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DIÁRIO DE APRENDIZAGENS

Vamos acompanhar semanalmente a jornada de Cris Takuá nas Escolas Vivas e Veronica Pinheiro na Casa da Criança, na Escola Professor Escragnolle Dória no Rio de Janeiro. Saiba mais na página do Grupo Aprendizagens.

19/03/2024
APAGA QUE TÁ FEIO! – por Veronica Pinheiro


Sala de leitura, livro 3

Leia os trechos a seguir em voz alta:

“E não era muito inteligente também. Ele tinha construído a casa de palha. Dá para acreditar? Quero dizer, quem tem a cabeça no lugar não constrói uma casa de palha.”

“Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

“Esse era um pouco mais esperto, mas não muito. Tinha construído a casa com lenha.”

“Então fui até a casa do próximo vizinho. Esse sujeito era irmão do Primeiro e do Segundo Porquinho. Devia ser o crânio da família. A casa dele era de tijolos.”¹


Será que a história dos três porquinhos ocorreu daquele jeito mesmo? E se o lobo resolvesse contar a coisa toda do seu ponto de vista? 

O lobo contou e ficou pior. Publicado pela Companhia das Letrinhas, o livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, é um livro infantil que compõe o acervo das salas de leitura das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. Só na escola em que trabalho são 32 exemplares. Uma turma de Ensino Fundamental 1 tem em média 32 crianças, portanto se trata de uma obra recomendada para ser lida em classe. Além disso, em 2013 e 2014, o texto foi colocado nos cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação carioca, suprimindo alguns trechos que classificam como ignorantes os sujeitos que constroem casas de palha ou lenha. Porém, nas duas edições do material pedagógico destinadas às crianças do 4º ano do EF aparece o trecho “Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

O livro A verdadeira história dos três porquinhos deveria ser um texto para inocentar o Lobo Mau. A intenção descrita no livro é trazer ao conhecimento do leitor que o lobo foi vítima de armação. No formato de um diário, o lobo fala sua versão da estória; e fico triste que ninguém tenha sinalizado: apaga esse trecho, tá feio. Pelo contrário, o desabafo do lobo foi escrito, revisado, publicado e distribuído para crianças do ensino fundamental.

Gostaria de trazer novamente uma informação que aparece no diário da primeira semana: a Pedreira, favela onde está localizada a escola em que dou aula, possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Ao caminhar pela estrada principal do bairro vemos muitas casas de lenha. 

Foto da Estrada de Botafogo. Acervo Pessoal Lenon Suhett, Pesquisa Geografia e Comunidade Escolar
(Lenon e Veronica foram diretores de escola juntos de 2019 a 2021)

A verdadeira história dos três porquinhos fere diretamente as crianças, a comunidade e as populações tradicionais que, manifestando abundância, conhecimentos ancestrais e relação com a terra, constroem suas casas com palha, lenha e terra. 

Carter G. Woodson fala que o sistema educacional eurocentrado está a serviço da deseducação do negro estadunidense e convoca a população negra a desenvolver e executar um programa próprio. Ler o diário de um lobo me fez lembrar do professor Woodson e pensar que precisamos de práticas educacionais decoloniais efetivas e não instagramáveis. 

Foto de casa na Aldeia Guarani Rio Silveira. Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

Ao longo do trimestre, vamos construir nossa casinha com bambu, palha e argila. As crianças precisam saber que o que o lobo chama de “pouco inteligente” chamamos de conhecimento tradicional, bioconstrução, e que é preciso saber muita coisa para se levantar uma casa sem comprar nada. Povos indígenas e quilombolas conhecem muito sobre solo, plantas, sabem onde o sol nasce e onde fica a lua em relação à casa construída; e tudo isso é sobre relacionamento. Recontaremos histórias, ativaremos fazeres, saberes e memórias.

Que o sol nos ajude nessa caminhada. 

O lobo já deixou escrito o que ele pensa. Não esperemos nada dele.

Casa no quilombo São José. O quilombo São José existe há cerca de 150 anos e está localizado na cidade de Valença (RJ).
É uma comunidade de descendentes de pessoas escravizadas que vieram da Angola e do Congo, atualmente cerca de 200 quilombolas
moram no local e suas casas são feitas de adobe, pau-a-pique e telhado de palha.
Foto: Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

 

¹SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.

14/03/2024
O QUE SEGURA OS CÉUS? – por Cris Takuá

As palmeiras nativas da Nhe’ërÿ sustentam os céus desde a origem de criação do mundo e dos seres que nele habitam. O céu azul que hoje existe reflete as folhagens das palmeiras azuis que, no início do mundo, fizeram essa transição entre os mundos que habitamos.

Existem muitas palmeiras que, com sua beleza, suas palhas, frutinhos e sombras, vêm encantando e sustentando a vida aqui em meio à floresta. 

Em fevereiro, organizamos na Escola Viva Guarani uma oficina para produzir junto dos jovens os desenhos de algumas espécies de palmeiras para compor a exposição Mba’é Ka’á, o que tem na mata: Barbosa Rodrigues entre plantas e pajés, que acontece entre 08 de março e 08 de setembro, no museu do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. 

