Que através de seu sopro
A tudo purifica e transforma
O sopro que como um impulso
Sai em forma de palavras em movimento
Ecoa pelos quatro cantos desse universo
Em profundos momentos .
É necessário cantar mais
Proferir mais palavras de amor
É necessário soprar cura a tudo e a todos
A ilusão persiste em perseguir
A matéria humana
Mas o verdadeiro Amor habita
Na sensível sabedoria
Das pequenas coisas
Dos pequenos atos
Das profundas ensenhanças
Dos sonhos e das crianças
Que revelam a cada novo amanhecer
A extraordinária beleza
De ser e existir plenamente.
O sopro me inundou a alma
Nessa noite silenciosa e fria
E através do sopro
Vi sua bela forma serena e tranquila
Me mostrando os caminhos
Me revelando os mistérios
Me apurando os sentidos
O sopro me aliviou
Me curou
E alegrou
E me fez poetizar ao amanhecer
As cantigas do bem viver!!!!!
(Sopro de palavras recebidas num amanhecer após um ritual de cura com tabaco)
Foto: Cris Takuá
Há milhares e milhares de tempos em meio ao escuro surgiu a vida e todos os seres que habitam ao nosso redor. Cada ser vegetal, animal, mineral são espíritos que convivem num profundo emaranhado de saberes, como uma grande teia onde tudo está conectado. Tudo que habita na Terra tem seu guardião e dono. Os Guarani chamam de Ija, os Maxakali de Yamiyxop, os Huni Kuin de Yuxibu, os Yanomami de Xapiri. Cada povo nomeia esse ser e mantem relação de profunda comunicação no mundo espiritual.
Não respeitar esses seres pode nos levar ao adoecimento. Por isso, as crianças precisam ser ensinadas desde pequenas a pedir licença por onde caminham, saber entrar e saber sair da floresta, da cachoeira, da montanha. Respeitar esses seres espíritos significa ter boa vida em equilíbrio e saúde.
Existem algumas plantas de poder, que também são chamadas de mestras, que nos mostram os caminhos, nos colocam em diálogo com os seres espíritos e também nos curam quando afetados por algum mal espiritual.
Muitas culturas indígenas em todas as partes do mundo historicamente fazem uso do tabaco para as suas práticas de cura. Essa planta sagrada está presente em culturas ancestrais em praticamente todos os continentes. Uns a utilizam em cachimbos que, através da fumaça baforada, proporcionam uma comunicação espiritual. Outros sopram o rapé. Ela pode também ser mascada ou tomada como água de tabaco para purga, proporcionando limpezas profundas. Também tem o uso externo como cataplasma. São muitos os usos desse ser.
Ailton Krenak, no Caderno Selvagem Entrar no mundo – Conversas sobre “Plantas Mestras”, em que dialoga com Carlos Papá, diz: “Aprendi então a fazer uma coisa que ainda não ouvi ninguém falando, que é de ler o tabaco. Sei que tem gente que lê borra de café, que lê outros movimentos na água. Mas só experimentei essa coisa de ler a mensagem do tabaco dichavado, sem nenhum uso, só ali olhando para ele me mostrando coisas. Foi muito bom. É provável que outras pessoas já tenham também vivido essa experiência em outros contextos, do tabaco ser essa voz de saúde, essa imagem ativa. Não é uma coisa inerte, mas é algo vivo. É claro que quem faz o uso ritual dele, o uso cotidiano dele, tem outras experiências.”
Percebemos, no entanto, que esse ser sagrado vem sendo tratado de forma desrespeitosa pelas sociedades humanas. As crianças crescem com medo do tabaco, pois são ensinadas que ele mata, causa câncer ou problemas pulmonares. Essa afirmação é carregada de um desconhecimento do uso dessa planta, pois, para muitas culturas que fazem uso ritualístico do tabaco, ele cura.
Tomio Kikuchi, em seu livro Essência do Oriente, diz: “Segundo o princípio Único da ordem do Universo Infinito, isto é, a dialética prática Ying-Yang, fumar tabaco é classificado na categoria Yang… Deve-se ter compreendido que fumar é yanguinizar-se. O câncer sendo Yinguinização explosiva, dilatação contínua (dominado que é pela força centrífuga Ying, dilatadora) será contrariado em seu desenvolvimento pela absorção da fumaça Yang constritora. Esta pode levar a sua regressão e finalmente à reabsorção… nós podemos declarar, com toda certeza, que fumar o tabaco é sobretudo recomendado para cancerosos como para todos aqueles que desejam que fortificar sua imunidade contra o câncer.”
