“Me perguntaram se eu sou artista plástico.
Quando a gente trabalha com tintas naturais, queremos diminuir o plástico nas nossas vidas. Agora queremos ser chamados de artistas naturais.”
Jhon Bermond
As cores são um dos fenômenos mais bonitos de serem apreciados. Seja nas mirações, na natureza ou nas pinturas, as cores transitam do encantamento à cura. No mito nawá xiku nawá os Huni-Kuin narram que as cores surgiram a partir das superfícies dos seres da natureza. Elas não são apenas percepções visuais que se fazem possíveis quando há luz presente, são agentes de proteção, medicina, memória e espírito vivo. É na relação com os seres da natureza que caminhamos colorindo as possibilidades de conexão com a vida e com as cores.
Vivência ‘Alquimia das tintas naturais’ | Foto: Mayara Maximilla
Nesse movimento de ativar e acordar a memória de algumas práticas que estão adormecidas, o grupo Crianças Selvagem tem buscado parcerias e orientações para realizar encontros e oficinas com crianças indígenas e não indígenas. Em setembro de 2023, nossa canoa navegou por faixas luminosas que cobrem e revelam simultaneamente propostas artísticas que promovem cura e proteção. Cura, pois entendemos que ao ativar memórias de vida e cuidado com a Terra, nos curamos. Proteção, pois ao reativar a percepção de pertencimento e o entendimento de ser natureza, são criados movimentos de fortalecimento das subjetividades e das coletividades nas crianças e mediadores.
CRIANÇAS E INFÂNCIAS
Criança é o sujeito concreto, ou seja, todos nós já fomos crianças; infância, por sua vez, é um conceito abstrato, construído socialmente. A infância passou a receber um tratamento específico e diferenciado e, nesse modelo de pensar, a escola tornou-se a estrutura de assistência destinada à infância com maior capilaridade. A educação da infância está, infelizmente, a serviço da moralização e higienismo mental e corporal até hoje no Brasil. Apesar de falar sobre respeitar todas as formas de ser e estar no mundo, a escola reproduz e perpetua valores, crenças e conhecimentos a partir de uma perspectiva euro-cristã-patriarcal. O cultivo da monocultura de pensamento aparece desde a organização dos conteúdos e escolha dos materiais didáticos e paradidáticos. O capitalismo mantém rígidas colunas no processo educacional. Em muitos momentos a escola e o ensino de arte estão a serviço da manutenção de uma estrutura adoecedora, sobrecarregada de preconceitos e o processo educacional perpetua práticas que adoecem mentes e ecossistemas. A escola regular discursa sobre cuidado com o meio ambiente, mas consome grande parte dos plásticos e papéis produzidos pela indústria.
“É claro que o plástico vem da plasticidade, do que molda, a partir do jeito de um artista trazer sua obra ao mundo através de formas e técnicas. Mas eu quero algo diferente. Não é uma técnica nova, pelo contrário, é ancestral, mas é diferente do comum. O nome ‘artista natural’ talvez seja o mais certo. Eu quero andar junto com uma galera que também queira isso.”
Jhon Bermond
Ao falar de pigmentos naturais no processo artístico educacional, não falamos apenas de cor, falamos de proteção, medicina e memória. Pigmentos e corantes naturais são substâncias químicas inofensivas e atóxicas extraídas de frutas, vegetais, legumes, árvores, folhas, cascas, pétalas das flores, raízes, insetos, fungos, microalgas e da terra. Na cozinha, a sobra do café e a casca da cebola são belas aliadas para começar de casa a conversa sobre vida, cor, alquimia, consumo e desperdício.
Cor, do latim ‘color’, significa cobrir
As tintas naturais podem ter curta, média ou longa duração, a depender das combinações com aglutinantes e conservantes naturais. Isso é relação, assim como observar e coletar. Para além das técnicas e informações sobre pigmentos naturais, nos interessa pensar as relações que se dão na superfície da natureza, relações ancestrais que criam raízes profundas de conhecimento para manutenção de mundos.
VIVÊNCIA
‘Alquimia das tintas naturais’ é uma vivência estruturada e orientada por Jhon Bermond em que ele compartilha com artistas, professores, educadores e pais conhecimentos de técnicas originais de pigmentação, passando pela história das tintas naturais, reconexão com os elementos, observação, coleta, preparação, extração e aplicação do pigmento.
Ao convidar os participantes a criarem conexões com a natureza dos pigmentos, é provocada a dilatação da relação com o tempo e o fazer. Terra e flores não são substitutos de tintas industriais; não basta trocar um pigmento natural por um industrial, mantendo a relação ‘recurso x obra’. Eduardo Galeano, em seu texto ‘A função da arte’, declara que arte pode auxiliar na construção do olhar. Pode ser este um dos motivos pelo qual o grupo Crianças Selvagem desenha seus encontros a partir de oficinas de pintura, cerâmica, animação, poesia, canções e observação da natureza.
Vivência ‘Alquimia das tintas naturais’ | Foto: Mayara Maximilla
COR E CURA
Numa hipotética linha do tempo, o futuro é aquilo que ainda não aconteceu; essa perspectiva linear ignora que tudo está em conexão a todo instante, e que o que vai acontecer está ligado ao que já aconteceu. Foram três dias de imersão, dormindo e acordando numa faixa de Mata Atlântica atravessada por memórias de um Brasil escravocrata. Túneis de fuga sob a terra, pinheiros trazidos de outras partes do planeta, escombros de uma senzala e uma casa grande apontam que a educação e arte podem encontrar cor e cura na memória.
“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje.”