Coordenada por Carlos Papá, a oficina proporcionou uma leitura e observação atenta do livro Sertum Palmarum Brasiliensis, de J. Barbosa Rodrigues, e também caminhadas na floresta da Aldeia Rio Silveira, para ver e reconhecer as palmeiras que estão ao nosso redor.

Foram dias de muita animação e escutas, através das histórias contadas por Papá sobre a importância das palmeiras para o equilíbrio da mata e para a sustentação dos céus que habitamos desde o início do escuro originário.

Algumas crianças, acompanhando seus pais, criaram também desenhos que refletiam suas percepções das palmeiras que observaram e, juntos, criamos uma linda apresentação de 10 espécies.

 

As palmeiras azuis 

São seres espirituais 

De um mundo cosmológico 

Que nos mostram os portais

Entre os mundos.

Na floresta existem seres nativos 

Jataí, Jussara, Jerivá 

Guaricanga, Brejaúba, Butiá 

Jejy ró- amargo, Tuku, Indaiá

Espécies de palmitos 

Palmeiras

Que alimentam e encantam 

Sombreiam nosso caminhar 

Cobrem casas 

E revestem a floresta

De um esverdear profundo.

Nhe’ërÿ terra das palmeiras 

Que seguem sustentando nosso caminhar 

Nessa terra

……..Cristine Takuá……..


Desenhos produzidos na oficina Guarani, 2024

12/03/2024
AQUELA TIA ALI VAI CONVERSAR COM VOCÊ – por Veronica Pinheiro

 

Massinha: Pérola, 06 anos


Na primeira semana de aula, minha função era acolher os que choravam. Achei graça. Depois entendi o tamanho da responsabilidade. Meus pequenos companheiros falavam de uma tal dor na barriga e, além das lágrimas, traziam nos olhos o desamparo. 

Ao recebê-los, eu dizia que ficaria ali o tempo que fosse necessário. Perguntava onde o medo estava. E as mãozinhas iam direto para a barriga. É fome? Para alívio do meu coração, as respostas foram todas negativas. Surgia então a última pergunta: eu acho que vi medo nos seus olhos; você tem medo de quê?

De maneira geral, o processo de escolarização desterritorializa dentro do território. Deixa a identidade da criança em segundo plano, determina o que é importante ou não para se saber, determina o que comer, como se vestir, distância o sagrado e impõe novos modos de vida. O tal do conhecimento universal, os conhecimentos básicos e o ensino fundamental norteiam os currículos. Aos poucos, um indivíduo vira uma classe; aos poucos, os corpos são docilizados. E quando menos esperamos… todos os desenhos são pintados dentro da linha.

São tantos os complicadores sociais que a escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana, invadindo aldeias, quilombos e periferias como braço do Estado. A escola apresenta o mundo às crianças. E para muitos, em muitos lugares, é a única instituição habilitada para transmitir conhecimento. No entanto, se existe um pensamento que norteia, se o mesmo está a serviço do colonialismo para sujeição dos sujeitos e adormecimento das memórias… deve haver um pensamento que suleia.

Sugiro que busquemos sulear os modos de se estar na escola. Criemos ambientes seguros para professores e crianças pintarem fora das linhas que contornam os desenhos. Aceitemos o bagunceiro e seu corpo insubmisso. Penso que, durante o processo de suleamento, as memórias de vida e princípios de sustentação dos territórios serão despertados. Sulear é pluriversalizar os modos de existir e se relacionar com a vida. 

De certa forma, aquelas crianças, que choraram na primeira semana de aula, sabiam que precisariam deixar, além da casa, um tanto de si pra fora dos muros da escola. Sei que alguém vai dizer: Mas algumas crianças vão sorrindo! É, eu sei, e essas me preocupam mais.

07/03/2024
RESISTIR PARA SOBREVIVER – por Cristine Takuá

Os jovens estão buscando encontrar a essência de sua missão, deixada por Nhanderu no momento do parto, quando chegam a esse mundo de imperfeição. Ao longo dos tempos, muitos estão se esquecendo deste compromisso que foi destinado a cada um e, ao crescer e se desenvolver, vão trilhando uma maneira triste de viver, o caminho do Teko vai (a má e feia forma de ser e estar no território), diferente do Teko Porã, que é o Bem Viver, a boa e bela forma de caminhar, de estar em equilíbrio na vida. 

Com isso a depressão, a preguiça, o suicídio e formas descompassadas de se colocar no mundo têm aumentado muito entre jovens indígenas. Reflexo de uma histórica trama de violências inconstitucionais e de feridas nas relações humanas. Se desfazer desses emaranhados de desequilíbrios depende muito de uma teia de afeto e cuidado.