Refletir sobre a profundeza dos seres plantas nessa relação íntima com nossas vidas significa mergulhar na ciência da floresta, que, ao longo de séculos, vem sendo ocultada e ignorada pela ciência capitalista e ocidental. Há um saber que rege comunicações muito sensíveis feitas através de tecnologias ancestrais, como a telepatia, a intuição e os sonhos. Os grandes rezadores e rezadoras, curandeiros e curandeiras passam tempos de suas vidas em processo de preparação para alcançar o entendimento para dialogar com as plantas professoras e possibilitar a cura aos humanos.
Ainda no diálogo Entrar no mundo, junto a Ailton Krenak, profundos pensamentos foram trazidos por Carlos Papá para que possamos sentir a delicada relação do tabaco para o povo Guarani.
“O petyngua leva as mensagens diretamente do Nhanderu. E Nhanderu vai te guiar. E essa fumaça que você solta, de dentro para fora leva o pensamento, o sentimento. E a fumaça vai pairar por todo o universo. Vai se misturar com o vento. Vai se misturar com o aroma do ambiente. Com isso você vai se fortalecer cada vez mais. Mas isso você vai entender melhor quando tiver seus filhos. Através do tabaco e da fumaça vinham mais mensagens. Pela embriaguez do tabaco, eu comecei a perceber e entender os códigos da fumaça na medida que você bafora. A fumaça começou a abrir os códigos. Acabei entendendo esses códigos… E vinham as falas antigas, falas como se os grandes pajés se manifestassem. Senti uma força muito grande, me senti gigante. Não sentia mais meus pés no chão. Eu me senti… Parecia que eu tinha capacidade de voar. Assim, comecei a perceber que o petyngua é um instrumento que cura, que faz com que você entenda todos os códigos do tempo. Foi aí que também compreendi o que nós chamamos de teko axy. Teko axy quer dizer corpo imperfeito. O vento traz e leva as mensagens. A fumaça do pety, que é o tabaco, essa fumaça quando pensamos, leva o pensamento e paira para que o vento traga respostas.”
Através desses pensamentos trazidos convido a todos a se despir das camadas de formatação mental que recebemos desde criança. Que comecemos a repensar nossas relações com o escuro, com o Sol, com a chuva, o vento, o tabaco, a coca e tantos seres que desaprendemos a respeitar e com os quais podemos sim conviver de forma harmoniosa. A industrialização capturou algumas plantas mestras, cabe a cada um de nós reaprender a nos relacionar com cada uma delas.
Fotos: Cris Takuá
02/05/2024
TRAMA QUE TECE A VIDA – por Cris Takuá
Arte: Rita Huni Kuï
Teia da vida
Somos um emaranhado de fios
de sentimentos entrelaçados energicamente
A cada dia aprendendo
a tecer a grande teia da vida
Fia Fia Fia o Fio
Tece tece tece a mão
A base da trama
Que colore essa canção.
Entre teias de aranhas
E profunda miração
As artes vão brotando
Fiando, tingindo e tecendo o algodão.
A floresta inspira o artista
Que medita e se inspira
Refletindo em sua bela criação
Mensagens ao mundo de respeito e união.
A arte traz a potência da cura
O eco da política em sua ampla concepção
Criativa e transformadora.
O artista é um semeador,
Diálogo com morcegos, jiboias e aranhas
E com seus saberes e fazeres ancestrais
Toca a alma e descoloniza a mente
Há séculos moldada por uma
Monocultura do pensamento
A arte tem a possibilidade
de metamorfosear as relações
Entre o céu e a terra
Entre o visível e o invisível
Nos mostrando outros caminhos
Outras realidades possíveis
Num manancial intelectual e criativo
Que habita na complexa e bela existência
dos povos todos que resistem
com seus cantos, rezas, artes e filosofias.
A estética da floresta é múltipla
E dialoga com conhecimentos
Que não estão nos livros e nem nos museus
Vivemos uma criminalização epistêmica.
Uma violência contra as ideias
Contra o pensar
E isso reverbera no útero da terra
Machucado de tanto nos abrigar
Que saibamos despertar as lembranças
E voltar a tecer boas e belas palavras
E tecidos coloridos para reencantar a vida.