Provérbio Yorubá
Desafiados a ativar e compartilhar os conteúdos do Selvagem, ciclo de estudos com e para crianças, o grupo Crianças Selvagem pensa arte e educação como um caminho de cura. A escola básica se preocupa com o futuro das crianças e, na prática, esquece que o futuro é feito das relações estabelecidas no passado. As tintas utilizadas para colorir a infância na escola não desenham possibilidades de futuro. Canetinhas, potinhos de guache e lápis de cor são itens básicos para uma infância colorida que destrói a natureza.
É impossível falar de vida sem falar de relações de consumo. O plástico foi introduzido na vida cotidiana como uma revolução e seu uso foi amplamente incentivado. Sua fabricação em escala comercial despontou em 1909 e ali começamos a matar golfinhos e tartarugas marinhas entalados. Hoje sofremos com os plásticos que tomam oceanos; partículas de plásticos foram encontradas em suspensão na água das nuvens e no leite materno. Aprendemos a depender e amar o plástico nas suas mais diversas formas de existir. Produtos destinados a crianças, materiais escolares e plásticos parecem sinônimos. Uma infinidade de coisas miúdas, sem utilidade e destinadas a parar de funcionar. A indústria conseguiu convencer gerações de que produtos para crianças não precisam durar muito tempo. Assim introduzimos nas práticas diárias de uma criança o conceito de ‘descartável’ ou ‘facilmente substituído’.
Vivência ‘Alquimia das tintas naturais’ | Foto: Mayara Maximilla
E o que tem a vivência presencial ‘Alquimia das tintas naturais’ com isso? Diante do desafio de pensar formas de existir que trabalhem com – e não contra – a natureza, Jhon Bermond nos provoca a nos encontrar com as cores. E, a partir da reconexão, acessar saberes e técnicas de preparo de pigmentos naturais que podem ser introduzidos no cotidiano escolar e nas práticas artísticas e criativas que envolvem crianças e adultos. O (re)conhecimento das cores presentes no território também dá início a um ciclo de autonomia, redução de resíduos e conexão com memórias ancestrais.
“Vovó, a senhora se encontra aí?
Sou sua neta Gente do Universo, vim atrás de ti
Eu vim atrás de ti, vovó
Vovó, a senhora se encontra aqui?!
Eu sou a Desana Umusipo, sua neta favorita
Eu vim atrás da senhora para pedir e buscar argila azul, minha avó”.
Licença para a vovó argila – Cerâmica Tukano
Coordena o Grupo Crianças Selvagem e a Comunidade Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida. É artista de rua, brincante, professora e pesquisadora. Mestranda em Artes e Cultura Contemporânea pela UERJ, na linha Arte, Sujeito e Cidade. Atuou, nos últimos anos, como co-gestora e coordenadora no Núcleo de Arte Grande Otelo, Unidade de Extensão Educacional da Secretaria Municipal de Educação carioca para o Ensino de Arte. Licenciada em Literaturas, se especializou em Leitura e Produção de Texto no Ensino Fundamental, e desde então desenvolve projetos sobre escrita de memórias e narrativas de quintais. Como servidora da Secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro, dinamizou as discussões sobre Orientações Curriculares de Língua Portuguesa e esteve como diretora da Escola Municipal de Aplicação Carioca. Pesquisa movimentos e confluências Afro-Pindorâmicas e o Ensino de Artes para Crianças em territórios indígenas e quilombolas. Suas pesquisas propõem diálogos, oficinas e encontros de saberes em escolas e museus.
Permacultor e artista orgânico. Capixaba de certidão mas carioca de coração, sentiu a conexão natureza/arte quando começou a trabalhar com e não contra a mãe terra. Pesquisador dos elementos tintoriais brasileiros desde 2012, viaja conhecendo diversas regiões e comunidades tradicionais, onde o aprendizado dos saberes populares fortalecem a reconexão com a criatividade. Jhon vem desenvolvendo o Curso de Pintura com Tintas Naturais, alquimia que vivencia a prática de pintar com tintas ancestrais compartilhando e reconectando as pessoas com o seu potencial artístico de forma natural.
MARÊ CELESTE DE ARAÚJO
Professora de Biologia, assessora pedagógica, auxiliar administrativa, atuando como servidora no Agentes pela cidadania, programa de assistência social e permanência acadêmica na cidade de Niterói, RJ. Educadora ambiental atuante em diversas áreas como comunidades tradicionais ribeirinhas, caiçara, quilombola e indígena. Desenvolve mini cursos na área ambiental, acompanha o artista Jhon Bermond em suas vivências de pigmentos naturais como staff, organizando, preparando, fazendo registro audiovisual e enriquecendo as aulas de campo com uma observação afinada do espaço e ambiente de aplicação, trazendo um olhar botânico e científico descontraído para as delicadezas da natureza que geralmente passam batidas aos olhos desatentos.
MAYARA MAXIMILLA
Artista e poeta visual que permeia os mundos da fotografia, ilustração, design, muralismo e aquarela. Percorre seu caminho pesquisando a partir de sua relação pessoal com a natureza, com o feminino, com a impermanência e o ser cíclica. Impactada principalmente pela estética da aquarela, conduz como professora quem quiser se apaixonar e absorver a vida também por meio dessa técnica. Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais e Pós-Graduanda em Arteterapia, sabe do poder das expressões artísticas enquanto ferramenta potente de auto-observação e transformação pessoal e social.
Texto: Veronica Pinheiro
Edição: Mariana Rotili
Fotos: Mayara Maximilla
Que lindeza! Quero muito desenvolver uma oficina parecida aqui no nosso espaço. Lindas reflexões. Agradecida.