Foto: Vherá Poty

As casas de reza são espaços coletivos de cura e convivência, são escolas ancestrais em que, através das práticas e da presença dos rezadores e das rezadoras, vamos reaprendendo a nos colocar no mundo, a lidar com as dores e desafios. As plantinhas, mestras do caminho profundo, nos ensinam a nos equilibrar entre a beleza e a dureza da vida, e assim desacelerar as duras e pesadas pegadas que muitos vêm deixando na Terra.

Nhamandu Mirim, o Sol sagrado, todas as manhãs se levanta para nos iluminar e para que tenhamos força e coragem. 

Assim seguimos….

 

Depois da tormenta vem a calmaria 

Depois da tempestade o arco íris brota 

No entardecer

Sinais de mudanças e transformações

Sinalizam o renascimento da matéria

Espíritos cantantes voam na lua cheia

Espalhando mensagens de amor

A pequenos seres pensantes

A vida é feita de escolhas 

Sendo cada caminho modelado 

Por nossos anseios 

Cada destino direcionado 

Pelos seres sagrados

Momentos de tormentas nos revelam

Que há a necessidade de metamorfosear

Nossa relações, nossos passos 

Nessa jornada da Vida

Não basta engrandecer a matéria 

Temos que remodelar a alma

Cuidar com zelo e carinho 

Para ultrapassar as barreiras 

Do desconhecido 

E mergulhar no universo multicolorido

Da sábia ensenhança 

Que habita para além das aparências

Do sorriso de criança.

Busco o silêncio 

Das profundas cantigas 

Um suspiro pra alma

Um descanso pra mente 

Pra seguir os caminhos dos sonhos meus…

……..Cristine Takuá……..

Foto: Alexandre Maxakali

05/03/2024
A CAMINHO DA PEDREIRA – por Veronica Pinheiro

 

Chegamos à Pedreira. Um complexo com o menor IDH da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Chegamos ao antigo Morro da Ventania, onde o vento corria solto e falava alto. Dizem que quando o vento assobiava na Pedreira, nada mais se ouvia. O Morro da Pedreira está localizado no Bairro de Fazenda Botafogo, entre Pavuna, Costa Barros e Acari. Curiosamente, o vento não fala mais naquele lugar. Os escombros de uma antiga senzala, um cemitério de escravos, alguns troncos de tortura e uma pedreira desativada são as camadas mais recentes sob o solo desse caminho que começamos a trilhar. 

Uma antiga linha de trem cortava a mata densa da fazenda Botafogo. O trem expresso transportava, na década de 1970, pessoas à procura de trabalho e de um novo lar. Estas histórias ainda são ouvidas no território: “Cheguei na Pedreira em 04 de setembro de 1970. Até aqui, eu morei em outros lugares. Vim do Espírito Santo, mas sou de Minas Gerais. Vim com marido e seis filhos”, diz dona Geralda, uma das primeiras moradoras do complexo da Pedreira.

Mapa da Pedreira – João, 6 anos

O trem transformou o lugar onde o vento cantava numa intersecção de corpos-territórios. Corpos em trânsito confluíram, se fortaleceram e construíram uma comunidade. “Quando a gente confluencia, não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende”, diz Nego Bispo em seu livro A terra dá, a terra quer (Ubu Editora, 2023). A confluência é uma força que amplia. Esta força trouxe o Selvagem até aqui. Uma confluência solar: Sol, vento, pedreira, memórias guardadas na terra e trazida nos corpos. A corporeidade é um lugar de registros e agência, nela se articulam e se transmitem mundos.  

Nosso caminho na Pedreira é junto à Escola Municipal Professor Escragnolle Dória, para nós, Casa das Crianças. Acreditamos na confluência dos corpos –  discentes, docentes, plantas, cores, vento, Sol. Em 2024, iniciamos um percurso sobre aprendizagens vivas dentro de uma escola. A sala de leituras da escola será nosso núcleo de irradiação Selvagem. Lá receberemos 439 crianças por semana e 19 professores por mês. Serão 200 dias letivos; 8 oficinas de artes (para crianças e professores) e um grande encontro festivo no final do ano. Na mediação desse movimento, estarei como professora das rodas de leituras e como coordenadora das atividades de artes. Em 10 dias de aula, já passamos por tantas coisas: de medo de bate-bola no bailinho de carnaval a medo de bala perdida durante o turno escolar. Já lemos 2 livros, choramos, sorrimos e brincamos também.

Nesse percurso Selvagem, compartilharemos com crianças e professores reflexões para a construção de uma escola viva. Compartilhamos uma outra forma de ser e estar no mundo, lembrando que a vida e o bem viver devem fazer parte do cotidiano escolar. Não estamos a serviço da educação. Para além de cumprir uma diretriz nacional¹, subimos a pedreira  ativando memórias, saberes e fazeres. Um percurso solar para sentir, ouvir, criar e brincar. Seguiremos por aqui semeando palavras, mudas e mundos. Guiados pelos ventos, estamos sob a luz do Sol, a serviço da vida.

 

¹ A Lei nº 11.645, de 10 março de 2008 torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores, as licenciaturas.