********
Fotos: Kawa Huni Kuï
A tecelagem manual é uma arte que acompanha o desenvolvimento do ser humano há muitas gerações. Os diversos povos, de acordo com sua cultura, seu clima e sua região, desenvolveram o processo de tecer, fiar e tingir para produzir tecidos. Uma forma de linguagem ancestral que transmite narrativas repletas de sentidos e encantos. Para alguns povos, a aranha foi quem ensinou a tecer; para outros, a jiboia; para outros, pássaros que vão fazendo seus ninhos tecendo fibras e galhos. São ensinamentos muitas vezes passados do mundo espiritual para os humanos.
Para as mulheres Huni Kuï, o canto é parte do processo de tecelagem: durante a colheita, descaroçamento, bater e fiar das fibras de algodão, as artesãs cantam pedindo à força das aranhas para tecer rapidamente, já que, segundo sua cosmologia, o fio colhido pela aranha já saía pronto, sem a necessidade de bater ou fiar.
Arte: Rita Huni Kuï
Para que as artes indígenas continuem existindo, há a necessidade de que existam as florestas. O modo como a sociedade se desenvolveu nos faz esquecermos de quem realmente somos, não deixando de olhar para o fundo de nossa essência, para conseguir atravessar as barreiras do desconhecido. Junto a isso, a imensa fonte de informações na qual estamos mergulhados, os maus hábitos alimentares, o egoísmo, o desamor e a falta de bom senso estão desencantando a humanidade que sonhamos ser.
Um dos principais saberes que as sociedades indígenas têm e que torna seu pensamento valioso é justamente uma outra maneira de conceber a relação entre a sociedade e a natureza, entre os humanos e os não humanos, uma outra forma de conceber a relação entre a humanidade e o restante do cosmos. A existência de um equilíbrio, em que todos os seres interagem e se respeitam, não só os mais velhos, os anciãos e pajés, mas todos; jovens, crianças, formigas, abelhas, árvores, todas as formas de vida.
Foto: Cris Takuá
Para os povos indígenas, a natureza é quem dá sentido à vida. Tudo em seu equilíbrio. Como uma imensa teia, na qual tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está pra acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que com sua delicadeza e sabedoria vão nos guiando e nos ensinando como bem viver.
A arte brota de uma memória muito antiga e as tramas que se desenrolam de um processo criativo de imaginação mostram o potencial que habita no interior de cada tecelão. Entre sonhos e mirações vão se revelando formas e sinais, que refletem da natureza sua origem de criação, pulsando para a vida o sentido dessas relações.
Foto: Carlos Papá
25/04/2024
NO TEMPO DAS CHUVAS – por Cris Takuá
Foto: Cris Takuá
O cheiro dos pingos na terra batida
Anunciam a chegada das chuvas
Trazendo suaves brisas
Lembranças da infância
De histórias vividas
O tempo, marcador das horas
Dos momentos gravados
Sentidos na memória
Me trazem sensações
De infinita alegria
Oh Terra!
Mãe dos seres animais e vegetais
Oh vento!
Suspiro infinito do ventre do universo
Oh água !
Circula nas veias que percorrem
os caminhos na imensidão do espaço
Oh fogo!
Sagrado mestre que a tudo consome,
tudo transforma e aquece
Salve as direções que nos guiam
Aos olhos que nos orientam
E aos pés que nos sustentam
Nessa caminhada rumo ao infinito.
Foto: Cris Takuá
Cada dia que passa me animo mais a convidar os humanos a se tornarem selvagens, sentirem a delicada beleza de ser e estar em seu território em boa e bela forma. Amanhecer ouvindo o canto dos pássaros e anoitecer à beira do foguinho, contando histórias do dia que passou. A simplicidade que rodeia a vida de quem se permite ser parte da natureza é de uma grandeza muito encantadora.
O mundo acelerado do capitalismo, que transforma tudo em mercadoria, afastou a maioria dos humanos de sua essência e de sua alegria. Enquanto muitos se entorpecem de remédios para conseguir dormir, nas Tekoá, os Guarani, os Maxakali, os Ashaninka, os Huni Kuï e muitos outros parentes cantam para celebrar a noite.
Desde criança me encanto com o cantarolar das chuvas que caem, limpando a terra e acalmando os pensamentos. No tempo das chuvas, tudo se torna alegria: o cházinho de erva cidreira, o bolinho assado de milho, as brincadeiras sem fim….
Como é bom ser selvagem!
Mas a sociedade capitalista insiste em querer nos colocar etiquetas, regrar nossas mentes para esquecermos que não tem dinheiro que paga a simplicidade. Por isso, sigo na minha rebeldia de acreditar que fazer comida no fogo da lenha, usar meu cachimbo para rezar e preparar remedinhos do mato para as crianças é acreditar num futuro mais feliz!
Há tempos aprendi a desvirar o bucho de criança e isso é tão mágico! As faculdades de medicina não ensinam isso aos seus alunos, que buscam praticar a cura como profissão. Curar susto, lombriga desconfiada e tantos males que afetam as criancinhas é de uma beleza selvagem!
Assim, sigo dialogando com as chuvas, aprendendo a escutar os trovões e me direcionar nesse mundo de tantas belezas.
Foto: Cris Takuá
18/04/2024
HISTÓRIAS QUE OS LIVROS NÃO CONTAM – por Cris Takuá
Foto: Roberto Romero
Sueli Maxakali, artista, cineasta, liderança, avó e coordenadora da Escola Viva Maxakali, passou anos de sua vida sonhando reencontrar o seu pai Luis Angujá, como é conhecido, do povo Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Eles se separaram há mais de 40 anos, durante a Ditadura Militar. Para esse reencontro, Sueli idealizou, junto com sua irmã Maiza, o filme Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá. Esse longa-metragem documental está em processo de finalização e contou com apoio do antropólogo e amigo Roberto Romero e de Tatiane Klein, antropóloga que estuda há anos junto aos Guarani e aos Kaiowá. Foi ela quem, em 2019, nas suas caminhadas pelo estado, encontrou Luis vivendo na Tekoha Laranjeira Nhanderu e comunicou Robertinho. A partir daí organizaram a primeira ligação telefônica entre eles. Na época lembro que Tatiane Klein me contou e me enviou um vídeo de Luis muito emocionado.
A Ditadura Militar causou profundas feridas nas memórias e violentou os corpos e os territórios, provocando prisões, trabalho forçado, torturas, envenenamentos e doenças. Houve ainda a proibição da língua materna entre os povos indígenas. No relatório da Comissão Nacional da Verdade consta que mais de 8 mil indígenas foram mortos nesse período, vítimas de torturas e tentativas de apagamentos de suas memórias. Os livros de história e de literatura estudados nas escolas brasileiras contam muito superficialmente o que realmente aconteceu durante os anos de ditadura. A maioria dos livros mostram, com muitas fotos, os exílios de artistas famosos, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas não falam absolutamente nada sobre o exílio, o genocídio e o etnocídio dos povos indígenas.
Em meados de 1960, no auge da ditadura militar brasileira, Luis Kaiowá e seu primo José Lino foram levados para vários lugares diferentes por agentes do estado brasileiro, finalmente chegando ao Posto Indígena Mariano de Oliveira, na aldeia Maxakali de Água Boa, em Minas Gerais. Lá viveram mais de 15 anos. Luís casou-se com Noêmia Maxakali e teve duas filhas, Maiza e Sueli, enquanto José Lino casou-se com Maria Diva Maxakali e teve quatro filhas. Porém, pouco mais de dois meses após o nascimento de Sueli, Luis e José Lino foram reconduzidos para o Mato Grosso do Sul e nunca mais voltaram. Luis tornou-se um renomado rezador do povo Kaiowá, enquanto José Lino faleceu poucos anos após seu retorno.
Foto: Tatiane Klein
Sueli e Maiza cresceram sem ter notícias do pai, mas sempre buscaram perguntar o paradeiro dele quando encontravam parentes Kaiowá. Com a chegada da notícia de Tatiane Klein sobre a localização certa onde estava vivendo Luis, Sueli, com ajuda de parceiros, organizou a viagem de encontro e a gravação de um documentário contando toda sua história. Isso estava previsto para 2019, mas com a chegada da Covid tiveram que desmarcar e aguardar.
Nesse meio tempo, em setembro de 2021, Sueli, Isael e várias famílias Maxakali resolveram retomar uma área, a Aldeia Escola Floresta, onde hoje estão. Lá cultivam o sonho de curar a terra e fortalecer a vida das crianças e jovens através de práticas educativas. Em 2022, com a diminuição nos casos de Covid, Sueli e Maiza conseguiram retomar o projeto e planejar o tão sonhado encontro. Se prepararam espiritualmente para a partida na Aldeia Escola Floresta com um grande ritual do gavião-espírito, Mõgmôka, e seguiram para o Mato Grosso Sul. Entre os dois povos, muita expectativa, emoção, histórias e memórias em meio a um processo secular de expropriação, assassinatos e devastação de seus territórios ancestrais. E mesmo com tanta violência e dor, os dois povos resistem e exibem um ritual de vida vibrante e intenso, povoado por cantos, sonhos e espíritos.
Fotos: Roberto Romero
Profundas histórias de vida e luta não figuram nos livros de história das escolas, mas estão presentes em muitos territórios indígenas. Quem quiser saber mais sobre o encontro de Sueli e Maiza com pai, em breve o filme estará em circulação e vai contribuir muito para o entendimento do que representou a Ditadura Militar para os povos indígenas.
Agradeço a Roberto Romero e Tatiane Klein, que contribuíram com fotos e narrativas desse momento tão importante para história do povo Maxakali e Kaiowá, mas também para história do Brasil.
Compartilho o link de um outro documentário feito por Isael e Sueli que conta também as violências durante a Ditadura Militar para o povo Maxakali: GRIN-Guarda Rural Indigena (Roney Freitas e Isael Maxakali 2016) – Documentário.
Foto: Alexandre Maxakali
11/04/2024
PENSAMENTOS DE CRIANÇA – por Cris Takuá
Fotos: Alba Rodríguez Núñez
Numa manhã de céu azul e montanha iluminada, fiquei a refletir sobre a profundeza dos pensamentos que desabrocham das criancinhas. Tudo está a pensar, observar e imaginar nesse mundo de encantos e belezas.
Kauê Karai Tataendy Mindua, meu filho de 10 anos, é um pensador desde os primeiros passos de sua vida, um grande professor das sutilezas das coisas que nos rodeiam. Cuidador de galinhas e cachorros, tem um galo chamado Pirata, que ele cuida desde que nasceu e que é cego de um olho. Kauê, com muito afeto, fez curativos e hoje Pirata é um galo que comanda o terreiro com seus cantos fortes logo ao amanhecer.
Nessa caminhada junto a esse meu pequeno professor, muitos conhecimentos vou aprendendo com ele. Uma reflexão que ele me trouxe esses dias foi sobre a relação dos humanos grandes com os seres da floresta. Ele me perguntou por que as pessoas crescem e deixam de ser “delicadosos” com os outros bichinhos e plantas. Ele pensa que muitos humanos grandes perderam essa sensibilidade de escutar e conversar com os outros seres e até com os espíritos.
Foto: Alba Rodríguez Núñez
Mergulhado em suas profundas inquietações, desde criança nas caminhadas na mata, traz falas sobre tempos outros onde ele se recorda de situações e momentos da vida que a sua memória ainda alcança.
Curioso perceber a transparência lúcida da dimensão dos pensamentos das crianças, que tecem narrativas imaginárias e se encantam com as mais pequeninas coisas.
Meus dois filhos sempre me acompanharam nas caminhadas da vida, em lutas, trabalhos e articulações. Um dia fui convidada para comentar um filme sobre rezadores, xamãs de vários lugares do mundo, que seguem com seus cantos e rezos segurando os céus e equilibrando a vida no planeta. Kauê, atencioso que sempre foi, ao chegar em casa ficou comentando sobre o que viu e ouviu naquela noite e no dia seguinte pediu pra assistir o filme de novo comigo. Foi um momento forte para nós dois, pois ficamos encantados e ao mesmo tempo profundamente tocados por aquelas realidades tão distantes, mas tão parecidas com as nossas.
Passou um tempo e o vi concentrado com suas canetinhas coloridas desenhando tudo que estava pensando das nossas conversas e daquelas realidades tão profundas.
Desenhos: Kauê
Rezar para chover, rezar para continuar nevando, rezar para seguir os rios e mares com água limpas e peixes para comer, rezar para manter a floresta viva frente a tantas violências, como mineradoras, petrolíferas e um agronegócio avassalador.
Assim seguimos dialogando e sentindo a força que emana nos quatro cantos do mundo desses rezadores e rezadoras, que seguem, cada um da sua forma, resistindo para cuidar da nossa Terra tão machucada.
Que sigamos rezando e aprendendo com a delicadeza das crianças.
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Foto: Alba Rodríguez Núñez
04/04/2024
KA’A, ERVA-MATE – por Cris Takuá
Desenho: Cris Takuá
Kunhã Tatá, Doralice, foi como uma avózinha pra mim, uma professora. Ela me apresentou e me ensinou sobre a sagrada mestra da Nhe’ërÿ: a Ka’a.
Ela contava que Ka’a e Takuá eram as filhas de Nhanderu. Um dia, andando pela Terra, ele pegou um galhinho de cedro e assoprou, criando assim uma criança, que brincava e urinava por todo canto. Então nasceu um brotinho de erva mate, a Ka’á. Era uma menina e ela já cantava com takuapu. Por isso que até hoje as mulheres cantam batendo o bastão de taquara no chão.
Takuá e Ka’a foram embora com Nhanderu quando o mundo pegou fogo, a água grande veio e acabou tudo. Mas, até hoje, os Guarani têm erva mate para fazer chimarrão e taquara para o takuapu, e para trançar a palha para peneira e balaio.
Os nhe’e kuery, os espíritos que moram com Nhanderu, estão falando para os rezadores que a terra vai acabar outra vez. Antigamente já houve um período de escuridão. Não amanhecia mais, assim mesmo veio a água.
Nessa terra onde nós estamos agora, mais cedo ou mais tarde isso também vai acontecer. Se isso não acontecer, a gente não vai aguentar mais o calor aumentando, e vai vir a chuva, e vai vir yapó há’puá tatareve’gua, barro com fogo do céu.
Nhanderu acha que o mundo já está muito velho e quer limpar a terra.
Assim Kunhã Tatá nos contava, dando orientações de como caminhar pela Terra, saber respeitar o tempo, entendendo as direções do vento, das nuvens e dos trovões.
Para o povo Guarani, o tempo se divide em dois: Ara Ymã, o tempo velho, e o Ara Pyau, o tempo novo. Sempre que há mudanças dos tempos, costuma-se fazer a cerimônia da Ka’a para proteção e fortalecimento.
Agora estamos iniciando mais um Ara Ymã, tempo de concentração e resguardo. Não há uma data exata do dia em que mudam os tempos. Mas Tupã kuery, os trovões, passam avisando e os rezadores entendem o sinal e logo já orientam os tembiguai, guardiões da casa de casa, para irem colher a Ka’a.
Durante a cerimônia de consagração da Ka’a aprendemos muito, vemos muitas coisas que ela nos mostra e nos coloca no nosso lugar, nos direcionando para seguir o tempo que se inicia com sabedoria e tranquilidade.
Foto: Carlos Papá
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No meio da madrugada
Em meios aos cantos dos tarova
Concentrada no pilão
Me senti esverdejar
Era a força da mestra curandeira,
Ka’a, professora dos tempos
Filha de Nhanderu
Que lindamente eu a vi saudar
O sagrado Nhamandu Mirim, Sol,
que lentamente estava a se levantar
Com sua cauda irradiante
Amarelando todo nosso lar
opy’i, casa de rezo
Nossa escola viva a bailar
Ensinando e aprendendo
Assim seguimos a caminhar.
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Fotos: Cris Takuá
28/03/2024
CONSTELAÇÃO DE SABERES – por Cris Takuá
Foto: Vhera Poty
Nos processos educativos, e não só neles, mas também nas relações humanas, sinto a falta do afeto e da concentração, do cuidado e da atenção!
Com isso percebo que a instituição escolar não está fazendo sentido! Esse modelo de escola que prioriza a escrita, a leitura, os números, uma enxurrada de informações efêmeras, vazias de sentidos poéticos e práticos na vida das crianças e dos jovens.
Tenho pensado e sonhado com as Escolas Vivas, que valorizam o potencial de cada um em sua delicada essência. Que dialogam sobre valores de ser e estar nos territórios de forma bela e equilibrada. Que falam das artes, falam de cura, dos cantos e encantos dessa vida que pulsa a cada novo amanhecer.
Durante doze anos, eu fui professora na escola estadual indígena em minha comunidade. Foram anos de lutas e desafios, uma constante busca de equilibrar a dureza e a beleza nessa longa caminhada. Professora de filosofia que fui, mas também de história, sociologia e geografia, sempre gostei de desenhar, sair e caminhar com os alunos, ver a floresta, escutar e aprender para além dos livros.
E nesse percurso fiz parte de um processo muito forte de busca por direitos para garantir a formação dos professores indígenas numa licenciatura intercultural indígena.
Para isso, formamos um grupo de trabalho e, durante dois anos, ficamos dialogando, debatendo e construindo o PPP, o Projeto Político Pedagógico, para o curso. Nesse processo do GT que deu origem ao PPP da licenciatura que sonhamos, desenvolvemos o conceito da “constelação curricular”, para fugir da ideia de grade, onde todos os saberes ficam divididos, fragmentados e presos.
Pensar um céu que produz conhecimento e, a partir daí, fazer a articulação entre saberes e fazeres será o grande diferencial dessa formação que vai trazer muito fortalecimento para os territórios indígenas de São Paulo. O curso será organizado no tempo de alternância, o tempo-universidade e o tempo-comunidade.
Após muita luta, em março deste ano foi dado início ao curso de formação pela Unifesp de Santos, momento histórico para os povos indígenas em São Paulo.
Fui convidada a dar a aula inaugural junto a Carlos Papá no primeiro dia da licenciatura. Foi um momento muito especial, pois, estando fora de sala de aula há dois anos, pude trazer uma reflexão sobre as minhas inquietações sobre a escola, a monocultura mental e os desafios que vivi nos tempos em que dei aula e, ao mesmo tempo, lutei intensamente para garantir um processo formativo que respeitasse o tempo de cada cultura.
Durante o tempo-comunidade, cada aluno da licenciatura tem que fazer estágio com orientação de um professor, que pode também ser um líder espiritual, um conhecedor da cultura ou algum membro da escola local. Para a minha surpresa, um jovem aluno me fez a proposta de ser a orientadora dele junto a Escola Viva Guarani e o coordenador Carlos Papá. Esse momento é transformador para a educação e o fortalecimento das memórias ancestrais.
As Escolas Vivas desabrocharam como um sopro de inspiração, uma semeadura multicolorida para ativar as energias de mestres, que estão muitas vezes cansados dos desafios constantes. Esperamos que, a partir do caminhar coletivo, se animem a tecer juntos tramas de narrativas, saberes e possibilidades de sonhar mais.
Desenho: Fabiano Kuaray
21/03/2024
NHE’ËRŸ FLORESTA VIVA – por Cris Takuá
Foto: Edu Simões
Nhe’ërÿ floresta viva
Nela habita um portal de conhecimento
E memórias ancestrais machucadas pela monocultura mental
Da colonização capitalista
Que tenta transformar tudo em mercadoria
Nhe’ërÿ morada de saberes e encantos
Onde os espíritos se banham
Onde a vida de muitos povos teceu formas de resistência
Com cantos e rezos sagrados
Todos os seres que habitam na Nhe’ërÿ
A árvore, a água, o coração em nosso corpo,
tudo pulsa.
Através do pulsar a gente se emociona, sente que está vivo.
O pulsar de cada artista da floresta gera um ser, gera um pensamento.
A floresta Nhe’ërÿ nos convida para acordar o pulsar.
Nós estamos sempre aprendendo,
a cada dia estamos aprendendo uns com os outros.
Juntos, mesmo à distância, estamos pulsando numa mesma energia
De espalhar sementes, diante desse desequilíbrio, do sofrimento da terra.
É esta cosmovisão e poética da vida que nos guia
E nos fortalece a cada novo dia.
Rezadores seguem entoando as boas e belas palavras para acordar
Despertar
Animar
E acalmar os espíritos que nos rodeiam.
A cada novo amanhecer o Sol, Nhamandu Tenonde
Segue a nos iluminar e aquecer
Honrando as criancinhas
Que, com sua pureza e delicadeza, seguem insistindo em nos reensinar a praticar o Bem Viver.
Fotos: Carlos Papá
14/03/2024
O QUE SEGURA OS CÉUS? – por Cris Takuá
As palmeiras nativas da Nhe’ërÿ sustentam os céus desde a origem de criação do mundo e dos seres que nele habitam. O céu azul que hoje existe reflete as folhagens das palmeiras azuis que, no início do mundo, fizeram essa transição entre os mundos que habitamos.
Existem muitas palmeiras que, com sua beleza, suas palhas, frutinhos e sombras, vêm encantando e sustentando a vida aqui em meio à floresta.
Em fevereiro, organizamos na Escola Viva Guarani uma oficina para produzir junto dos jovens os desenhos de algumas espécies de palmeiras para compor a exposição Mba’é Ka’á, o que tem na mata: Barbosa Rodrigues entre plantas e pajés, que acontece entre 08 de março e 08 de setembro, no museu do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.
Coordenada por Carlos Papá, a oficina proporcionou uma leitura e observação atenta do livro Sertum Palmarum Brasiliensis, de J. Barbosa Rodrigues, e também caminhadas na floresta da Aldeia Rio Silveira, para ver e reconhecer as palmeiras que estão ao nosso redor.
Foram dias de muita animação e escutas, através das histórias contadas por Papá sobre a importância das palmeiras para o equilíbrio da mata e para a sustentação dos céus que habitamos desde o início do escuro originário.
Algumas crianças, acompanhando seus pais, criaram também desenhos que refletiam suas percepções das palmeiras que observaram e, juntos, criamos uma linda apresentação de 10 espécies.
As palmeiras azuis
São seres espirituais
De um mundo cosmológico
Que nos mostram os portais
Entre os mundos.
Na floresta existem seres nativos
Jataí, Jussara, Jerivá
Guaricanga, Brejaúba, Butiá
Jejy ró- amargo, Tuku, Indaiá
Espécies de palmitos
Palmeiras
Que alimentam e encantam
Sombreiam nosso caminhar
Cobrem casas
E revestem a floresta
De um esverdear profundo.
Nhe’ërÿ terra das palmeiras
Que seguem sustentando nosso caminhar
Nessa terra
……..Cristine Takuá……..
Desenhos produzidos na oficina Guarani, 2024
07/03/2024
RESISTIR PARA SOBREVIVER – por Cristine Takuá
Os jovens estão buscando encontrar a essência de sua missão, deixada por Nhanderu no momento do parto, quando chegam a esse mundo de imperfeição. Ao longo dos tempos, muitos estão se esquecendo deste compromisso que foi destinado a cada um e, ao crescer e se desenvolver, vão trilhando uma maneira triste de viver, o caminho do Teko vai (a má e feia forma de ser e estar no território), diferente do Teko Porã, que é o Bem Viver, a boa e bela forma de caminhar, de estar em equilíbrio na vida.
Com isso a depressão, a preguiça, o suicídio e formas descompassadas de se colocar no mundo têm aumentado muito entre jovens indígenas. Reflexo de uma histórica trama de violências inconstitucionais e de feridas nas relações humanas. Se desfazer desses emaranhados de desequilíbrios depende muito de uma teia de afeto e cuidado.
As casas de reza são espaços coletivos de cura e convivência, são escolas ancestrais em que, através das práticas e da presença dos rezadores e das rezadoras, vamos reaprendendo a nos colocar no mundo, a lidar com as dores e desafios. As plantinhas, mestras do caminho profundo, nos ensinam a nos equilibrar entre a beleza e a dureza da vida, e assim desacelerar as duras e pesadas pegadas que muitos vêm deixando na Terra.
Nhamandu Mirim, o Sol sagrado, todas as manhãs se levanta para nos iluminar e para que tenhamos força e coragem.
Assim seguimos….
Depois da tormenta vem a calmaria
Depois da tempestade o arco íris brota
No entardecer
Sinais de mudanças e transformações
Sinalizam o renascimento da matéria
Espíritos cantantes voam na lua cheia
Espalhando mensagens de amor
A pequenos seres pensantes
A vida é feita de escolhas
Sendo cada caminho modelado
Por nossos anseios
Cada destino direcionado
Pelos seres sagrados
Momentos de tormentas nos revelam
Que há a necessidade de metamorfosear
Nossa relações, nossos passos
Nessa jornada da Vida
Não basta engrandecer a matéria
Temos que remodelar a alma
Cuidar com zelo e carinho
Para ultrapassar as barreiras
Do desconhecido
E mergulhar no universo multicolorido
Da sábia ensenhança
Que habita para além das aparências
Do sorriso de criança.
Busco o silêncio
Das profundas cantigas
Um suspiro pra alma
Um descanso pra mente
Pra seguir os caminhos dos sonhos meus…
……..Cristine Takuá……..